Mostrando postagens com marcador Leda Gys. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Leda Gys. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2023 – Dia 3


Dia 3, segunda, 9 de outubro 


Os programas nos dias de semana, na versão online da Giornate, são únicos. O exibido neste terceiro dia do evento é composto por “La Madre” (Giuseppe Sterni, IT, 1917), com pouco menos de uma hora de duração. Precedem-no uma joia rara, o trecho de “La vita e la morte” (Mario Caserini, IT, 1917), protagonizado pela diva italiana Leda Gys, e pelo curta promocional “Italia Vitaliani visita il regista Giuseppe Sterni per discutere del suo ruolo in la madre” (IT, 1917). O acompanhamento musical é de Stephen Horne. 

A primeira obra do programa é o que sobrou de “La vita e la morte”. Sempre que flagro esses pedaços de passado que se salvaram da ruína vem-me à boca um gosto agridoce. Este é um clássico filme de diva daquela época. Gys é a etérea Leda de Belleville, dama que, casada com um magistrado, vive um affair com outro homem. Ao ir encontrá-lo, durante uma viagem de barco, ela acidenta-se. É colhida por um casal de pescadores inescrupulosos, que se aproveitam do fato de ela ter ficado desmemoriada. Nessas alturas, o piano plangente de Stephen Horne é substituído pela gaita e pela flauta, que dão sabor popular e bucólico às cenas no reduto dos pescadores. 

Neste meio tempo, o marido, que sofre, descobre a traição. A mulher deixa uma filha pequenina, que dolorosamente vai deitar flores no túmulo da mãe, o oceano. O programa da Giornate narra o que se perdeu da obra: a dama envolve-se nas atividades criminosas do casal que a resgata, fato que o marido descobre ao presidir o júri no julgamento do grupo – literalmente morrendo de susto ao se dar conta de que a mulher que ele julgava morta ainda vivia. Um enredo escalafobético que, como tantos daqueles tempos, vale menos pelo que conta do que pela forma como constrói essas personas que são maiores que a vida. A obra está preservada pelo Eye Filmmuseum, onde também se encontram as demais do programa. 

O próximo filme, cuja tradução literal livre é “Italia Vitaliani visita o diretor Giuseppe Sterni para discutir seu papel em La Madre, faz jus ao título; é uma peça de divulgação do filme. Apesar de procurar se vender como um filme de atualidade, não engana que é posado – Vitaliani, a protagonista de “La Madre”, abre a cortina teatral que vai dar na sala do diretor, cuja cadeira está colocada num conveniente enquadramento frontal. Ela faz volteios e senta-se dramaticamente enquanto Sterni supostamente lhe apresenta o papel que ela desempenhará. 

A canastrice do conjunto mal nos prepara para “La Madre”, em que Vitaliani deixa clara a sua estirpe: ela era prima de Eleonora Duse, atriz teatral idolatrada por um dramaturgo exigente como George Bernard Shaw pela naturalidade que imprimia ao repertório (sobretudo realista) que representava. Como Duse (que para o cinema lamentavelmente apenas fez um filme, “Cenere”, de 1916), Vitaliani é adepta dessa aproximação despida e moderna aos papéis que representa. Nesta obra, ela, que então contava com cerca de 50 anos, não se incomoda de se parecer 20 anos mais velha para representar o papel-título. Ela é a mãe do pintor Emanuele (Giuseppe Sterne, também o diretor da obra). 

O rapaz é construído como um meninão. É um pintor com muito talento e pouco tutano. Caberá à mãe salvá-lo de uma femme fatale típica quando ele viaja do vilarejo onde moram até a capital, para aprimorar a sua técnica. A mãe torna-se a sua fonte primordial de inspiração, já que ele tem o seu talento descoberto por meio de um quadro que a tematiza. É nos braços dela que ele se joga depois que a cidade que o viu partir como um anônimo recebe-o como herói. Ela, que esconde uma doença grave, morrerá pouco depois. A cena que fecha a obra flagra o jovem ajoelhado diante do anjo, encomendando a alma da progenitora. 

A mãe não tem nome, funciona como símbolo. Esta obra recupera um cânone do gênero melodramático: a associação da personagem materna com a virgem Maria, a Mater Dolorosa, ao mesmo tempo em que a jovem que procura desencaminhar o jovem é uma espécie de Dalila. O cinema atrelava, então, a mítica do estrelismo aos mitos ocidentais. Se a narrativa é convencional, vale sobretudo pelo trabalho sólido desempenhado por Italia Vitaliani, uma bela atriz que eu acabo de conhecer. 

