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domingo, 11 de março de 2012

Nunca houve filme de terror tão bom como "Os Inocentes" (1961)

por Chico Lopes

Uma constatação: entre todos os gêneros cinematográficos, talvez sejam os filmes de terror os que oferecem maior quantidade de produções ruins ou de lixo abaixo do desprezível. E, no entanto, esses filmes são produzidos com abundância, as locadoras estão cheias deles (assemelham-se em tudo, até nos títulos, como que indiferenciados pela apelação) e o público (sobretudo o adolescente) continua consumindo-os. Bons enredos, bons atores, boas direções, boa fotografia, nada disso está mais em questão: trata-se de uma espécie de vício, a repetição é cega, compulsiva, e os addicts pouco se importam com isso, mais interessados em conferir sustos e mortes sádicas. De vez em quando, produções como “O sexto sentido” (The sixth sense, 1999) e “Os outros” (The others, 2001) se destacam, e são sempre lembradas como modelos de sugestão e qualidade a seguir, mas as ideias mais felizes são diluídas e recicladas descaradamente em filmes que parecem ter um potencial interessante até certa altura e de repente despencam no total descrédito dos clichês mais abusivos. A publicidade intensa acaba favorecendo os mais... digamos, originais. Vamos vê-los na esperança de uma redenção, de uma direção excepcional, inteligente. Mas a originalidade é apenas uma distinção ligeiramente acima da média geral (que é muito baixa) e, na verdade, originalidade e comércio deslavado se casam muito mal: as concessões que têm que ser feitas a um público imbecilizado fazem sempre com que o comércio vença.

"Os outros" (2001)

Filmes de terror (especialmente americanos) são fenômenos mais para a área da sociologia e da psicologia que da cinefilia, de algum tempo para cá. Eu gosto do gênero, para minha infelicidade, e vejo muita coisa, sempre acreditando que de cada vez possa me surpreender com qualidade debaixo de um título menos conhecido. Qual! Quebro a cara sem parar, e, no entanto, sigo vendo (gosto do senso se atmosfera que se instala, para ser arruinado daí a pouco). Acabo vendo só para constatar variantes em torno do mesmo tema: bandos de jovens adolescentes que vão a um acampamento ou se perdem numa estrada vicinal etc e se deparam com os Jasons da vida ou com cabanas onde demônios guardam seus mais terríveis segredos em livros cabalísticos que, claro, alguém vai decifrar para os personagens e para o público e contém ameaças horrendas. Os jovens vão morrendo um após outro (e é impossível lamentar as mortes, pela total cretinice dos tipos) e sempre resta um último para esticar a coisa e reservar um susto que já não assusta mais ninguém.
Filmes desse tipo parecem exorcizar medos adolescentes obsessivos, e por isso talvez sejam tão obsessivamente ruins e repetitivos – a neurose obsessiva que satisfazem precisa do mecanismo de repetição, sua mecânica é cega. Rendem-se à superstição e ao moralismo mais rígido e autoritário totalmente, como se um adolescente fosse uma criatura destinada ao desastre a menos que os pais, os mais velhos, professores, vizinhos respeitáveis, os mestres e feiticeiros com suas advertências extremamente conservadoras – “não se envolva com isso que o perigo é terrível” – o oriente. Naturalmente, o conselho só faz aguçar a curiosidade pela “coisa errada” e está pronto outro enredo de filme vagabundo. Esses filmes perpetuam tabus – desafiá-los acaba sendo ruim demais para os xeretas e desobedientes. Parecem servir à perfeição para, através do mistério, exercer irracionalidade e opressão sem questionamentos. O passado, a tradição, as regras que não devem ser ultrapassadas, têm neles um papel decisivo. Tudo que vendem é uma espécie de submissão assustada ao obscurantismo salvaguardado pelo medo – “viu só no que deu você ter me desobedecido?”, clama o adulto careta.
O modelo americano pegou no mundo todo – de repente, depara-se com filmes assim procedendo da Noruega, da Rússia e de outros cantos menos previsíveis, e os eternos adolescentes cretinos estão lá, a postos para uma excursão desastrada pelo terreno do Mal onde não deveriam penetrar. A onda de terror japonês fez entrar na coisa crianças esquisitas, mortos e fantasmas menos previsíveis, em produções que até teriam sua poesia se aproveitassem aquelas ideias em outras direções que não a do mais rasteiro e ofensivo clichê. Mas portas se entreabrindo, rangentes, noites de tempestade quando o clímax do drama se instala, gente correndo de mascarados com facas ou outras armas nas mãos, misteriosos farfalhares de mato em torno de acampamentos e olhos de monstros não vistos seguindo os incautos, isso nunca se acaba...

