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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cacilda Becker em fita

Cacilda Becker (1921-1969)
Passei toda essa semana com uma tremenda vontade de escrever sobre Cacilda Becker. Mas, o que dizer dela? Meu conhecimento da brilhante e fugidia atriz me faz esbarrar num dos (inúmeros) gaps de minha formação; leva-me a revisitar minhas escolhas acadêmicas. Se tivesse começado o doutorado um ano mais cedo, eu certamente a tornaria meu objeto de estudo. Enquanto escrevo, folheio as páginas do Teatro Cacilda Becker, de Inez Barros de Almeida, caminho pela história ilustrada das Chanchadas e dramalhões, do Domingos Demasi - livros que eu trouxe de uma viagem ao Rio lá pelos idos de 2008, quando ainda perseguia o intento de estudá-la. Despedi-me da ideia antes de qualquer mergulho aprofundado na obra da artista da qual, parecia-me, já se falava tanto. 
com Paulo Autran em Antígona
Virada esta página, procurei um objeto mais “tangível” sobre o que me debruçar, já àquela altura frustrada com a experiência errática de reconstruir montagens teatrais a partir do que era dito delas, no preto e branco da imprensa. Resolvida a pendência psicológica, reencontrei Cacilda em película, no que suponho serem suas duas únicas produções completas que chegaram aos nossos dias: o filme Floradas na Serra (1954) e o teleteatro Inês de Castro (1968). Descobri-a, finalmente.  
em Esperando Godot
As duas obras estão longe de ser o que de mais significativo ela realizou. Cacilda Becker levou à cena Antígona (Sófocles), A Dama das camélias (Dumas Filho), Seis personagens à procura de um autor (Pirandello). Sofreu o derrame que a levaria à morte vestida de Beckett, durante uma sessão de Esperando Godot, coup de théâtre insólito do acaso. Drummond diria: “A morte emendou a gramática./Morreram Cacilda Becker./Não era uma só. Era tantas.” A variedade de sua obra, as “mil Cacildas em Cacilda” das quais fala o poeta, infelizmente nunca teremos a chance de conhecer. Aos infortunados resta o muito que foi dito dela, pelas velhas gerações que a viram em cena (e pelas novas, que lhes reproduzem os julgamentos críticos) e a transformaram num mito de largueza quiçá maior à que ela teria caso não tivesse dado objetivamente corpo às personagens trágicas que encenava, desaparecendo tão cedo... 
Dama das Camélias (Teatro Municipal, 1951)
Não tento aqui, obviamente, diminuí-la. Morta Cacilda, resta-nos sua presença fantasmática: incorruptível, luzidia, tão moderna. O cerne da carreira da atriz aconteceu na ribalta, cujo fascínio constrói-se na raridade do registro, na presença empírica do artista, na singularidade do ato. Sua multiplicação na cena dos anos 40-60 converteu-se, ao público de hoje, em apenas duas obras, nas quais se encontra surpreendente encanto, não obstante Floradas na Serra se trate de um “dramalhão deliquescente” (na definição bem-humorada de Domingos Demasi), e Inês de Castro, de um teleteatro datado. Mas, porque nunca conheceremos Cacilda Becker, este nada é muito. 
As obras flagram as passagens bissextas da atriz pelo cinema e tevê. Floradas na Serra, último filme da paulistana Vera Cruz, é o segundo e último de Cacilda, o único como protagonista (em 1947 ela havia composto o elenco do melodrama da Atlântida A luz dos meus olhos, aparentemente perdido). Já Inês de Castro testemunha sua passagem pela Rede Bandeirantes, para a qual, pelo espaço de um ano, sua companhia realizou duas dezenas de teleteatros – gênero de sucesso, anterior à telenovela. Trechos desses espetáculos estão disponíveis no YouTube. A maioria perdeu-se, seja porque não tenha sido gravada em fita (teleteatros costumavam ser apresentados ao vivo), seja porque as fitas foram reaproveitadas em gravações futuras (o certo é que tenho comigo o registro de Inês de Castro, gravado por um amigo, mas cuja procedência primeira ignoro). 