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (2/4)

Segunda da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Terceiro dia: 2 out. 2017, segunda-feira. 
Léontine noutro filme da série: Les Pétards de Léontine (1910). 
 Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
Seguem as Nasty Women. “Léontine”, heroína da Pathé e chefe de uma série cinematográfica oriunda da Desmet Collection, parece ter o dedo podre. Em Le Bateau de Léontine (1911), inunda a casa para criar um espaço navegável ao portentoso barco de brinquedo do pai. Ela encara a câmera ao final, tão perdida quanto divertida – e seca, já que se protegera em cima dos móveis para conduzir a embarcação no rio improvisado. Noutra fita, Léontine en apprentissage (1910), a jovem tenta em vão aprender um ofício, destruindo sucessivamente lojas, cozinhas e restaurantes. 
A seção convive com outras duas seções temáticas essencialmente diferentes, uma voltada à Primeira Grande Guerra, denominada The Effects of War, composta substancialmente por documentários rodados entre 1917 e 1920, portanto, no calor da hora, e um filme de ficção. Há um incontornável contraponto entre os – sobretudo – panoramas dos palcos do conflito, em ruínas (em especial a região do Danúbio e certas regiões francesas então recentemente liberadas) e das casualties dele oriundas (crianças desnutridas, mutilados). Cidadãos habitando restos de residências, presidiários refazendo plantações, soldados reconstruindo estradas destruídas. 
Em primeiro plano, olhando do distanciamento temporal, emerge o absurdo da guerra, sua recorrência com contornos tão semelhantes. Somos, enquanto público, irmãos do Brás Cubas de Machado de Assis, que desde um monte assiste ao infindável cortejo de misérias de todos os tempos, que se desdobra concomitantemente diante de seus olhos. Em meio à realidade fria, tomada in media res, com severidade e um fundo de otimismo, insere-se uma comédia como La paura degli aeromobili nemici (André Deed, 1915). Ao fim e ao cabo, o riso resta como salvação do espírito, frente ao caos incontornável. 
Le Coeur et les yeux (Emile Chautard, 1911), um dos filmes 
da seção For a better vision. 
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A outra seção, oriunda da Desmet Collection, compila um conjunto de filmes de 1910 a 1915 que giram em torno da cegueira (denomina-se For a better vision). As abordagens são variadas, mas podemos distinguir mais claramente dois contornos, o documental – que se esforça por fazer uma leitura “objetiva” do tema – e o melodrama. Um filme como Istituto per ciecchi a Bandung (1912-13), que aborda o conjunto de atividades ali desenvolvidas visando-se a integrar os deficientes visuais na sociedade (educação em braile, profissionalização, tratamento) – tratando-os, enfim, como sujeitos capazes –, vão ao encontro de um conjunto de filmes em que a perda da visão determina a incapacitação desses indivíduos, o idiotismo (em maior ou menor grau). 
Para além da cegueira trágica de Édipo, o qual fere os olhos na impossibilidade de encarar as suas faltas e o seu destino, esses homens aqui retratados são frutos de penas mais coitadistas. São descendentes da orfãzinha de Decourcelle e de outros tantos melodramaturgos, e fariam brotar, nas décadas seguintes, gente como o protagonista de A luz dos seus olhos, filme protagonizado por Cacilda Becker sobre o qual já tive a possibilidade de discutir neste blog (o link para a resenha encontra-se aqui). 
Trappola (1922)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A pérola do dia foi um filme autoreferencial denominado Trappola, uma obra-prima italiana de Eugenio Perego, de 1922, recentemente restaurada pela Immagine Ritrovata, com uma montagem sincopada, que revela a tonalidade cômica (goddardiana no uso recorrente do jump cut, poderíamos dizer, mas qualquer influência – se acaso houver – obviamente que caminha aqui na direção contrária). A obra é protagonizada por uma diva italiana cheia de carisma, Leda Gys (que em cena é Leda Bardi, estabelecendo-se uma crítica bem-humorada à analogia entre pessoa e personagem, em voga no cinema clássico). À certa altura, a mocinha – interna de um colégio de freiras – foge dali para ajudar a amiga a reconquistar o namorado que, apaixonado por uma atriz acrobata, resolveu ser ator de cinema. No set, a jovem zomba dos maneirismos da primadona à medida que encarna figurantes em produções diversas. Pela graça e despretensão – e leitura irônica que faz do métier, ao encetar um passeio pelos seus bastidores com olhos muito mais jocosos que embevecidos – será uma das principais obras da Giornate. O acompanhamento musical ficou a cargo de José Maria Serralde-Ruiz – o único músico hispano-americano do festival encontrou à obra uma tonalidade comicamente passional que passou o dia todo buscando. Sublinhou o humor e a graça daquelas personagens que até outro dia poucos de nós sabíamos que existiam. As revelações do cinema silencioso, (re)descoberto a cada novo esquadrinhar de arquivo. 