ADAPTANDO HENRY JAMES

Acho, na verdade, que nunca vi melhor filme de terror que o clássico “Os inocentes” (The Innocents, 1961), de Jack Clayton, tanto que ele é modelo indireto para “Os outros” e é sempre citado como o clássico que todo diretor de terror respeitável precisa ver. Ainda que depois vá fazer, seguindo os ditames de produtores ávidos por dinheiro e modas entre adolescentes, mais uma porcaria a ser despejada nas locadoras. É ótimo citar fontes prestigiosas, mas ninguém quer perder dinheiro, ora...
Eis a situação do filme, produção inglesa de 1961: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo – resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer. O casalzinho de crianças órfãs, lindíssimo, verdadeiramente angelical (Martin Stephens é Miles e Pamela Franklin é Flora), pode estar sendo vítima de possessão por um casal já morto, o estranho criado Peter Quint e a preceptora anterior, Miss Jessel.
Na novela original (muito conhecida no Brasil), “A volta do parafuso”, Henry James não deu nome à sua personagem. No filme ela tem – é Miss Giddens. E é interpretada por Deborah Kerr em estado de graça – não vi na carreira dela um papel em que seu tipo se ajustasse tão perfeitamente e em que ela fosse uma atriz tão visceral e convincente. O tio é vivido, só no início, por Michael Redgrave (fala-se que era para ser Cary Grant, mas ele achou o papel pequeno demais). Aparece apenas para jogar charme sobre a suscetível Miss Giddens, visivelmente uma solteirona reprimida para quem um homem daqueles, chique e mundano, seria um partido extraordinariamente desejável. Na verdade, ela só aceita a missão com sua estranha exigência porque sucumbiu ao charme do solteirão hedonista e espera tornar-se uma heroína aos olhos dele, cuidando das crianças e não o importunando. A primeira coisa que ouvimos dele é “a senhorita tem imaginação?”, ao que ela responde excitadamente que sim.
Tem mesmo, para sua desgraça. E, aliás, há, em torno da novela de James (de que fiz uma das traduções no Brasil, pela Editora Landmark, SP, em 2004), toda uma mística e uma incansável polêmica, porque James escrevia com tanta sutileza, em tantas camadas psicológicas dignas de desconfiança, que muita gente simplesmente acha que não havia fantasmas em Bly, que tudo era imaginação da preceptora. É preferível que o ângulo psicanalítico não seja enfatizado demais, no entanto, porque essa mistura de literatura e análise freudiana restringe muito o alcance da história. Embora a preceptora, uma figura vitoriana de mulher casta, reprimida, dotada de imaginação romântica como uma heroína de Charlotte Bronte, que “introjetou” todos os valores da época através de um pai sem dúvida repressor, seja um prato cheio para os Juquinhas que veem o dedo da sexualidade em tudo. E James, que foi um escritor sobretudo alusivo, semeie sugestões perversas (talvez involuntárias, reflexos de sua própria repressão) por toda a narrativa. Mas ele confessou que só quis fazer uma história de fantasmas, não mais.
Bem, o prodígio do filme é que ele adapta James melhor que qualquer outro filme já realizado (pelo menos dos que vi, embora confesse não ter visto “Tarde demais” (The Heiress, 1949), adaptado de “Washington Square”, dirigido por Wyler e com desempenho muito elogiado de Olivia de Havilland). É impressionante como, para um espectador que tenha passado primeiro pela leitura da novela, tudo estará lá: a atmosfera, o cenário escolhido (o lago é uma perfeição), a Bly imaginada por James, os fantasmas (Miss Jessel e Peter Quint são pavorosos, até porque mais sugeridos do que vistos claramente), a casa, seus cômodos imensos, escadarias e ornamentos vitorianos, a impecável Meg Jenkins como Mrs. Grose, uma criada analfabeta e dona de grande calor humano. A fotografia de Freddie Francis é um primor. Francis foi quem fez a fotografia de “O homem-elefante”, de David Lynch, por exemplo. É um artista consumado do preto e branco e, tivesse o filme sido feito a cores, teria perdido violentamente em nuances preciosas.
“Os inocentes” parece ser dessas poucas operações miraculosas que de vez em quando o Cinema faz com a Literatura, propiciando um par de dançarinos que nunca tropeçam um no outro, ajustam-se muito bem e saem valsando divinamente. Henry James, se tivesse vivido tanto para ver o cinema dos anos 60, não teria um só reparo a fazer. Nisso talvez haja dedo de um grande escritor, Truman Capote, que, junto com John Mortimer, usando diálogos de uma versão teatral do texto escrita por William Archibald, adicionou doses de sua conhecida malícia ao trabalho (e, em certos pontos, creio eu, exagerou um pouco). Mas o respeito à obra literária é mantido escrupulosamente e, sem fugir à fidelidade, o filme toma pequenas liberdades criativas (como a lágrima de Miss Jessel sobre uma escrivaninha) que só acrescentam. São liberdades a partir de possibilidades bastante verossímeis que estão na narrativa original.

