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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Artista (2011): de volta aos tempos em que o silêncio valia ouro

Vivemos a Era do revival do Cinema Clássico. Homenagem ao centenário da estabilização do cinema como “máquina de contar histórias” ou constatação de que tudo o que valia a pena ser dito pela Sétima Arte já o foi e nos resta apenas redizê-lo? Dos indicados ao Oscar desse ano, “A invenção de Hugo Cabret”, “Meia-noite em Paris” e “O Artista” – a enumeração não é exaustiva – são exemplos de produções alinhadas à febre. Isso sem falar no curta de animação The Fantastic Flying Books of Mister Moris Lessmore”, que parece “The Wizard of Oz” (1939) transposto para o contexto da fruição literária, com direito a furacão, a trabalho análogo com as paletas do cinza e a colorida, e com livrinhos-anões dançando em torno do protagonista-Dorothy ao longo de um brown brick road... Em vários desses casos, a citação de obras antigas conseguiu bons resultados. Exemplo é o franco-americano “O Artista” (“The Artist”, Michel Hazanivicous, 2011), filme tornado cult desde que seu protagonista Jean Dujardin recebeu ano passado em Cannes o prêmio de Melhor Ator e a obra concorreu à Palma de Ouro.
“O Artista” conta a história de George Valentim, um star de cinema bem ao gosto dos anos 20 (charmoso, egocêntrico e milionário) e de Peppy Miller, aspirante a atriz que ruma à Hollywood em busca de fama – trajetória comum a milhares de jovens iludidas pelas revistas de fofocas cinematográficas da época. A câmera narrará paralelamente as trajetórias de ambos, trajetórias decididas pela transição do cinema silencioso para o falado. Certamente, já vimos esse filme antes – e “O Artista” não tenta esconder suas influências, antes as cita exaustivamente (não só ao longo da hora e meia de projeção como de modo textual, nas entrevistas do diretor), procurando estabelecer seu valor antes de tudo como homenagem às primeiras décadas do cinema de estúdio.
O filme é um charme do começo ao fim: tem personagens carismáticos, situações divertidas e tocantes. Tem o mérito de recontar para as novas gerações a história do cinema silencioso no seu momento mais dramático, a transição dos silents para os talkies. E ainda o faz a partir da forma: em branco e negro e sem o uso de diálogos. O roteiro (também de Hazanivicous) é estruturado com competência, com raros momentos de pouco interesse e uma ocasional (e bem-vinda) fuga do dramalhão pelo humor. É um filme muito bom, mas não chega a ser grande devido ao seu próprio contexto de produção e circulação: um filme silencioso e branco-e-preto só seria aceito nesses tempos de tagarelice filmada, 3D, High Definition e quejandas inovações tecnológicas se fizesse concessões ao grande público. A estratégia deu certo, tanto que o filme anda enchendo salas ao redor do mundo. Pretendo, daqui em diante, olhar com algum cuidado para essas estratégias:
