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terça-feira, 28 de maio de 2024

“West Side Story” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em
Notas Musicais a 4 ago. 2022.

West Side Story (1957) 
Música: Leonard Bernstein 
Musical em 2 atos de Jerome Robbins, libreto de Arthur Laurents e letras de música de Stephen Sondheim 
Versão em português de Claudio Botelho e Charles Möeller 
Theatro São Pedro, 6 e 16 de julho 
Direção musical: Claudio Cruz 
Direção artística: Claudio Botelho e Charles Möeller 
Maria: Giulia Nadruz (06/07) e Carol Botelho (16/07) 
Tony: Beto Sargentelli 
Anita: Ingrid Gaigher 
Riff: Andre Torquato 
Bernardo: Guilherme Logullo 
Carmen dos Baralhos: Raquel Paulin 
Orquestra do Theatro São Pedro 

O Theatro São Pedro abraça pela segunda vez a fábula de Romeu e Julieta em sua temporada 2022. Após montar a ópera italiana Os Capuletos e os Montéquios (1830), de Bellini, agora o amado teatrinho da Barra Funda navega os mares do Norte da América, abordando alguns dos temas mais caros do cancioneiro estadunidense: aqueles oriundos de West Side Story, de dois magos do teatro musical daquele país: Leonard Bernstein (música) e Stephen Sondhein (letras). O musical é a ópera dos Estados Unidos, já deixava claro um Mickey Rooney ainda rapazote no delicioso Strike up the band (1940). Nem maior, nem menor que a ópera, ele sublinhava. Cada sociedade cria a arte que melhor se amolda aos seus contornos. 
O musical norte-americano, desde ao menos os anos de 1930, deixa claro esse intuito de criação de uma arte própria, em detrimento da apropriação estrita da arte operística, de origem europeia. 

Giulia Nadruz (Maria) e Beto Sargentelli (Tony). 

West Side Story (1957) é prova clara disso, apropriando-se da celebérrima história dos amantes de Verona, lida por grandes compositores e libretistas europeus, e enquadrando-a aos parâmetros do musical norte-americano e aos anseios daquela sociedade. A Julieta e o Romeu modernos são os jovens Maria e Tony, a porto-riquenha e o americano descendente de poloneses que habitam uma West Side imediatamente anterior à gentrificação que arrasa aquele subúrbio, transformando-o em habitat de gente (muito) rica e no Lincoln Center – em cujo complexo está instalada, dentre outros, a Metropolitan Opera. 
O mote não é mais a rixa familiar entre os Capuletos e os Montéquios, mas aquela que separa latinos e “americanos” – todos, ao fim e ao cabo, uns pobres diabos, tratados como cidadãos de segunda categoria pelo Estado (na figura do policial Krupke), como fica claro na versão cinematográfica do musical de 1961 (de Robert Wise e Jerome Robbins), e claríssimo na sua recente e politizada recriação, outra obra-prima (de Spielberg, 2021). 
Está alheia da versão teatral de West Side Story a discussão sobre a conjuntura social, a qual emerge com força no filme de Spielberg, em diálogo estrito com o nosso tempo (nas tomadas de tirar o fôlego do conjunto de apartamentos do West Side já meio demolidos, em meio ao qual os Sharks e os Jets trabalham e dançam, já assombrados pelo outdoor do prospecto do sanitizado bairro grã-fino que ali se originaria). Essa discussão já marca presença na versão cinematográfica original da obra (nas tomadas aéreas das plantas modernas da cidade, em contraposição com o bairro que seria destruído, cujos escombros servem de ponto de encontro às duas gangues rivais, tanto quanto a quadra de basquete ou o bar do Doc). 
O musical de Robbins, Sondheim, Bernstein e Laurents, que o Theatro São Pedro ora encena, concentra-se na rixa entre as gangues rivais dos Sharks (porto-riquenhos) e dos Jets (nova-iorquinos) e na história de amor entre Maria e Tony, espinhas dorsais que estruturam a apresentação de algumas das canções que permanecem mais indelevelmente no imaginário ocidental: Maria, America, Tonight, I Feel Pretty e Somewhere
Os cenários estão escoimados dos escombros presentes na versão cinematográfica da obra (a cenografia é de Rogério Falcão). São compostos das fachadas de quatro prédios de tijolinhos à vista que a parede dos fundos do teatro tão bem mimetiza, os quais se abrem, à direita, para o bar de Doc, e à esquerda, para a loja em que trabalha Maria e para o seu quarto. 