O SUSTO COMO ARTE


Não pude ver o filme quando passou pelos cinemas em seu tempo porque era menino ainda, não tinha 14 anos (que era a censura da época), mas pessoas que o viram, na minha cidade natal, comentaram comigo, dizendo que uma aparição de Peter Quint lhes deu um susto tão violento que passaram uma semana sem dormir direito. Um amigo desenvolveu fobia a janelas, porque “Os inocentes”, naturalmente, não foge à gramática do gênero: tem muitas janelas com cortinas esvoaçando ao vento, e é numa janela que Quint enfia sua cara horrenda, sugerindo coisas que a gente só pode imaginar para a preceptora (ele jamais fala coisa alguma; é muito mais uma influência pairando na mansão de Bly do que um fantasma; e de Miss Jessel, sua companheira, só de vez em quando ouvimos a voz tristíssima e o pranto).
A razão pela qual um filme desses, tão pouco explícito em seu terror, parece mais assustador que qualquer outro, é digna de reflexão. Acredito que é porque o filme tomou o susto como uma forma de arte, como uma forma superior de compreensão da alma humana e suas desolações. Há nele uma espécie de solidão pungente, um abismo de classes (bem, se trata da esnobe Inglaterra) e uma dose de sofrimento moral e afetivo (tanto nos fantasmas quanto nas crianças) que acaba por nos impressionar, em revisões. Evidente que Quint e Miss Jessel tinham uma relação escabrosa, sado-masoquista, da qual ficamos sabendo pelas alusões cautelosas e envergonhadas da criada Mrs. Grose. O casal de órfãos, com sua beleza e vulnerabilidade, é de fazer pena, pela solidão, pelo egoísmo do tio, e a gente os imagina tão sozinhos em suas brincadeiras que não tinham por que recusar a influência dos mortos que haviam conhecido em vida (na verdade, é como se Quint e Miss Jessel simplesmente houvessem continuado a brincar com eles, na condição de espectros). O momento em que o garoto Miles declama um poema (que é abertamente um convite a que o espectro venha vê-lo) é de uma enorme beleza. Flora dançando no quiosque junto ao lago, invocando a presença de Miss Jessel, que surge do outro lado, pouco vista, mas terrível em seu luto e sua desolação, é outra cena de uma beleza extraordinária. Lição: filme de terror pode ser grande arte (o que hoje em dia parece impraticável).
“Os inocentes” também tem outra lição: é um filme de ruídos conscientemente muito elaborados, começando pelo início quando, em tela totalmente negra, ouve-se pássaros cantando, e vão surgindo as mãos crispadas da preceptora. E, numa voz infantil de menina, ouvimos uma musiquinha doce que, no entanto, está recheada de desolação e sexualidade de tal modo que entendemos que ela sintetiza a relação de Quint e Miss Jessel. Foi composta por Georges Auric, autor da bela trilha sonora do filme, e tem letra de Paul Dehn (aí está, pra quem quiser conhecer o filme):

We lay my love and I beneath the weeping willow.
But now alone I lie and weep beside the tree.

Singing "Oh willow waly" by the tree that weeps with me.
Singing "Oh willow waly" till my lover return to me.

We lay my love and I beneath the weeping willow.
A broken heart have I. Oh willow I die, oh willow I die
.

Afora esta cançoneta doce e sinistra, insistente, retomada em vários momentos dramáticos e tocada numa caixinha de música, os sons (de pombos destroncados, gritos, sussurros, ventania, ruídos ainda mais furtivos e imprecisos) em torno de Bly fazem com que o filme ganhe uma eloquência envolvente, que pode matar de susto algum incauto que se deixe levar profundamente por ele (isso sim é terror: alusões, matérias-primas obscuras para a imaginação, a paranoia e o desespero).
Outros achados: o quarto de brinquedos do filme parece uma ideia reaproveitada por Ridley Scott muitos anos depois em “Blade Runner” (1992) e há algo do posterior “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986) no inseto que sai da boca de um querubim no jardim, assustando a preceptora. Também as tomadas de voos de pombos levam diretamente a lembranças de “Blade Runner”. A influência de “Os inocentes” se espalhou por outros gêneros. É de fato terror, e terror da mais pura espécie – elegante e peçonhento. Quanto a essa influência, no entanto, lembrar que ela teve frutos um pouco bastardos, como o filme “Os que chegam com a noite”, de Michael Winner, realizado em 1972. Winner, cineasta muito inferior ao diretor Jack Clayton, especula sobre a relação entre Quint e Miss Jessel falando do que teria acontecido antes de suas mortes, tendo Marlon Brando e Stephanie Beecham no papel do casal. O filme é de uma fase em que a carreira de Brando estava em total decadência e não faz falta nenhuma.
O fundamental, mais que ver uma vez, é ter “Os inocentes” para vê-lo e revê-lo muitas vezes, por cinefilia. O DVD está no mercado pela distribuidora Oregon, sem extras, mas com uma cópia muito bonita, com todo o esplendor do preto e branco de Freddie Francis.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cinebiografias de pintores: os clichês infalíveis e Van Gogh, o campeão de adaptações