George Valentim, encarnado de modo brilhante por Dujardin, é Douglas Fairbanks, John Gilbert, Ronald Colman e, porque não, Rodolfo Valentino (seu nome não é casual). Porque o ator incorpora bem o gestual desses galãs dos silenciosos, o que é um mérito seu; e porque a película desenvolve-o segundo as personas privadas e cinematográficas dos galãs dos anos 20 – desses, apenas Colman fez a passagem para o cinema falado; as carreiras dos outros dois morreram com a chegada do som (e Valentino morreu antes de Hollywood decidir pela transição). Ele é também – e, sobretudo – o Don Lockwood de “Cantando na Chuva” (1952), que por sua vez já era uma soma dos galãs anteriores temperado com tap dancing.
Peppy (Bérénice Bejo) é a diluição de uma porção de estrelas que galgaram com esforço os degraus da fama, como, por exemplo, Gloria Swanson, que só ascendeu a protagonista de filmes sérios depois de ser girl da Keystone e saco-de-pancadas de comédias pastelão. Ela tem suas matrizes ficcionais não só na Kathy Selden de “Cantando na Chuva”, corista aspirante a atriz de cinema por quem o galã Lockwood se apaixona, como nas várias stars de “A Star is Born”, especialmente Janet Gaynor (1937) e Judy Garland (1954) – ambas descobertas por astros que vão se apagando enquanto elas ganham espaço no céu de estrelas de Hollywood.
Tais influências são trabalhadas com afinco (e, porque não dizer, paixão exacerbada) em “O Artista”, umas vezes até com prejuízo da trama. Um compêndio de referências iria encompridar desnecessariamente o texto, portanto, deixemo-lo de lado e vamos nos concentrar nas principais: as cenas de luta de George Valentim (“The Mark of Zorro”, de Douglas Fairbanks 1920 e, depois, o filme-dentro-do-filme de “Cantando na chuva”); seu encontro com a jovem, no set de filmagens e os planos do galã caminhando entre cenários e da jovem caminhando pelas ruas do estúdio (“Cantando...”); a estética art déco do cenário onde ambos bailam a cena final e os ângulos em que os planos são tomados (qualquer filme de Ginger Rogers e Fred Astaire, exceto o primeiro e o último – nos outros oito a elegância dos amplos cenários brancos casava-se perfeitamente à imagem dos atores); o fato de se encontrar, na música, um meio-termo entre a voz e o silêncio (“Cantando...”).
Além dessas relações que dizem respeito ao enredo, “O Artista” cita inúmeros outros clássicos na composição de suas sequências: o “Cidadão Kane”, na montagem paralela que, por meio de pequenas cenas na mesa do almoço, mostra o adensamento do abismo que separa o ator em decadência e sua esposa; “Sunset Boulevard” (1950), na cena em que o ator já decadente se observa no écran; e “Pennies from Heaven” (1981) - esta canção, que compõe a banda sonora de “O Artista”, só faz salientar que ele executa um movimento análogo de paráfrase do cinema clássico ao que o filme de Steve Martin fez nos anos 80. E mais, a cena que eu suponho a mais bonita do filme, aquela em que Peppy veste-se com um dos braços do terno do galã para ganhar dele um abraço impossível, foi livremente baseada na comovente cena de Stela Maris” (1917) em que a órfã (Mary Pickford, a estrela-das-estrelas daqueles tempos) interage com o terno do homem que a adotou. Uma dessas referências chegou a causar polêmica: o uso literal de um longo trecho do score de “Um corpo que cai” (1957), composto por Bernard Hermann, culminou no repúdio formal de Kim Novac, a protagonista da fita de Hitchcock.
Porém, eu
suponho que nada tenha influenciado “O Artista” tanto quanto o fez “Show People” (King Vidor, 1928).

