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quinta-feira, 26 de julho de 2018

“Hannah” (2017): à beira do abismo

Um plano fechado de uma mulher idosa a testar a garganta à exaustão, como a querer botar para fora as entranhas. O rosto rubro vagarosamente readquire as cores naturais, enquanto, offscreen, ruídos análogos preenchem a cena, refletidos pelos seus olhos – pelos seus olhos e pelo seu rosto crispado, sustentados diante de nós, espectadores, com uma insistência que beira a soberba. O plano se abre, situando a protagonista em meio ao som ambiente e, enfim, ao grupo de teatro junto do qual ela realiza sucessivos exercícios que, embora aparentemente nonsense, parecem reverberar o desassossego que lhe vai na alma. 
Hannah apresenta-se ao público entre gritos de ficção e giros em falso, evocando num só tempo o papel catártico/ profilático que desempenha a arte, ao criar aparências do mundo, e a essência da qual a personagem, enquanto ser de ficção, é feita: como o palíndromo de que se constrói o seu nome, cabe a si rodar em círculos, voltar-se sobre seus próprios passos. 
A narrativa (dirigida por Andrea Pallaoro, autor do roteiro com Orlando Tirado) é protagonizada pela imensa Charlotte Rampling, a provar que não há limites a uma atriz. Por conta dela, damos de ombros para a ocasional falta de timing e para o excessivo erratismo da obra. A narrativa subjetiva, elíptica como o esforço da mulher de esconder – do mundo e de si mesma – o segredo em torno de seu marido recentemente aprisionado, sustenta-se graças à maestria desta atriz. Aberto às mais ínfimas nuances, o seu rosto materializa, tal e qual paisagem, o poder da arte de inventar mundos. Admirá-lo é admirar a essência do próprio cinema. 
O suspense que o filme cria no que toca ao crime cometido pelo marido, que me aborreceu à primeira vista (autores vêm continuamente lançando mão da alinearidade e das lacunas, num esforço de salvar enredos frágeis), foi crescendo dentro de mim depois que saí do cinema. A subjetiva indireta que organiza a narrativa salva o roteiro da inanição. Ao olhar o mundo por meio dos olhos da personagem, a câmera coloca num primeiro plano as suas sensações, enxergando com lente de aumento, junto com Hannah, o plot que a faz girar em falso. 
A história se costura entre as idas e vindas desta senhora, das aulas de teatro à casa dos patrões, onde trabalha como doméstica. Em sua casa de classe média, as primeiras interações com o marido prenunciam os desdobramentos da história: o silêncio, o companheirismo obrigatório. No outro dia, ambos se aprumam, ele despede-se do cão da família, ela o deixa na delegacia. Volta para casa, para o cão que espera o dono em vão. Tenta sem sucesso contato com o filho e o neto. Segue ao trabalho, onde os jovens patrões e o garoto cego são uma espécie de família substituta, tratando-a, os patrões, com uma distanciada politesse (a história se passa na Bélgica, e Rampling fala francês à perfeição). Ali, como em tudo, o calor humano é comedido. 
Depreendemos o drama a partir dos interstícios. O filho não mais deseja ver os pais. Ficcionalizando ao marido um encontro amistoso que teria tido com rapaz, no dia do aniversário do neto, o pai diz que nunca perdoaria o filho. Mais tarde, Hannah encontra fotografias que ela olha e descarta com asco, na lixeira comum do prédio. O velho é provavelmente um pedófilo, mas o filme não se debruça sobre a questão; não se volta aos julgamentos morais, já que o que está à baila é o lugar de Hannah nesse seu mundo que se desmorona. 
Um achado cinematográfico é o trabalho com a luz, a bipartição do quadro entre a obscuridade e a clareza: o jardim florido da casa dos patrões, banhado pela luz matinal, e a escuridão do closet onde a personagem guarda as roupas recém-dobradas. A escuridão já havia, na mesa da cozinha, descido sobre a personagem e o seu marido, o qual, ato-contínuo, troca a lâmpada que queimara. Hannah está todo o tempo a flertar com as luzes e as trevas, nesta circularidade que lhe é consubstancial. 
É na arte que ela vislumbra alguma possibilidade de salvação. Porém, a história resvala para uma melancolia infinita. Se, entre os colegas das aulas de teatro, ela encena com o marido a separação – “Nada mais pode haver entre nós. Eis aqui a minha aliança” –, na vida real o divórcio de corpo e espírito é impossível: há a longa vida pregressa em comum, impossível de se sepultar; há o repúdio incontornável do filho. 
A arte não pode oferecer senão flashes momentâneos de luz. O enredo roda em torvelinho com a personagem, e imagem mais bela disso é a sua fuga desesperada da aula de teatro, pelas escadarias circulares do metrô, até a sua chegada à plataforma. O salto no abismo, esperado, porém sustado, com que o filme se fecha, acena para o eterno recomeço – da narrativa e do desespero da personagem. E acena, por fim, para o incontornável papel da arte, tábua de salvação (às vezes demasiado rasa) diante da gratuidade da vida.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