Guilherme Logullo (Bernardo), Victor Medeiros (Chino), Carol Botelho (Maria) e Ingrid Gaigher (Anita) 

Esses praticáveis movem-se com agilidade, sendo recuados e aproximados à medida das necessidades da cena, liberando vez por outra o palco cênico para os diversos números musicais da trama – números que Mariana Barros coreografa com talento, mantendo os contornos originais de um balé repleto de movimentos angulosos e secos, acenando a todo tempo à energia daqueles dois grupos e à violência que eles encetam. Tais números são dançados com maestria por um ensemble ao qual cabe, à moda do teatro musical, tanto os números conjuntos de canto quanto de dança. 
Outros cenários silhuetados compõem com o principal e são acionados com justeza, a exemplo da difícil transição entre a cena em que Maria experimenta o figurino com que será apresentada à sociedade nova-iorquina, no ateliê em que trabalha, e a cena do baile – transição que consegue, na versão teatral paulistana, recuperar a magia que alcança na versão cinematográfica original da obra, na qual a etérea Natalie Wood gira até metamorfosear-se em um ser de luz, emergindo, graças à fusão, nas portas do ginásio onde se dá o evento, nos braços do anódino e, mais tarde, vilão inesperado Chino. Uma tabela de basquete e bandeirolas sugerem com assertividade, na versão brasileira do musical, o espaço esportivo convertido em espaço social. 
Os figurinos de Fábio Namatame e a iluminação de Paulo Cesar Medeiros compõem para a qualidade do conjunto. Não podemos falar propriamente em criatividade num espetáculo que procura recuperar a montagem histórica de West Side Story – está ali o célebre vestido branco de cinto vermelho de Maria, que dosa um tanto de pureza e uma ponta de coquetismo, bem como o contraponto necessário entre ele e as variadas e vivas cores dos trajes das jovens parceiras dos Sharks e dos Jets (porque, hélas, salvo a protagonista e a sua cunhada Anita, todas as demais mulheres só existem enquanto adendos dos namorados – escapando apenas a andrógina Anibodys, que está num entrelugar, conseguindo uma semi-existência individual devido à sua ambiguidade sexual). O sempre perspicaz Namatame, todavia, precisa ser parabenizado pela pesquisa histórica que realiza e pelo brilho que alcança no conjunto. O mesmo no que concerne a Paulo Cesar Medeiros, pela precisão com que cria, com o uso da iluminação, as atmosferas requeridas pela trama. 
A montagem paulistana de West Side Story é protagonizada por Giulia Nadruz (Maria) e Beto Sargentelli (Tony). O casal que faz contraponto aos protagonistas é composto por Ingrid Gaigher (Anita) e Guilherme Logullo (Bernardo) – o irmão porto-riquenho de Maria, líder dos Sharks, e a sua namorada. Já Riff, o líder dos Jets e melhor amigo de Tony, é desempenhado por André Torquato. 

Ao centro, Ingrid Gaigher como Anita. 

A qualidade cênica que se observa no que diz respeito ao ensemble reforça-se no que concerne aos cinco intérpretes dos personagens principais da obra. Estamos aqui diante de artistas com larga experiência em musicais. Gaigher tem timing cômico e esbanja sensualidade, marcando um contraponto com Nadruz tão potente quanto aquele que Logullo marca com Sargentelli – em que estão explícitos tanto o afeto que as/os une quanto aquilo que elas/eles têm de diferente uns dos outros. 
Giulia Nadruz e Beto Sargentelli têm grande química e dão com maestria corpo e voz a Maria e a Tony. Sargentelli é um cantor excepcional de musical, que equilibra colorido vocal e interpretação cênica. Sua interpretação de Something’s Coming é antológica. A Maria de Nadruz combina a curiosidade e a fragilidade da mocinha que está descobrindo o mundo e a tenacidade da mulher apaixonada. Sua voz e a de Sargentelli harmonizam-se bem na clássica Tonight, outro ponto alto desta montagem – canção traduzida com tanta beleza por Cláudio Botelho, a exemplo das demais canções da obra, que esquecemos que estamos vendo uma versão em português da canção, e não aquela que aprendemos a amar. 
Vi a pré-estreia da montagem e, depois, a récita do dia 16/7, em que a personagem de Maria foi cantada por Carol Botelho, não creditada no programa da peça ou no site do teatro como possível substituta da protagonista, algo que precisa ser corrigido para que se faça justiça ao ótimo trabalho de corpo e voz que ela desempenhou nas récitas que protagonizou. Mignon, Botelho tem, ainda, o physique de rôle de Maria. Torquatto e Logullo também estão bastante bem como os líderes das gangues rivais. 

Carol Botelho (Maria) e Beto Sargentelli (Tony). 