A matriz: “Show People” (1928)

Cruzei com esta obra-prima esquecida de King Vidor por um acaso um tanto quanto cinematográfico. Quem o sugeriu foi o Sistema do IMDB, que por algum motivo obscuro sabia que eu precisava vê-lo. A obra é protagonizada por Marion Davies, que não é outra senão a amante de Randolph Hearst parodiada por Orson Welles em “Cidadão Kane” (1940). Ao contrário do que pinta o ferino Welles, Davies era uma atriz cômica sensacional, e está especialmente luminosa em “Show People” na pele da mocinha que, por influência do pai, decide tentar o sucesso na capital do cinema. Ela adentra Hollywood, passa pelos estúdios e, pescada na entrada dos extras de um, é jogada em cena ao lado de um galã. O paralelo com “O Artista” não para por aí. A jovem é Peggy Pepper (e a semelhança nos nomes não é casual, pois Miss Pepper é tão apimentada quanto a Miss Peppy de “O Artista” é vivaz). E cabe ao galã – que dessa vez não passa de um ator principal de comédia pastelão – treiná-la para o sucesso.

A moça sobe como um foguete ao céu de estrelas de Hollywood e o rapaz segue no pastelão, mas quem se sai realmente bem é o público, que tem o prazer de conhecer detalhes dos dois mundos – o que mais me fascina em Hollywood é seu duplo movimento de mostrar ao público os pouco realistas bastidores das produções para depois convencê-lo que as histórias filmadas eram a mais pura realidade.
No nosso passeio pela Hollywood de 1928 – feito no calor da hora, o que o torna ainda mais fascinante – trombamos com Chaplin (sem os andrajos do mendigo que ele tornou célebre), com Douglas Fairbanks, com Mary Pickford, todos se desempenhando a si próprios (melhor dizendo, todos reforçando os tipos que o star system lhes criou). Menciona-se Gloria Swanson, àquela altura uma das grandes do cinema e que, segundo o mocinho, “antes de tudo foi obrigada a fazer comédia pastelão”. Surgem nele cenas que depois outros filmes tornariam notórias, como a personagem de Judy Garland encenando um close para o marido em “Nasce uma Estrela”, ou a personagem de Gene Kelly beijando paulatinamente os braços da nobre que ele amava numa sequência de filme-dentro-do-filme em “Cantando na chuva”. Isso sem contar o uso notável que “Show People” faz da banda sonora, incorporando na película, logo na alvorada do som, as canções populares americanas escritas por clássicos como Irving Berlin e os leitmotiven das personagens – procedimento que depois se tornaria padrão (e é padrão até hoje). “The Artist” usa em seu score alguns acordes do leitmotiv do par romântico de “Show People”, “We’ll meet again”, de Abner Greenberg. Isso para eu não me estender nas outras várias citações que ele faz do filme, e que certamente o leitor foi percebendo ao longo da leitura. Uma, final, e que salta aos olhos, é o título das películas: porque “The Artist” concentra seu universo no ator principal; “Show People”, na indústria do espetáculo.

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Influenciado por tantas obras-primas, não tem como "O Artista" não ser bom. Porém, quem conhece os filmes citados corre o risco de passar mais tempo a elencar as referências que a mergulhar na história e fruí-la. É certo que as citações dos clássicos aciona a memória afetiva, ajudando no envolvimento do público. Mas ela é feita no filme com demasiada pertinácia, o que o faz vez por outra esbarrar na obviedade, ou então, que o eixo narrativo seja abandonado em prol do exercício de erudição cinematográfica. O filme ganharia, por exemplo, se investisse no aprofundamento das personagens principais, que não passam de tipos de pouca densidade psicológica. A simplificação certamente contribui no entendimento da história para a massa do público desacostumada aos silents, mas é só se conhecer meia dúzia dos grandes da época (dramas como "The Crowd", "Aurora" ou "A última gargalhada", thrillers como "Nosferatu", épicos como "The Gosta Berling Saga" e comédias como "Lady Windermere's Fan", de gênios como Lubitsch, Murnau e King Vidor) para se relativizar seu valor.
Por isso, penso que os melhores momentos da trama são aqueles em que as citações são observadas criticamente. Valentim encarando a tela branca, tal qual Norma Desmond, mas para dizer “Você é um covarde!” é um grande momento. Mas o melhor é mesmo o abraço simbólico que Peppy dá em seu amado – abraço que cria um novo sintagma no já formidável dicionário de gestuais do cinema silencioso.
Por fim, não podemos deixar de lado a grande sacada do filme – o elemento que é mais intrinsecamente dele: o desdobramento dos signos referentes à palavra. A cena inicial, também um filme-dentro-do-filme, em nada se distanciaria de “Ed Wood” (1994) se o protagonista não dissesse, em letras garrafais: “I WONT SPEAK”. Aqui, pessoa e personagem se integram numa mesma persona – elemento caro ao cinema de estúdio, que elimina as barreiras entre o mundo dos sonhos criado para as telas e o mundo real.
Valentim passará o filme silencioso em silêncio, porém, seus gestos serão tão copiosos como eram os dos artistas que, segundo Metz, tentavam transformar cada palavra num movimento de corpo. A narrativa, sempre subjetiva, mimetizará o desespero do protagonista com relação à sonorização dos estúdios por meio de uma inteligente sequência de pesadelo, sequência em que ele escuta, intensificados, todos os ruídos do mundo, menos sua própria voz.
É certo que o filme simplifica a questão, ao transformar o bloqueio do ator com relação à palavra num desvio psicológico dele, evitando assim falar dos artistas enxotados da cena por terem vozes pouco condizentes com os tipos que representavam ou dos conluios das companhias para que algumas carreiras naufragassem. Porém, o expediente acaba por funcionar, e eu acredito que durante algum tempo se vai falar da cena final: momento catártico em que, depois de um frenético número de sapateado, a gente escuta pela primeira vez a voz do protagonista. Nessa hora me senti como o público que, depois de esperar por meia hora a primeira palavra de Greta Garbo em "Anna Christie", pôde finalmente respirar aliviado.