por Chico Lopes


O cinema tem a sua tradição comercial de contar as vidas dos pintores, mas não faz filmes exatamente memoráveis sobre eles. Gauguin, Modigliani, Toulouse-Lautrec, Cézanne, Pollock, Picasso, Van Gogh, já tiveram suas cinebiografias, alguns até mais de uma. Um caso curioso envolve dois filmes sobre Gauguin – o pintor foi interpretado num filme dinamarquês por Donald Sutherland, “Um lobo atrás da porta” (1986), e décadas depois pelo seu filho, Kiefer Sutherland, em “Rumo ao paraíso” (2003). Pai e filho, por alguma razão, tiveram essa obsessão por Gauguin, mas nenhum dos dois filmes foi um grande sucesso. São apenas medianos.
Há não muitos anos, o sofrido e egocêntrico ao cubo Modigliani foi vivido por Andy Garcia em “Modigliani – a paixão de uma vida” (2004). Diz-se que o melhor filme a respeito deste gênio italiano é “Os amantes de Montparnasse” (1958), em que é interpretado pelo falecido e esquecido ator francês Gérard Philipe. E este filme não existe, infelizmente, em VHS ou DVD no Brasil, a menos que eu esteja muito enganado.
Sobre Toulouse-Lautrec, há o famoso “Moulin Rouge (1952), de John Huston, que é, infelizmente, dos mais frouxos filmes feitos pelo diretor, e não me consta que tenha saído no mercado brasileiro de DVDs. Já Jackson Pollock, mestre do expressionismo abstrato e da “action painting”, foi vivido em cinebiografia mais ou menos recente – “Pollock” (2000) - por Ed Harris, e com talento. O filme, no entanto, não tinha nada a oferecer senão uma transcrição meio canhestra da vida do pintor. E sua personalidade – a julgar pelo que foi mostrado – era tão turbulenta e egocêntrica que a gente sentia era compaixão da mulher que o amava, vivida pela atriz Márcia Gay Harden. Um dia ao lado de Pollock seria uma provação para qualquer ser humano razoável. Mas ela ficou lá, impávida, ao lado dele, por muito tempo.
Invariavelmente, os pintores no cinema não são criaturas muito simpáticas. A turbulência emocional e uma exigência irracional de atenção são suas marcas. Serão assim na vida real? Picasso comparece, na interpretação de Anthony Hopkins em “Amores de Picasso” (1996), como um sátiro irresponsável, deixando malucas as mulheres que o amam. Fica melhor, o grande Pablo, no documentário que Clouzot fez sobre ele em 1956 (O mistério de Picasso), quando simplesmente pinta em seu atelier para o espectador, fascinando-o pelo talento, com o torso nu e a expressão travessa com que engendrava seus magníficos touros, palhaços e mulheres. Ali, a aura de mulherengo cafajeste é exorcizada em favor da presença do pintor, vale não o homem, mas o artista, que é tudo que importa.
Modigliani é um conquistador irresponsável também, no filme em que é interpretado por Andy Garcia. Gauguin, já se sabe, mereceu até livro de Somerset Maugham (“Um gosto e seis vinténs”) por sua rebeldia contra a civilização, deixando mulher e filhos e a Europa toda pela incerteza e a aventura do Taiti, onde foi amado por nativas e delas adquiriu talvez a doença que o matou.

UM PROBLEMA PARA QUEM OS CERCA

Esses românticos e lunáticos senhores, com seus pincéis maravilhosos, são um problema danado para as pessoas que os cercam. Parecem tomados de tal maneira por sua arte que a necessidade de serem narcisistas até o osso os torna monstruosos, e, como são identicamente cativantes, amá-los é cair na fogueira, não há garantia de nada – eles só têm compromissos com suas visões interiores e um desligamento total dos valores convencionais. O curioso é que essa visão acabou ficando convencional também, ao menos do ponto de vista do cinema comercial ou dos best-sellers literários.
Na certa em razão dessa vulgarização, quem dispara na frente no número de adaptações de sua vida para o cinema é Vincent Van Gogh. Talvez por ser o mais paradigmático dos pintores, ao menos na visão cinematográfica. Ele é tudo isso – um problema para a família, um problema para os amigos, e, acima de tudo, um enorme problema para si mesmo. O imaginário popular o consagrou como o louco que cortou a própria orelha e certos fatos de sua vida parecem importar mais do que sua própria pintura. Alçou-se à condição de lenda, com tudo quanto isso tem de grandioso e equivocado.
Os filmes sobre ele são sempre os mais procurados, e há pelo menos três em VHS e DVDs, sendo o mais lembrado “Sonhos” (1990), de Kurosawa, onde é vivido por Martin Scorsese, no episódio do trigal com corvos. É só um episódio, mas a tecnologia permitiu que as imagens das telas mais queridas de Van Gogh comparecessem com a força impressionante que sempre tiveram. Os outros dois filmes são “Van Gogh” (1991), de Maurice Pialat, francês, e “Van Gogh – Vida e obra de um gênio” (1990), norte-americano, de Robert Altman. Não são muito bons, o primeiro pelo terrível vício francês de fazer filmes em que a emoção é descarnada pelos discursos, a secura desdramatizante, as racionalizações, o falatório, e o segundo por ser uma redução de uma minissérie realizada para a televisão holandesa. Nos filmes, o pintor é interpretado por Jacques Dutronc e Tim Roth, respectivamente.
Até há pouco tempo, porém, não existia em VHS ou DVD brasileiro o maior dos filmes sobre ele, SEDE DE VIVER, dirigido por Vincente Minnelli em 1956. Encontrei-o milagrosamente numa simples banca de revistas, a um preço razoável, e não pisquei para adquiri-lo, temendo que fosse mesmo um milagre fácil de se volatilizar. Traz Kirk Douglas no papel principal, e podem esquecer todos os outros Van Goghs: ele é definitivo, com a barba ruiva, a expressão atormentada e uma dignidade a toda prova.