Para além deles e do ensemble, há ainda no programa uma relação heterogênea de adultos, dentre os atores responsáveis pelos papéis de Schrank (Romis Ferreira), pelo policial Krupke (Ubiracy Paraná do Brasil) e por Doc (Fernando Patau), atores que desempenharam com correção os seus papéis. Destaco também o luminoso Henrique Moretzsohn como o mestre de cerimônias do baile, papel que ganhou muita graça nesta versão brasileira. 

Raquel Paulin: Somewhere. 

Fecha o elenco a presença sofisticada de Raquel Paulin como Carmen dos Baralhos. A única voz lírica neste elenco de vozes treinadas no âmbito do teatro musical chama a atenção. A ela cabe uma canção que é originalmente cantada pelo casal Maria e Tony, Somewhere, e ela tira o nosso fôlego. A troca funciona bastante bem na economia cênica, dando um tom de fatalismo para o desfecho do par romântico. 
Estamos, enfim, diante de uma obra-prima de musical, cuja montagem é orquestrada pela principal dupla produtora de espetáculos do gênero no Brasil, Claudio Botelho e Charles Möeller. O resultado não poderia ser outro senão este que nos é apresentado, ainda mais contando-se com a rigorosa direção musical do maestro Cláudio Cruz e com a execução da talentosa Orquestra do Theatro São Pedro. Como única ressalva, eu sugeriria que o volume das caixas de som fosse reduzido. O São Pedro nasceu como cine-teatro nos tempos do cinema mudo. Sua acústica é historicamente boa, não carecendo de tanta amplificação. 


Carol Botelho (Maria) e Beto Sargentelli (Tony) no baile. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Judy Garland – o fim do arco-íris


Em junho passado, acho, quando começaram a aparecer notícias sobre o musical cujo título encima essas linhas, minha primeira reação foi a de pensar: “O que é que vão fazer com a minha Judy?” Os leitores sabem que sou fã possessiva de meus ídolos, e a Judy é das maiores – aquela louca genial que a tanta rasgação de seda já me obrigou aqui... Bem, só pude descobrir o que fizeram com ela na sexta passada, quase no fim da temporada da peça que arrebanhou três indicações ao prêmio Shell de teatro do Rio de Janeiro, nas categorias de melhor atriz (Claudia Netto), ator (Gracindo Júnior) e cenário (Marcelo Pies). E enquanto escrevo aqui, estou ainda sob o efeito do torvelinho no meio do qual fui lançada durante as duas horas de espetáculo.

Se o musical de Peter Quilter (levado à cena em versão brasileira por Charles Möeller e Claudio Botelho) tem estofo para entreter o público pelas suas qualidades dramatúrgicas – mise-en-scène empolgante e aliança sempre segura entre drama, comédia e música -, ele é um manjar dos deuses para os fãs de Judy Garland. Porque quem aparece no palco é uma versão assustadoramente fidedigna dessa artista de vida tão densa e conturbada, mesmo que curta. A Judy entertainer está toda lá, numa composição extraordinária de figurino, maquiagem, impostação de voz e gestual; assim como lá está a mulher debilitada emocional e fisicamente, tão decantada por aqueles que a conheceram na vida privada mas pouco conhecida do grande público – público a quem ela siderava sempre que abria a boca para cantar.
Judy sofreu todas as agruras do star system, como eu já disse aqui. Porque ela era uma das mais lucrativas máquinas de fazer dinheiro da indústria do cinema, foi criada à base de comprimidos que a faziam dormir e acordar para que cumprisse a agenda apertada e a concomitância das produções. Publicamente ela fazia chiste da coisa: “O buquê de flores era comemorativo ao tanto de filmes que fiz. Cada botão correspondia a um filme.”, diz ela sardonicamente a Mickey Rooney no programa que abre a série “The Judy Garland Show”, veiculada na CBS entre 1963 e 1964, testamento cabal da excelência da artista. Porém, era inegável que ela se deteriorava. Aos 46 anos de idade – momento que a peça circunscreve – estava em frangalhos: endividada, viciada e com uma voz que já rareava (diz a lenda que, numa de suas últimas performances, uma soprano se levantou na plateia e produziu certa nota de “Over the rainbow” que ela não mais conseguia alcançar).
A peça centra-se no diálogo entre as vidas pública e privada de Judy Garland, como já o fez “I could go on singing” (1963), o último e, creio, um dos melhores filmes da artista, de forte viés autobiográfico. Nela, como na produção cinematográfica, os excitantes números de palco convivem com a turbulenta vida pessoal da cantora cuja pele ela veste, mulher que tenta se reaproximar do filho que abandonou para se dedicar à carreira.
Porém, o drama da peça, real, é muito mais pungente. Depauperada por uma vida de excessos, Judy via escorrer pelos dedos o seu principal meio de estabelecer contato com o público: a voz. “É uma coisa horrível saber do que você é capaz... mas talvez não consiga mais chegar lá”: não sei se a entertainer efetivamente formulou essa frase que a Judy de Claudia Netto diz em cena; mas é bastante possível que ela o tenha feito. Sempre me pareceu que Judy Garland tentou, durante toda a vida, retribuir a benção que foi ter nascido com aquela voz – sei, o tom é religioso, mas como explicar um talento tão precoce como o dela? Por isso, excessos de toda a sorte pautaram a sua carreira. Há algo de trágico na figura desta mulher que parecia deixar um pouco de si em cada canção cantada, pelo abandono e o modo visceral como as cantava. Ela corria rumo a um destino certo de combustão. Isso se comprova tanto nos episódios do “Judy Garland Show” – nos quais, livre das amarras de Hollywood, Judy pôde ser ela mesma – quanto na peça que tão lindamente a retrata.