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Eis, abaixo, a tal sequência de "O Artista" em que é usado o score de "Um corpo que Cai". Caso haja problemas na visualização ela pode ser baixada por aqui:






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Esse post foi escrito com a ajuda de: o livro A significação no cinema, de Christian Metz; o documentário "A batalha por Cidadão Kane"; o site do Mary Pickford Institute, cuja resenha sobre Stela Maris (por Hugh Neely) me levou ao filme e Jonas Nordin, que apresenta o trecho de "Um corpo que cai" vítima de litígio no blog All talking, all singing, all dancing"; a indicação que Elisa Coelho me fez do curta-metragem. "Show People" pode ser encontrado aqui.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

“Sunset Boulevard”, Gloria Swanson e algumas notas sobre fama e ostracismo

“Crepúsculo dos Deuses” (1950) compõe um dos capítulos mais elucidativos do studio system hollywoodiano. Se, como thriller, ainda enreda o espectador contemporâneo que busca diversão – por sua sólida construção cinematográfica, pelo tratamento psicológico das personagens e pela surpreendente história de amor que acaba por definir o destino do protagonista – a atenção às suas nuances trará ao espectador um entendimento agudo da indústria do cinema. Isso fez com que a obra-prima de Billy Wilder colecionasse, desde seu lançamento, defensores ferrenhos e críticos contumazes. O diretor foi acusado por alguns de cuspir no prato que comeu, já que não economizou nas tintas para pintar a insânia da riquíssima ex-estrela de cinema, a qual, ao invés de conseguir um retorno triunfal ao écran, acaba por ganhar destaque nas páginas policiais das gazetas de Los Angeles.
Norma Desmond – magnificamente criada por Gloria Swanson, sem dúvida no papel de sua carreira – é metáfora dos stars que se deixavam possuir pelo mundo de faz-de-conta criado pela sétima arte. A mulher endinheirada e excêntrica, habitante de uma mansão no bairro que leva a alcunha de Sunset Boulevard – “bulevar do pôr-do-sol”, numa ácida referência à decadência de seu estrelato – faz remissão a tantas rainhas das telas que tiveram fim semelhante: riqueza e solidão. A cutilada na indústria do cinema é ainda mais incisiva porque o diretor escolhe uma grande estrela dos anos 20 para dar corpo à atriz louca – o que só faz ressaltar o lastro que sua história tem com a realidade.
Swanson foi uma das atrizes mais bem pagas, belas e badaladas de meados dos anos 10 até fim dos 20. Como Chaplin e Mary Pickford, começou nos curtas-metragens. Fez primeiramente slapstick comedy, mas cedo se descobriu moldada à comédia elegante com toques dramáticos. Àqueles que desejarem conhecer sua história, recomendo fortemente a Parte 6 do documentário “Hollywood: a celebration of the American silent film” (1980), que soma uma rememoração sucinta da trajetória da atriz ao depoimento dela e de seus contemporâneos sobre os tempos em que multidões jogavam-se aos seus pés.
É impressionante como a rememoração do passado pelos entrevistados no documentário se aproxima da reconstrução desse mundo feita por Wilder na película. Gloria relembra extasiada da recepção grandiosa que ganhou do povo de Los Angeles ao retornar da Europa em meados dos anos 20, casada com um nobre, depois de anos afastada da capital do cinema. Ela constata ter rapidamente percebido que a histeria coletiva devia-se mais ao lugar que a indústria do estrelismo lhe dera que ao seu valor como intérprete. Devemos, no entanto, olhar com cuidado para esse aguçado senso crítico, que parece ser produto da distância temporal. Outras vozes do documentário pintam uma mulher apegada a produtos de luxo e aos rótulos, ao ponto de comprar o mais caro dos automóveis com seu primeiro salário e, depois de casada, ordenar que seus conhecidos a chamassem de "Madame la Baronesse". Não é de se estranhar que, de tanto ser taxada como um ser de exceção, a atriz tenha, naquele momento, passado a se comportar como tal.