Também o filme é o melhor de todos. Dirigido por Vincente Minnelli, cineasta de musicais clássicos e definitivos como “Agora seremos felizes” (1944) e “A roda da fortuna” (1953) e de dramas como “Assim estava escrito” (1952) e “Chá e simpatia” (1956), deu muito certo essa produção, e é o único Oscar da carreira de ator de Anthony Quinn – no papel de Gauguin, que, infelizmente, é curto, pois Quinn parece perfeito para encarná-lo e ele sim foi o Gauguin que os Sutherlands não conseguiram ser. Talvez por ficar pouco tempo em cena e ser só um episódio (embora crucial) na vida de Vincent.
É uma coincidência feliz que Vincent fosse dirigido por um Vincente, esse Minnelli que, quanto mais filmes dele se revê, mais se percebe que foi um dos gênios do cinema de Hollywood, infelizmente meio esquecido hoje em dia (o sobrenome só faz com que as pessoas se lembrem de que ele foi pai da cantora Liza).
Minnelli tinha paixão absoluta pela pintura de Van Gogh, e o filme reflete isso: nele, a cenografia é superior à de qualquer outra produção, as locações foram escolhidas com dedo de mestre e, de vez em quando, o filme simplesmente para para exibir telas e os lugares em que se basearam, provocando êxtases a partir do mais simples dos expedientes.
O que acontece de bom, nessa produção, é que Kirk Douglas é um Van Gogh contido, a julgar pelos padrões das cinebiografias de Hollywood que, exaltando os “grandes homens”, sempre tenderam para o meloso e o piegas. Já que a história dele é tão naturalmente tendente à ênfase e à hipérbole, Minnelli a conta com simplicidade, sem excluir a paixão. O cuidado que pôs na cor é um caso à parte: nunca se viu tamanha fidelidade à explosão cromática de Van Gogh em nenhum dos outros filmes. O filme é tão bom que o único pecado da produção é falhar no quesito trilha sonora: a música é de Miklos Rosza, que era compositor para épicos bíblicos e faroestes, tinha mão pesada e faz pensar demais na Hollywood tradicional. No resto, não há filme igual a esse, sobre o fou rou (o “ruivo louco”, como chamavam Vincent pelas ruas da Provença).
Quem leu o livro homônimo que deu origem a esse filme? É de Irving Stone, pouca gente se lembra, mas é ótimo, e foi um best-seller que fez muito pela divulgação da arte do holandês. Pois, é fielmente seguido. Mas, quem leu a comovente troca de cartas entre Van Gogh e seu irmão, Théo, e também o belíssimo “Suicidado pela sociedade”, de Antonin Artaud, encontrará razões de sobra para se deleitar com a produção.
É indispensável que os fãs de Van Gogh conheçam esse filme muito elevado e pouco concessivo, a despeito de sua aparente concessão às regras comerciais de Hollywood. É muito melhor que o filme de Pialat, e, devido a certo pedantismo, certos fãs de Pintura, arte em geral, acham sempre que os filmes europeus seriam mais refinados e cuidadosos em relação a essas coisas. Costumam ser, mas podem também ser áridos e presunçosos e, se franceses, particularmente chatos, discursivos e sem emoção.
Minnelli não tem medo de emoção alguma, e alguém que o tivesse não poderia filmar a vida de Van Gogh. No filme, discutindo com Gauguin, em cenas que levam ao drama conhecido, entende-se que foi um homem de intensidades, de uma grandeza emotiva que primeiro esmagou a ele mesmo, como se fosse literalmente canibalizado por seus grandes sóis vertiginosos. Tratar Van Gogh com dietas cartesianas é um total pecado. Artaud, chegando às glossolalias em seu texto sobre ele, compreendeu-o muito bem.
No filme, ele conversa com uma freira de um manicômio, que se deslumbra com uma pintura sua – esta traz a figura da Morte a ceifar em meio a um campo vibrantemente amarelo de trigo. “Como pode haver Morte em plena beleza, em plena luz?” – pergunta a freira, perplexa. Vincent, homem de mais sentir que falar, não consegue explicar. E o comovente é que é assim que ele morrerá: colhido pela morte, ardendo em sol e luz. Numa tragédia luminosa, torvelinho cósmico que o engolfa.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Reflexões de fim de ano sobre uma arte-indústria um tanto insatisfatória

A partir de hoje este blog passará a publicar textos de crítica cinematográfica do escritor - meu amigo - Chico Lopes, coisa que muito me honra, já que sou fã assumida desse olhar crítico que ele volta aos objetos que analisa. Seja bem-vindo, Chico!