“Judy Garland: o fim do arco-íris”, desde meu ponto de vista, atinge o ápice em seu gênero. A peça consegue com fluidez apresentar as duas facetas da artista da qual propõe tratar. A encenação recupera a atmosfera nervosa que circundava Judy em seus últimos anos de vida; passando agilmente dos momentos de turbulência emocional à sublime entrega à arte. A enxutez dos elementos presentes no palco em muito contribui para o efeito do conjunto. A orquestra está no local apropriado: em destaque nos números de palco, velada nas cenas da vida privada. O piano, as bebidas, o baú – aquele old trunk, tão relevante para a carreira de Judy desde “Nasce uma estrela” (1954). Enfim, só está lá o que importa, o que é um aplaudível afastamento do circo em que anda se transformando o teatro musical contemporâneo. Três personagens dividem a cena: além de Judy, o seu pianista e maestro e o seu último marido – as duas figuras fundamentais nos últimos momentos dela.
Gracindo Júnior dá corpo de forma admirável ao pianista que, além de parceiro profissional de longa data da artista, também era seu amigo íntimo (como tão claro fica no “J.G. Show”, nos tapas na bunda e beijos na boca que ela alternadamente lhe dá). A química entre ele e a protagonista é perfeita, o que se revela tanto nas cenas tragicômicas quando nas intensamente dramáticas que compartilham. Igor Rickli se sai igualmente bem como o marido que lhe instilava o hábito das drogas para vê-la trabalhar (embora eu não saiba dizer o quanto ele reflete a personagem histórica). Mas ambos representam personas mais privadas que públicas, as quais, portanto, tiveram grande espaço para invenção. O tour de force é, mesmo, de Claudia Netto, a responsável por dar novamente vida ao mito.
E quão bem ela o faz, só mesmo vendo para se saber ao certo – palavras não bastam para dizê-lo. A mulher é maravilhosa. Desconheço os detalhes da composição da personagem, mas vendo-a em cena apercebe-se que ela fez uma imersão digna de respeito em seu objeto. Basta dizer que, pelas mãos de Claudia Netto, Judy novamente sobe à cena: naquele mesmo caminhar elegante (genialmente trôpego nas cenas de bebedeira), no mesmo timbre peculiar de voz, dizendo bobagens com aquela graça infinita que só ela sabia ter. E arrastando os fios do microfone ao desfilar corpo e voz pelo palco; agarrada a ele nas canções dramáticas; posando nos mesmos perfis que a deixavam tão bonita; carregando a música no mesmo crescendo em que Judy a levava, até a explosão final. A atriz apreende com maestria o gestual de Judy Garland. Isso, somado ao figurino que parece ter saído do próprio trunk de Judy e à voz da própria, que aparece aqui e ali no espetáculo – voz retirada de registros históricos dos anos 30 –, só faz cooperar para o estabelecimento do vínculo entre a personagem histórica e a atriz que a recria no palco. Coisa ainda mais louvável porque ela em nada se parece, fisicamente, à artista que interpreta (vejam-na abaixo sem a maquiagem da peça).
E o melhor de tudo é que, ao cantar as canções que Judy tornou notórias, Claudia prefere captar seu espírito a imitá-la, o que só faz coroar a homenagem. Muitos vivas a essa moça, que, como Judy, nasceu com o dom da voz sem, no entanto, precisar lidar com o carma do vício e as vicissitudes da indústria do cinema. Imaginem a honra de poder ser Judy Garland e, depois, ser quem mais ela quiser? Quando Judy não daria por essa capacidade de despersonalização!...
Agora, só me resta recomendar muito o espetáculo aos cariocas ou àqueles que, como eu, se animarem a se deslocar para cá para verem-no. Infelizmente a temporada se encerra no domingo, por isso corram!

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Emprestei as imagens do programa da peça e de sua página do Facebook.