Gloria Swanson: bela e exótica na sequência de "Stage Struck" (1925) em que ela sonha ser Salomé

Norma Desmond é uma versão do que Gloria Swanson fora no auge do estrelato. Por certo é uma versão grotesca, porém, é isso o que dá envergadura crítica ao filme de Wilder. A semelhança entre a atriz e sua criação se estende para outros elementos da trama. Na película, Norma ensaia um revival com Cecil B. De Mille, seu diretor predileto. Gloria também voltava às telas depois de um longo período de ostracismo: desde seu malogrado “Queen Kelly” (1932), suas chances de atuar foram escasseando – “Crepúsculo dos Deuses” foi seu primeiro filme rodado em nove anos. De Mille, que desempenha a si mesmo no filme, teve tanta importância na trajetória de Swanson como na de sua personagem de “Crepúsculo dos Deuses”: ele tirara a atriz do slapstick e lhe vestira com figurinos fabulosos, dando-lhe o ar num só tempo de ingênua e de femme fatale que a tornou duradouro objeto de desejo do público – remeto quem estiver curioso para saber mais dessa fase ao post que escrevi sobre ela num passado pregresso...
O símile entre realidade e ficção se estende a outros personagens da trama. O roteirista boa pinta e com poucos escrúpulos Joe Gillis é desempenhado à perfeição por William Holden, que também via esmorecer seus anos dourados de galã. O mesmo se dá com Buster Keaton - já muito distante dos tempos áureos em que era comparado a Chaplin. No filme ele faz ponta como o ex-colega de profissão de Norma: era uma das “figuras de cera” – segundo o cínico Gillis – que jogavam carteado com ela. E, por fim, Max Von Mayeling – o ex-marido, ex-diretor e atual mordomo da atriz – é interpretado de modo igualmente perspicaz por Erich Von Stroheim, ninguém menos que o diretor responsável pela falência de Gloria Swanson e pelo malogro de “Queen Kelly”.

Foto publicitária do filme

O que poderia se resumir a um acerto de contas de stars decadentes com a indústria do cinema torna-se um dos maiores êxitos artísticos da era do star system. Se o conhecimento das referências permite ao espectador compreender mais profundamente a dimensão da crítica, seu desconhecimento em nada interfere na fruição da obra, competente nos mínimos detalhes. Billy Wilder, que além de comandar a batuta co-assina o roteiro, está em sua melhor forma. Dirigia desde 1942, data do sensacional “The major and the minor”, porém, roteirizava desde 1930. Apenas entre 39 e 45 co-escreveu três obras-primas da screwball comedy, “Midnight” e “Ninotchka” (1939) e “Ball of Fire” (1941), e o contundente drama "Farrapo humano" (1945) – o que significa que ele conhecia bastante bem tanto a carpintaria cinematográfica quanto os bastidores de Hollywood. A escalação dos artistas é sensacional não apenas pelo seu valor simbólico, mas porque cada um se encaixa perfeitamente nas exigências do roteiro.
William Holden mescla com competência charme e cinismo, introduzindo na mistura, no decorrer do filme, uma imprevista dose de romantismo que faz com que a gente se apiede do fim que acaba por levar – fim que conhecemos desde o princípio, já que é ele, morto, que nos narrará a história. A novata Nancy Olson se sai bem como a jovem roteirista responsável por fazer aflorar o lado íntegro da personagem de Holden. Stroheim aproveita seu físico robusto e rosto impassível para construir um personagem ambíguo: como um cão de guarda, permanece ao lado da mulher que ama, mesmo que para isso tenha de conviver com a presença do jovem amante dela.