por Chico Lopes


Neste fim de ano, amigos me mandam listas de seus filmes favoritos de 2011. Reinam aqueles títulos que os leitores já sabem quais, “A árvore da vida”, “Melancolia”, “A pele que habito”, “Cópia fiel”, “Cisne negro” etc. Não faço desse tipo de lista e me sinto meio marginalizado por não ser dado à prática, porque parece que todo mundo tem as suas. Vi muitos filmes, profissionalmente e às vezes com expectativas apaixonadas, como sempre, neste 2011. Mas nada me cutucou tão profundamente quanto fui cutucado nos anos 80 por coisas como “Blade Runner” e “Veludo azul” e nos 90 por outras tantas. Minha impressão é a de que o último grande filme que vi é mesmo de 2001, “Cidade dos sonhos”, de Lynch.
Mesmo Almodóvar me parece uma coisa já meio esgotada, em “A pele que habito”, filme de interesse (porque nada do que ele faz é desinteressante), mas com o raso (nunca me convenceu como ator, é mais um galã que outra coisa) Antonio Banderas como protagonista. Helena Anaya e Marisa Paredes, as mulheres do filme, são muito mais interessantes como atrizes e seus papéis mais sugestivos. A história é envolvente, mas termina com um furo de roteiro besta. É apenas razoável, o filme, e não merecia tantas loas como vem merecendo. Achei “A árvore da vida” uma transposição da banalidade dos filmes de família americanos, aqueles dramas que às vezes são bons e às vezes nos parecem demasiado insossos e sentimentaloides, para uma escala cósmica. Banalidade cósmica, portanto - e Malick é um sujeito presunçoso, um sub-Kubrick. “Cópia fiel” me fez ficar cansado dos filmes muito “falados” típicos do cinema rodado na França. Não suportei ver Juliette Binoche, sempre linda, e seu marido (ou não) estudioso de arte, falando sem parar. Estou cansado das afetações empoladas e áridas do “cinema de arte”, pensei. Não é bem assim, na verdade. “Melancolia”, por exemplo, pegou-me com força.
Mas a mediania chata domina. Estou com 59 anos e só mesmo quando atacado de auto-complacência extrema, me permito curtir fantasias adolescentes. Filmes cheios de “magia” e efeitos digitais, com ação frenética, me deixam menos empolgado que sonolento. A explicação: tédio. Enredos bizarros, personagens bonzinhos de um lado e malvados de outro, lutas intermináveis, cenários pasmosos, dragões, resgates espetaculares etc parecem bailar no vazio. É preciso perder todo e qualquer senso crítico para achar isso realmente mágico e envolvente. Magia calculada demais deixa de ser magia. E há algo no cinema da era digital que, paradoxalmente, sugere mais irrealidade escapista que poesia, caindo na monotonia do exagero. E como os atores andam ruins! Se os filmes são adolescentes, então, pega-se gente que talvez um dia aprenda a representar, mas, por enquanto, pura lástima...
Estarei ficando velho e blasé demais?, me pergunto. Isso me remete ao passado do cinema.