“45 anos” (2015): a perpetuação do passado e a finitude da vida

Andrew Haigh rodou o filme mais melancólico, desesperançado – realista, portanto – a respeito daquilo que outrora chamávamos de “o inverno da vida”, e hoje recebe o rótulo eufemístico de “a melhor idade”. 
“45 anos” flagra a semana que antecede o advento das bodas do casal Kate e Geoff Mercer  os maravilhosos Charlotte Rampling e Tom Courtenay. Aos preparativos da festa, realizados pela mulher com uma praticidade britânica, soma-se um evento inusitado, cuja relevância acabará por se revelar aos poucos: a polícia alemã encontra, intacto, o corpo da antiga namorada de Geoff, enterrada havia décadas sob o gelo dos Alpes. 
À decodificação da carta, escrita num alemão já incompreensível ao velho que fora um desbravador na mocidade, segue-se o paulatino desvendamento de um passado há muito enterrado, porém, pujante como se sempre houvesse estado presente. A manutenção da integridade do corpo de Katia metaforiza a perpetuidade de sua presença na vida do homem, recordação que ganha corporeidade quando a jovem surge rediviva, devido ao súbito descongelamento da geleira que a abrigava. 
O filme é artificioso; obriga uma fruição mais cerebral que afetiva. Traça quase que palpavelmente, entre o casal, duas retas que apontam para direções diametralmente opostas: à medida que a festa das bodas – renovação simbólica dos laços matrimoniais – vai se aproximando, mais Geoff se afasta da história que construíra com Kate, mais se achega à sua história pregressa que o destino irônico novamente trazia à baila. 
O instinto guia-o até o sótão, à arqueologia do passado guardado entre os diários da vida aventureira do jovem casal e as fotografias de Katia, dispostas numa centena de slides. Katia pulsara entre aquelas linhas e fotografias, as quais adquiririam valor de incontornável presença uma vez que seu corpo ressurgira agora, passadas quase cinco décadas, intacto às vicissitudes do tempo. 
Haigh conduz a dupla de atores com um distanciamento prescrutador que faz toda a diferença à trama. É partidário dos silêncios, dos travellings às paisagens invernais – que se transformam em personagens, ao mesmo tempo em que revelam as psicologias do casal protagonista, dos fora de campo – as tomadas do vazio, as personagens mal-enquadradas –, que deixam o espectador à deriva. 
Não o fizesse, correria o risco de transformar sua obra num meloso drama familiar, repleto de discursos e, enfim, de lágrimas catárticas que têm a pretensão de solucionar o insolucionável. “45 anos” é um respiro em meio ao amontoado de tramas tolas a tematizarem o envelhecimento, que aparam as suas arestas, enquadrando os casais da terceira idade no rol dos pombinhos das comédias românticas, como sem nem corpo, nem espírito os separasse. 
Andrew Haigh dá ao tema o enquadramento trágico que ele merece. A finitude é o seu tema. A decrepitude do corpo e da mente surge como forma e fundo, no filme: o andar vacilante de Geoff, a falência sexual, os vazios, a introspecção, a meia-luz, e, enfim, a volta mental ao passado, e ao mundo de caminhos que ele abria. E o catalizador deste retorno ao passado é, sub-repticiamente, o cinema: o corpo congelado de Katia, infenso ao galgar dos anos, é metáfora da mumificação do passado, tornada possível pelo daguerreótipo, pela fotografia e, enfim, pelo cinema – onde o passado torna-se, segundo Bazin, “múmia em mutação”. O retorno empírico do corpo da mulher amada – e do filho nunca nascido de ambos, que ela esperava – supera, claro, o caráter indicial da imagem cinematográfica de que fala o teórico francês, mas acena para ele. 
A história da recepção das imagens oriundas de dispositivos tecnológicos está coalhada de registros ora deleitantes, ora assustadores, desse passado em conserva. Numa crônica ainda dos tempos do kinetoscópio, 1894, Olavo Bilac chamaria Edison sardonicamente de “Jack – o estripador – da fantasia”: “E imagina que horror: o gesto amoroso repetido ao infinito, durante uma, durante cem horas, cem semanas, cem anos!”. 
Duas décadas e meia mais tarde, Mário de Alencar seria mais doce, não sem deixar de registrar tudo o que de terror há nesta exegese. O conto é Coração de Velho, uma obra-prima que, escrita em 1920, recupera o pensamento cientificista do XIX: morta a esposa doente e casmurra, o velho Salles – a quem o passamento da consorte fora um alívio – tromba com um daguerreótipo da mulher quando ainda era uma jovem noiva. Tal e qual Geoff, vê o passado irromper em trambolhão: 
Em torno dele tinha-se desvanecido a atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, preocupadas totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. 
O desfecho de Salles prenuncia o de Geoff – deixado em aberto pelo filme, porém anunciado, naquela soberba sequência final do salão de festas que, embora repleto e festivo, nem por isso deixa de patentear vaziez e solidão: termina imerso em passado, escrevendo poesias à jovem do daguerreótipo – vivíssima em espírito, embora desaparecida em corpo. Uma vida puramente imaginativa. 
Como Geoff, cujos últimos 45 anos foram erigidos obedecendo a uma linha de continuidade com a história que lhe fora usurpada, a esposa presente ocupando o lugar de substituta da falecida. No plano final da Kate de Charlotte Rampling, que ao som de Smoke gets in your eyes percebe que fora obnubilada durante toda a vida, emerge uma aridez que, apesar de pertencer à personagem, igualmente aponta para uma questão universal: o envelhecimento – e todas as escolhas referentes ao nosso passado com as quais temos de arcar – e, enfim, a finitude, ponto de chegada incontornável da vida, malgrado tentemos voltar-lhe as costas.
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Os interessados no conto de Mário de Alencar podem lê-lo por aqui.