Quarto dia: 3 out. 2017, terça-feira.
O quarto dia da Jornada continuou a revelar westerns rodados ao redor do mundo (aka., na Europa e nos Estados Unidos, neste caso, na Itália e França). Entre eles, um protagonizado por Onésime, com o qual me encontrei primeiro ainda no Doutorado, em Onésime Vagabonde, filme-dentro-do-filme que Feuillade transforma, em Erreur Tragique (1913), no catalizador dos ciúmes do esposo pela mulher com quem recentemente se casara. Onésime sur le sentier de la guerre (1913) é a obra. 
Os highlights do dia para mim são, todavia, Die Bergkatze (de 1921, intitulado tolamente em português Beijos que se vendem), do (quase) sempre brilhante Ernst Lubitsch. Apresentado no “Cinemazzero” em sessão especial às escolas, a comédia não provocou muito riso entre as crianças – o humor sofisticado e ferino do diretor alemão não é talhado aos pequenos. Já eu me deliciei. A história é um desvario, que se estende à forma e ao fundo. Pola Negri, com seu sorriso de um milhão de dólares, é a bandoleira-chefe de um grupo que atua nas gélidas montanhas de um país qualquer (os tipos humanos postos em ridículo importam mais que a localização geográfica, porque são universais). 
O “Belo” de Die Bergkatze (1921)
Mulher-macho, Pola descobre-se à certa altura apaixonada pelo “Belo”, assim literalmente denominado pela película que procura mais pô-lo em ridículo que incensá-lo, terror do mulherio das zonas nas quais ele serve (o tipo é um militar). A cena de despedida do belo de seu habitat natural rumo às montanhas onde receberá de um superior um corretivo é impagável – na despedida, milhares de mulheres a chorarem; odes em sua homenagem e vinte crianças a acenarem-lhe lencinhos brancos: “Adeus, papai.” Lubitsch em seu melhor, venenoso e amoral. O rapaz, claro, se encontrará com a bandoleira, que o reduzirá a cinzas. Acaba se apaixonando por ele, e ambos choram e riem sua deleitosa desdita – como tão bem Lubitsch consegue fazer. Risos e lágrimas misturados, como sabe ser o mais encantador (para mim, claro – aqui é a subjetividade falando) cinema narrativo. 
A noite foi composta por duas sessões. A primeira, com uma obra de Victor Sjöström visualmente belíssima e coalhada da moral cristã que comparece em boa medida na cinematografia do autor (A Carruagem Fantasma, obra-prima de 1921, é o mais bem acabado exemplo): Vëm Domer? (1922). O cerne aqui é a culpa cristã, defendida religiosamente pelo artista, que leva a sua protagonista literalmente a um calvário: percebendo que o marido morreu ao tomar conhecimento do desejo homicida da esposa, ela acredita que deverá caminhar sobre o fogo sagrado (castigo típico do período inquisitorial, em que a história se passa) para aferir se Deus a perdoará. A “iluminação” da personagem se dá, no entanto, em prodígios cinematográficos – da paulatina descoberta dela (e de sua paulatina transfiguração, como consequência disto) de que o marido a vira, desde o espelho, preparar a taça fatal que ele nem chega a beber; até a simbólica crucificação dele, na porta banhada de luz. Ele se transforma no Cristo particular da esposa, e é quem ao cabo acaba por perdoá-la. Visada machista, além de tudo. 
A sessão triunfou musicalmente, com a presença de Neil Brand e Frank Bockius, no piano e bateria. Histórias assim derramadas precisam, para serem convincentes, de uma música ou que as mimetize, ou que caminhe a contrapelo, sublinhando pela ironia o absurdo do que é pregado. Os músicos escolheram o primeiro caminho. Trêmulos na bateria nos momentos de maior impacto do drama, e uma música de tonalidade melodramática fizeram-se ouvir. Não tenhamos vergonha do clichê, diria um dia mais tarde outro músico da Giornate, Thibaudeaut. 
Um pouco mais tarde, uma dobradinha de filmes franceses, Ménilmontant (Kirsanoff, 1926) e Fièvre (Delluc, 1921). Obras essencialmente diferentes, avant garde, com movimentos ágeis de câmera, decupagem rápida e avessas, em fundo e forma, à narrativa moralista clássica, representada pelo filme anterior. Mário de Andrade passa em filme em minha cabeça enquanto acompanho a história das jovens irmãs que perderam os pais e, vivendo no bairro popular que dá nome ao filme, amam o mesmo homem e são enredadas por ele. Os contornos melodramáticos terminam ali: a câmera convida os espectadores a perscrutarem, por meio dos rostos das protagonistas pegos em primeiríssimos planos, o torvelinho que lhes vai internamente. Para além de convencionalismos, emerge a busca do amor e do respeito, o desespero do abandono e a fome (a doçura transida do rosto da jovem mãe a tomar, agradecida, o pão que o estranho – tão pobre quanto ela – lhe dá, aponta que certas tramas são tão velhas quanto a esperança nutrida pelos corações humanos, daí a sua eficácia). 
Em seguida, o torvelinho faz-se carne em Fièvre, por meio dos casais que rodopiam no salão de certo bar do bas-fond parisiense. Na apresentação de cada personagem que frequenta o espaço, um misto de simpatia e ironia. E ao final, estamos todos compartilhando de seus desejos e destinos. Que diretor de mão-cheia é Delluc, e como a música é fundamental a essas sombras, oferecendo-lhes a voz de que elas tanto carecem – Stephen Horne e Romano Todesco criaram uma das sonoridades mais eficazes da Giornate, à altura da assertividade (ou comedimento emocional, pode-se dizer) francesa.