A PERDA DA INGENUIDADE

Converso com regularidade com um amigo que, quando se trata de filmes de passado, ao começar a descobrir tudo que andava saindo em DVD, ficou, tal como eu, empolgado. “Vamos ver agora cinema de verdade”, dissemos meio que em uníssono, acreditando piamente que nada foi melhor do que o cinema dos anos 30, 40 e 50 em Hollywood, com uma pequena concessão para os anos 60 e 70. Bem, tivemos sustos e mais sustos com produções horríveis ou dignas de esquecimento que nossas memórias indulgentes envolviam naquela aura de coisa maravilhosa e intocável, quase mística (também, eram apenas a mais vaga lembrança), e fomos vendo que certas estrelas e astros não sabiam representar e certos diretores eram uma empulhação e certos roteiros eram risíveis. Claro que certas coisas eram mesmo muito boas, e tanto melhor, mas já eram exceções também, pois a Nostalgia engana muito: o “filme antigo” parece vir sempre carimbado por um prestígio automático e não é assim. Basta vê-lo com os olhos de presente, que já não são mais ingênuos (mudamos muito, ora, e como não mudar?), e tudo fica relativo ou meio patético.
Todo saudosista de cinema é assim, de certo modo – quer que a qualidade de certas lembranças se perpetue menos pela qualidade indiscutível dos filmes que lhes deram origem do que por alguma razão pessoal, de fortes raízes emotivas. Saudosismo e complacência andam de mãos dadas: pelo fato de nos trazerem belas lembranças ou nos despertarem suspiros por um mundo que nunca foi daquele jeito e nem poderia ser, perdoamos filmes maus ou medíocres, ainda mais quando revivem o rosto de uma atriz amada ou uma trilha-sonora particularmente venerada. Mas, basta um pouco de lucidez e a embriaguez se desfaz. A operação de cálculo comercial, com sua chantagem emocional, seu melodrama caça-níquel, logo transparece. Ninguém que se puser a rever “Amores clandestinos”, por exemplo, poderá deixar de ver, depois de anos e anos de cinema, que Sandra Dee era bonitinha e má atriz, Troy Donahue era um ator ridículo, e que aquilo era um dramalhão comercial de Delmer Daves embalado pela música – extremamente popular naquele fim de anos 50 no Brasil – do compositor Max Steiner, autor de tantas trilhas famosas para Hollywood. Pior ainda, no filme, era o casal dos pais dos jovens lindinhos, Richard Egan e Dorothy McGuire. As bancas andam cheias de DVDs desse tipo, afora musicais esquecidos e outros itens embolorados.
Thomas Mann dizia, em “Morte em Veneza”, que “o anseio é produto de um conhecimento falho”. Verdade: basta que se as conheça precisamente, e as coisas perdem facilmente seu ar fantástico e encantador. No caso da Nostalgia no cinema, o anseio é derivado de visões parciais, fragmentadas, de deslumbramentos não claramente compreendidos quando aconteceram, e os filmes são mesmo assim – as emoções que produzem não podem ser dissociadas de estados de espírito datados, coisas que sentimos em certas épocas e que são irrecuperáveis. A ingenuidade morre, e de modo irreversível.
Com os olhos abertos e a carga infalível da experiência, fazemos a viagem retrospectiva ao adquirir o DVD este ou aquele, e não é mais aquilo de modo algum. Outro dia, encontrei numa banca um senhor de seus 60 e tantos anos que me jurava que havia determinada cena num faroeste de James Stewart, dos dirigidos por Anthony Mann, que ele venerava e que ele o comprara por isso. Daí viu que o filme não tinha tal cena, e ficou irritado, mas era possível que houvesse se confundido, que o filme fosse outro, e títulos na cabeça de espectadores comuns, bem como atores (nem se fale de diretores) se perdem e confundem. Tais confusões são comuns, e ainda mais porque a Nostalgia é um apelo especialmente para pessoas que já começam a fenecer e ver os dados da memória se embaralharem. No caso dele, não queria, teimoso, renunciar ao seu ponto de vista. O filme tinha que ter aquela cena, ponto final, e ela devia ter sido cortada na edição do DVD – não era ele que estava errado de modo algum. Também reclamou que o filme não era tão bom como lembrava, mas, quando lhe perguntei quando o tinha visto, disse que lá com uns vagos 15 anos. “O senhor mudou muito desde então, não é mesmo?”, disse, brincando. Pareceu perplexo. Não havia pensado nisso – que entre sua visão de adolescente e sua visão atual, de sexagenário, haveria no mínimo um abismo a levar em conta. Nada permanece intacto, nós mudamos, mas como é difícil para certas pessoas admitir essa coisa tão óbvia, no terreno das emoções! Imaginamos sempre que certos tesouros têm o dom da eternidade, não os percebemos condicionados ao tempo como são. Deliramos, mas ai de quem duvidar da validade do nosso delírio...
Fiz duas dessas viagens, recentemente, a dois mitos de cinema que aprendi a amar muito depois dos tempos em que já eram artigos fanados: Marlene Dietrich e Vivien Leigh. Nasci em 1952 e comecei a ver filmes ainda garoto, no início dos anos 60, e, na época, Marlene Dietrich e Vivien Leigh eram nomes célebres de gerações bem passadas. Faziam ainda cinema, mas como autênticas grandes damas envelhecidas e respeitáveis em produções esparsas, e de Leigh ainda vi, sem entender nada, o filme em que ela era uma senhora madura e decadente convivendo com Warren Beatty bem jovem em “Em Roma, na primavera”. Quando vi Marlene pela primeira vez, foi em alguma reprise do “Testemunha de acusação”, filme em que já estava madura, não era mais a estrela ímpar dos anos 30 (mas, dirigida por Billy Wilder, tinha uma boa interpretação).
Dei azar: peguei para ver “Marrocos”, o mítico “Marrocos” de 1930 com que Marlene pisou em Hollywood, dirigida por Joseph Von Sternberg, que já a tinha lançado no sucesso internacional de “O anjo azul”. Se não houvesse ficado tão irritado com a tremenda afetação e o ritmo morto da produção, talvez houvesse dado grandes risadas, tal o ridículo da história e das interpretações. O filme é de um tempo em que o cinema falado era ainda uma novidade e os diálogos têm entre si intervalos em que os atores ficam olhando uns para os outros por tempo longo demais, não há ritmo ágil e as réplicas não surgem com a enxutez com que nos acostumamos, são preenchidos com um langor abestalhado, porque vazio de significado. Bons atores talvez houvessem superado isso, mas Marlene não se preocupava em ser uma atriz, era uma estrela, uma escrava de “atitudes” e figurinos, e Von Sternberg abusou dessa sua condição de manequim peixe-morto e insolente por muito tempo.
Ela faz uma cantora, Amy Jolly, que chega a Marrocos com um passado obscuro, sobre o qual se pode especular, e se apaixona por um soldado da Legião Estrangeira que a aplaude num show de um cabaré decadente. Tudo é mero pretexto para Von Sternberg exercitar sua paixão pela fotografia (de Lee Garmes) e é de uma frivolidade estúpida, com Gary Cooper jovem, bonito e boçal parecendo mais objeto sexual do que Marlene, visto que é adorado por todas as mulheres que circulam pelo filme. Marlene, o que faz? Andrógina, vestida de paletó e gravata, dá um beijo numa mulher do público, tira uma rosa que estava com esta e a joga para o legionário Cooper. Por isso, o filme é considerado o máximo em ousadia, e acho que ninguém nem prestou atenção ao resto. Que, por exemplo, a paixão que ela tem pelo legionário é um primor de masoquismo e submissão, e no final ela até tira seus sapatos de salto para segui-lo, junto com mulheres árabes que seguem seus bravos guerreiros machões, pelo deserto. Se ele vai prestar atenção ou não a ela, parece pouco importar: é o supremo sedutor cafajeste, o homem, o dono da jogada, e a ela cabe se submeter com total cegueira e idolatria, é “apenas uma mulher”, ora. Tudo isso é assistido por um pintor milionário (Adolphe Menjou) que não tem aparentemente o que fazer e passeia pelo mundo e está em Marrocos não se sabe por que, e se apaixonou tanto por ela (ou teria sido por Cooper?) que incentiva todas essas atitudes, com a generosidade absurda do corno mais manso e inverossímil que já existiu na tela. O filme é lixo glamouroso, como a maior parte do que Marlene fez com Von Sternberg, e, a meu ver, há uma condescendência grande demais com esse tipo de produto até hoje. Marlene, com aquela beleza, claro que era objeto de culto, mas parecia encarar sua carreira de atriz como um apêndice de sua condição de estrela e nada mais.