Todavia, o filme pertence mesmo à Gloria Swanson. A atriz repete a mulher longilínea que envergava a moda exótica de Cecil B. De Mille, injetando na personagem a dose exata de insânia. Ainda bonita, comove como a mulher de meia idade que se submete a intensos tratamentos estéticos para novamente estrelar um feature – e ela quer ser “Salomé”, a jovem filha de Herodíades, o que a torna mais digna de piedade. Seu desejo é vão; Hollywood repudiava a velhice – ao menos no que tocava à sua constelação de estrelas. O ostracismo faz a atriz viver das glórias do passado. Revê os filmes de quando era jovem, junto do mordomo que lhe insufla o ego e do jovem amante roteirista que, em troco de boa casa e comida, pretexta dar corpo ao impossível texto de “Salomé” que ela escrevera.

Uma das grandes cenas do filme nascem de um desses encontros de Norma consigo mesma. Depois de se deleitar com seu rosto tomado em primeiro plano – “ela parecia uma fã”, diz a personagem de Holden -, a atriz ressalta quanto os filmes silenciosos são superiores aos falados: Ainda parece maravilhoso. E sem diálogos. Nós não precisávamos de diálogos, nós tínhamos rostos. Não há mais rostos como esse. Talvez um: Garbo.. Argumentos desse teor foram deveras repetidos até no começo dos anos 30 – quando se formaram hostes bem marcadas contra e a favor do cinema falado.
Retomada no começo dos anos 50, a assertiva da atriz soa anacrônica. Tanto, aliás, quanto sua remissão a Garbo, que se ausentara das telas desde 1941. A ironia final repousa no filme escolhido para deleitar a estrela decadente: não outro que "Queen Kelly", que, na vida real, fomentara a decadência de Gloria Swanson.
Outra cena igualmente notável é aquela em que Norma Desmond e Joe Gillis se conhecem. Você é Norma Desmond. Você fazia filmes silenciosos. Você era grande., diz ele, e ela com altivez lhe responde: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos. Em ambos os momentos a câmera lhe toma em severos planos americanos que lhe dão a aparência de monumento – glosando o modo como a personagem se via.
Cenas como essas poderiam, em mãos pouco hábeis, soar farsescas ou ofensivas. Gloria Swanson afasta o perigo, vestindo com ousadia sua personagem de uma sublime bizarrice. Aqueles que se lançaram em discussões sobre o teor lesivo da obra de Wilder – Greta Garbo e Cecil B. De Mille cortaram relações com ele depois de verem o resultado final da empreitada – se esqueceram de atentar para o tour de force que a atriz executou. Ao invés de compor uma sátira de si mesmo – como supuseram alguns – Swanson deu corpo à sua personagem mais complexa, a uma das personagens mais complexas do cinema de estúdio e, o principal, rompeu com as regras vigentes na indústria ao desempenhar um papel completamente avesso àqueles aos quais estava acostumada. Norma Desmond foi seu primeiro passo para romper com as amarras de Hollywood, e o decisivo para ela se aventurar em paragens estrangeiras: recomendo aos curiosos o insólito “Mio figlio Nerone” (1956), em que ela, divertidíssima como a mãe de Nero, atua ao lado de Brigitte Bardot, uma das amantes do imperador louco.

Agrippina (Gloria) e Nero (Alberto Sordi)

Infelizmente tivemos poucas chances de desfrutar da afiada veia cômica da atriz. Perguntada por Brownlow (aproximadamente em meados de 1960) sobre quanto de “Crepúsculo dos Deuses” se aproximava de sua história, Gloria responde - segundo ele, adotando a prosódia de Norma Desmond:

All of it, dear. I really am the greatest star of them all. But I hide away from people. I live in the past. And if you take a quick look in the bathroom, you’ll find a body floating face downward right now. (The parade’s gone by, 1968).