Floradas na Serra narra a história da jovem tuberculosa que morre de amor, na estância idílica de Campos do Jordão onde ela se internara para se tratar. É drama romântico stricto sensu, daqueles vividos ou cantados desde os tempos de Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo. Não é, portanto, do mote que tiraremos o interesse da história. Certamente tampouco de sua medíocre banda sonora, que não raro nos obriga à leitura labial (as distribuidoras que recuperam a história do cinema brasileiro prestariam um inestimável serviço se legendassem o que lançam). Visualmente, o resultado chega perto da cinematografia estrangeira – ideal de Alberto Cavalcanti quando ele deu o pontapé inicial da Vera Cruz. Porém, é sobretudo por Cacilda Becker que o filme vale. 
Floradas na Serra (fotograma)
É vê-la em cena para que comecemos a dar corpo às palavras de Décio de Almeida Prado, ao descrevê-la nos pequenos palcos paulistanos. A exiguidade dos espaços permitia-lhe baixar a voz ao sussurro e se fazer vista por todos. O público experimentava “com clareza exemplar o desenho psicológico da cena, a linha evolutiva da situação dramática”. Para Décio, Cacilda atinge o cume de uma linha evolutiva de atuação que tem início com Procópio Ferreira. Com ela – e, mais amplamente, com o TBC – floresce um gênero de atuação que busca construir a personagem a partir do cerne, paulatinamente, dotando-lhe de individualidade. Rótulos estanques de “cômico” e “dramático” caem por terra, os tipos tornam-se homens. A contenção, palavra chave dessa vertente interpretativa, encontra no cinema campo propício de florescimento. 
Floradas na Serra (fotograma)
A proximidade da câmera faz as vezes da pequena sala de teatro. Cacilda é Lucília, dama da alta roda cuja vida de excessos é abandonada em detrimento d’outra que se revelará muito mais mortal. No sanatório, a convalescente encontrará Bruno (Jardel Filho, depois galã da teledramaturgia nacional): pobre, frágil, sedutor, apaixonado. Cedo o tomará aos seus cuidados, despencando de cabeça no torvelinho romântico. Sob a atenção da mulher que o ama, Bruno torna-se forte. Os ponteiros se invertem: Lucília, moída de desgostos, verá a saúde degringolar. 
Floradas na Serra (fotograma)
Passem o enredo mesquinho. É precioso vê-la em cena, carregada nos braços de uma heroína romântica que nada deve à Marguerite Gautier de Garbo (1936). No cinema, Cacilda Becker é a nossa Greta Garbo. Esbelta, pálida e angulosa; a esvair-se devagar, junto da personagem que encorpa, depois de atingir as culminâncias da alegria e do desespero. A uma entrega análoga ela submete sua Inês de Castro, não obstante a maior artificialidade deste registro, a meio caminho do teatro e da televisão, num tempo em que este medium ainda engatinhava. Se não tivesse morrido, quanto ela não haveria de ter feito pela tevê e pelo cinema, quanto mais não faria pelo teatro? Aceitemos, todavia, o libreto truncado escrito pelo acaso. Cantemos Cacilda Becker como a temos, a partir da incompletude: pela multiplicidade de personagens que apenas poderemos acessar por essas duas, as quais, embora as anunciem, parcamente a representam.
Inês de Castro (fotogramas)

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Cacilda Becker - acima e além:

- Cacilda Becker na Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro: http://goo.gl/ud8I7b
- Carlos Drummond de Andrade. Atriz
- Décio de Almeida Prado. Peças, pessoas, personagens: o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- Domingos Demasi. Chanchadas e Dramalhões. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.
- Floradas na Serra (1954). Dirigido por Luciano Salce, a partir do romance de Dinah Silveira de Queiroz. Com Cacilda Becker, Jardel Filho, Ilka Soares, Silva Fernanda, Gilda Nery.
- Inês de Castro (1968). Produzida pelo Teatro Cacilda Becker, em conjunto com a Bandeirantes. Diretor assistente: Ody Fraga, texto de Henry de Montherlant. Com Cacilda Becker, Mauro Mendonça, Homero Kossak, Jairo Arco e Flexa, Martha Gheiss.
- Inez Barros de Almeida. Teatro Cacilda Becker. Rio de Janeiro: Inacen, 1987.