Vivien Leigh, que era essa coisa rara – uma estrela lindíssima e uma atriz de alto talento – é outra história. Há algo de verdadeiramente trágico na vida dessa mulher, cuja beleza nos arrepia mesmo quando os filmes são melodramas absurdamente rançosos como “A ponte de Waterloo”, em que faz uma bailarina que, por passar fome na guerra, acreditando que o seu homem (Robert Taylor) morreu em combate (segundo o que lê num jornal que dá as baixas militares), vira prostituta, e um dia, quando ele volta, acha-se tão indigna dele que se joga sob caminhões bélicos. Era um desperdício colocá-la em filmes assim, mas Vivien era mesmo de um talento miraculoso e sobrevivia até a esse lixo sentimental todo. Teve uma carreira cinematográfica confusa devido à sua obsessão pelo teatro e por Laurence Olivier e fez filmes duvidosos em que só ela acabava valendo. É o caso de sua “Ana Karenina”, dirigido por Julien Duvivier em 1948, que só vi agora, depois de conhecer a mitológica feita por Greta Garbo em 1935 e uma mais recente (1997) feita pela atriz Sophie Marceau. A heroína de Tolstoi é perfeita para Vivien, mas o filme é muito morto e adapta o escritor de modo convencional, reverente e apagado. A versão existente no mercado, ao menos a que me chegou às mãos, está péssima em som e imagem, uma mutilação da fotografia de Henri Alekan. É, aliás, outro dos riscos desse mercado de DVDs clássicos que se instalou nas bancas: desconfiar da qualidade é preciso, porque todos vêm lacrados e não raro guardam defeitos revoltantes.


RECICLAGENS E RAPINAS

Acredito que, com os VHS e DVDs, tendo acesso a todo o passado cinematográfico, fomos aprendendo todos, cinéfilos ou críticos, a amar um cinema que não foi em absoluto o da nossa geração, nosso tempo, que nos chegou embalado no prestígio de eras recobertas por boa quantidade de “nobreza de antiquário” ou bolor. Os brilharecos do passado nos ofuscaram. Aumentaram a nossa cultura cinematográfica, mas também nos tornaram mais indulgentes e acomodados e às vezes até mesmo cegos. Os anos 60 foram violentamente desmistificadores, e os 70 fizeram também de suas misérias com os mitos românticos e os heroísmos e as hipocrisias do passado hollywoodiano, mas, quase como numa reação compensadora, meio que ressentida e vingativa, os 80 foram muito reverentes na reciclagem das velhas formas de fazer cinema, e aí a Nostalgia se instalou comodamente – foram revividos os policiais noir (“Corpos ardentes”, “Chinatown”), as aventuras de seriado (“Indiana Jones”) e toda a limitação dos filmes de gênero com o artificialismo das poses e estereótipos clássicos – o que pareceu atingir o ápice com o “néon-realismo” de Francis Ford Coppola em “Do fundo do coração”. De repente, referindo-se ao Cinema, exibindo-se repletos de citações e preciosismos saudosistas, os filmes ficavam como que eximidos de crítica, e o que houve foi, sob muitos aspectos, um passo para trás. Os 90, mais violentos, paródicos e cínicos, foram apenas reforçando defeitos de uma indústria cada vez mais predadora e cada vez menos preocupada com disfarçar sua cupidez e falta de qualidade, e aí já nem mais importava a reciclagem dos mitos e velhas formas. Desde então, os buracos terríveis da indústria só fizeram aumentar e o vale-tudo, contanto que dando lucro, começou a ficar insano.
Pauline Kael, a maior crítica de cinema que os EUA já tiveram, deixou de fazer crítica nos anos 80, não aguentava mais. Não sei o que pensaria, se viva estivesse, e ainda ativa. Como teria reagido a coisas como Adam Sandler, Mike Myers, Steven Seagal, Vin Diesel etc etc etc? O que é que estaria achando bom, hoje em dia?
Em todo caso, é dela o livro que recomendo para os que quiserem entender os mecanismos da indústria e como o cinema, mesmo o melhor cinema nostálgico, foi parar no cemitério da televisão ou se degenerou na mão de produtores cujo máximo interesse é o lucro óbvio e que fazem tudo para que o público fique à sua mercê. Com todo o aparato publicitário que está à sua disposição, esmagador, a verdade é que vencem a batalha, porque a publicidade é a grande sedutora de nossa época e quem acha que o público em geral está disposto a ser crítico se engana redondamente. Uma coisa empurrada à força, formulaica, pobre, estúpida, como a maioria dos filmes no momento é, pode ser um grande sucesso ou será um sucesso médio, mas ignorada não será. A estupidez dita as regras, o comércio descarado encontra receptividade no público e vai prosseguindo, que ninguém se iluda. Kael viu isso no fundamental “Criando Kane”, que saiu no Brasil pela Record. Todos nós precisamos ler e reler este livro.