Nós só saímos perdendo com o fato de a indústria cinematográfica ter reconhecido o valor do filme tão tardiamente. Indicado para todos os Oscars principais, o filme levou para casa o prêmio de Melhor Direção de Arte e Melhor Música. Wilder ainda dividiu com os roteiristas de "A Malvada" a estatueta de Melhor Roteiro (escrito em parceria com Charles Brackett e D.M. Marshman Jr.). "A Malvada" foi, aliás, o grande vencedor da noite. Sem dúvida o longa de Mankiewicz é um ótimo filme. Aliás, curiosamente os temas de ambos os filmes se aproximam. Neste tematiza-se os bastidores do mundo teatral. A grande diferença é que nele o vilão está bem marcado, o que concentra a crítica numa personagem específica ao invés de transferi-la para as bases da indústria do espetáculo, como faz "Crepúsculo dos Deuses". Tivesse o filme e Gloria Swanson sido premiados e talvez teríamos um desdobramento muito diferente na história da sétima arte. Especialmente se Gloria tivesse seu trabalho na película reconhecido, desfrutaríamos com mais frequência de seu talento.

domingo, 20 de setembro de 2009

Gloria Swanson & Cecil B. DeMille

Quem gosta dos clássicos de Hollywood certamente já passou por "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o mais contundente filme sobre os bastidores da capital do cinema e, em minha opinião, um dos melhores filmes de todos os tempos. Depois de passear pelos extras da baratíssima edição de "Sunset Boulevard" distribuída pela Paramount, é bastante provável que o espectador se sinta compelido a procurar os filmes em que Miss Gloria Swanson foi dirigida por Cecil B. DeMille: retratado em "Sunset..." como um atarefado diretor que nem remotamente deseja tirar do ostracismo a outrora famosa atriz muda. É também possível que esse espectador procure saber um pouco mais sobre os outros artistas esquecidos que também comparecem no filme de Billy Wilder (Erich Von Stroheim, Hedda Hopper, Buster Keaton). Eu, pelo menos, saí atrás de toda essa gente.

O passeio me levou até "Don't change your husband" (1918), "Male and Female" (1919), "Why change your wife" (1920) e "The affairs of Anatol", películas em que uma Gloria Swanson no auge de sua juventude, beleza e popularidade é dirigida por Cecil B. DeMille.



Essas películas exemplificam bastante bem as diretrizes que determinavam o trabalho de DeMille
nos anos de 1910 e 1920. São comédias que seguem a linha das comédias de costumes teatrais, que buscam corrigir os vícios pelo riso. Daí a algumas delas não terem muita graça, por tentarem defender uma middle class morality de modo demasiado intencional. Por exemplo, a primeira e a terceira, "Não troque de marido" e "Porque trocar de esposa?", respectivamente. A apresentação do casal assemelha-se. No primeiro filme, a câmera delicia-se em apresentar pouco a pouco um marido relaxado: ele joga a sujeira do cachimbo no chão da sala, coloca os sapatos sujos sobre o lenço imaculado da esposa e não dá qualquer atenção a ela. A pobrezinha, que anseia por romance, encontra-o pouco depois no galanteador que a distraía no jantar em comemoração ao aniversário de casamento dela - ao qual o marido se esquecera de comparecer. No segundo é a vez de a câmera desnudar a pudica esposa que, por ser muito casta, acaba jogando o marido no colo de uma vamp (a hilária Bébé Daniels, num de seus muitos papéis de coquete espevitada). Num e noutro filme pululam as mensagens moralizantes do diretor, por meio de inúmeros intertítulos longuíssimos. A conclusão de ambos é: marido e mulher devem permanecer unidos para tentar resolver os problemas conjugais, pois nem sempre (nunca, de acordo com a filosofia demilliana) é bom negócio investir num novo consórcio. A leitura da questão é pretensamente inovadora quando DeMille propõe, em "Why change your wife", que a mulher deve deixar o puritanismo de lado para, de vez em quando ser também "amante" do marido. Porém, a dica parece servir unicamente ao objetivo de sustentar o lar burguês num momento em que não era tão difícil de se conseguir um divórcio (tanto que, nos dois filmes, o casal se divorcia, e os litigantes são punidos com segundos consórcios pouco deleitosos).
Além de acreditar que o casamento deveria durar até que a morte separasse o casal - mesmo que as diferenças já os tivessem separado muito antes -, outra crença alimentada pelo Sr. DeMille é a da estratificação das classes sociais, e isso fica muito claro em "Male and female", conto do mordomo que desejava a patroa rica mas, consciencioso de sua posição social, resolve casar-se com a criadinha sensaborona. O casamento entre a patroa e o empregado - enamorados um do outro - quase acontece. Isso enquanto ambos estão numa ilha deserta, onde vão parar depois que afunda o barco onde estão os ricos, o mordomo e a criada. Lá fundam uma nova sociedade, baseada na habilidade de cada um, e onde, pasmem, é a vez do esbelto mordomo tornar-se rei (literalmente). Só assim, superior à mocinha, ele poderia tê-la. O idílio dura pouco, pois os desaparecidos são resgatados, mas mesmo que não fossem, e que o casamento se consumasse, perduraria a visão machista do Sr. DeMille.

Mais agradável é "The affairs of Anatol", onde há mais bom humor na narração das situações em que se envolve o "cavalheiresco" jovem Anatol (interpretado pelo belo Wallace Reid num dos últimos papéis de sua breve carreira), sempre às voltas com a salvação das belas mulheres. Os intertítulos, apesar de continuarem longos, são sarcásticos: "O cavalheiro andante só quer fazer o bem, mas o que sua esposa pensa disso?"; "Se bem que ele não iria querer salvar a moça se ela não fosse tão bonita, e ela não iria querer ser salva se ele não tivesse os ombros tão largos", coisas do tipo. Além disso, as interpretações são bastante satisfatórias. Gloria faz uma mocinha recém-casada bem engraçada: frívola, tímida, ciumenta. Wallace Reid tem uns trejeitos hilários - destaque para a cena em que ele, depois de ser enganado por uma Dulcineia e abandonado na estrada pela esposa, olha para uns patos ("Greetings, brothers", diz o intertítulo). Bébé Daniels novamente aparece, e é uma das personagens mais interessantes dos silents de DeMille: uma vamp de aparências, que habita um misto de caverna do Drácula e pirâmide do Egito, e tenta vampirizar o bobo Reid no intuito de conseguir o dinheiro para a cirurgia de seu esposo.

No conjunto, a colaboração Gloria/Cecil deixou produções de inegável valor histórico, mas que não são vistas com muito prazer nos dias de hoje. Não me agrada o modo como ele pinta as mulheres: ou bonecas tolas, seduzidas por galanteadores baratos, ou mulheres descaradas, desejosas especialmente de limpar os bolsos dos homens. E pinta de modo grave, quase sempre com o dedo em riste. Por isso, me diverti tanto com Bébé na pele da mulher casada que amava o esposo e para quem o vampirismo era meramente uma carreira artística... Mas, por outro lado, nesses filmes DeMille pôde vestir Gloria com os trajes mais extraordinários do final de 10 e começo de 20. E que, na época, fizeram tremendo sucesso inclusive por aqui. Não posso deixar de pensar o quanto a descrição de uma das personagem do João do Rio teve influência da atriz: "O seu passo tango, o exagero das modas, que lhe davam o aspecto semipersa (...)" (abaixo e acima há uma porção de fotos da atriz usando trajes estravagantes).
Gostei muito de ver esses filmes, que esclarecem a leitura inteligente que Billy Wilder e Gloria Swanson fazem da época - e a leitura irritou DeMille, o qual rompeu relações com Wilder, segundo a trívia hollywoodiana. Mas prefiro Gloria em "Sadie Thompson", (1928) ou então no sonoro "It's tonight or never" (1931). Aliás, sobre este, meu preferidíssimo, ainda falarei futuramente.