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quarta-feira, 11 de junho de 2025

A idílica primavera de Robert Z. Leonard: “Maytime” (“Primavera”, 1937)


Este artigo desdobra o anterior, “Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)”, em que eu procurei fazer um balanço dois oito filmes rodados pelo casal de cantores-atores. Meu intuito primeiro era abrir, ali, um subtópico para a reflexão sobre “Maytime” (“Primavera”, 1937), mas a distância entre o sobrevoo e o mergulho vertical me pareceu pouco orgânica, motivo pelo qual retorno aqui à dupla. 
E volto com um instrumental novo (e de fôlego), já que, desde o último post, a sempre generosa Luciana Araújo enviou-me os textos que o crítico José Lino Grünewald escreveu sobre “Maytime” entre 1963 – momento em que a obra foi reprisada nos cinemas, junto com outras do mesmo gênero – e 1964, recolhidos parcialmente por Ruy Castro no livro Um filme é um filme (2001). 
 Este trabalho obriga-me a um olhar perspectivo que soma, numa mesma medida, lucidez e nostalgia. Por um lado, estou distante 60 anos de Grünewald; período permeado pelo desenvolvimento do Home Video e do digital, que me permitiu adquirir essa obra (e as demais do casal) em meados dos anos 2000 (o copywright da distribuidora Classic Line data de 2006). Mas estou igualmente distante da cinéfila de 20 e poucos anos que o visionou pela primeira vez. Então, o retorno a ele é, também, o retorno àquela jovem e ao encantamento que a obra lhe gerou pela primeira vez. 
“Maytime” é o terceiro filme do casal, e seria um dos quatro que o diretor norte-americano (que nesta película também atua como produtor) Robert Z. Leonard rodaria dele – embora o IMDB também liste Edmund Goulding como seu coautor, apenas o nome de Leonard surge nos créditos iniciais, formado por pétalas de flores rapidamente espalhadas pela correnteza do riacho, ao som do leitmotif “Will You Remember”. 
É um filme miraculoso, que faz uso de toda a parafernália da indústria do cinema para dar o salto inventivo. Como todos os musicais americanos, nele multiplicam-se os cenários faustosos – vertente cinematográfica dos cenários dos espetáculos teatrais cômico-musicados amados pelos públicos daqui e d’além-mar na dobra do século XIX para o XX. E multiplicam-se os inúmeros figurantes, os figurinos sofisticados que visam à recuperação da época do império de Louis Napoléon, ou Napoleão III, que governou a França primeiramente por voto direto e, em seguida, por meio de um golpe de estado, permanecendo no poder de 1851 a 1870. Por fim, os investimentos daquela que era uma das mais poderosas indústrias norte-americanas torna possível o emprego de recursos cinematográficos complexos, que ainda hoje nos deixam sem fôlego, provas patentes da técnica desdobrando-se em arte. 
“Maytime” vale mais pela sua cinematografia que pelo seu enredo. Como Hitchcock, que transformava novelas e contos de suspense medianos em obras-primas, Leonard – vou respeitar os créditos do filme e mencionar apenas ele como o seu diretor – toma um comezinho entrecho melodramático e o transcende. 
O filme conta a história de Marcia Mornay, jovem prima-dona norte-americana aluna do renomado professor Nicolai Nazaroff (John Barrymore) e, no decurso da história, apaixonada pelo estudante de canto lírico Paul Allison, de quem ela abre mão para se casar com o mestre, com o qual já havia se comprometido. Todavia, não consegue esquecê-lo. Anos mais tarde, ambos se reencontram nos Estados Unidos, num mesmo palco, como co-protagonistas; e o amor silenciado emerge aos olhos de todo o público da estreia da ópera que cantariam e de Nicolai, que acaba por matar o jovem. O final da história retoma o seu começo: Marcia, agora a idosa Miss Morrison, reconta o passado a uma aspirante a cantora lírica a qual, como ela, tem a perspectiva de viajar à cidade grande com um professor que nutre por ela um interesse num só tempo artístico e amoroso. 
O entrecho acena à tradição melodramática, ao postular, como porto seguros, os âmbitos do lar e da família – a jovenzinha aconselhada por Marcia tinha um namorado. Todavia, o tradicionalismo do conteúdo caminha na contracorrente da modernidade da forma – a qual consegue mesmo colocá-lo em suspenso, tirar-lhe o ranço, dar-lhe suculência e sabor. “Maytime” é uma dessas obras-primas que a indústria do cinema vez por outra produzia. Num de seus excelentes textos publicado originalmente no Correio da Manhã (RJ), em 7 jan. 1964 (p. 1), denominado “Cinema ou máquina do tempo”, Grünewald chama a atenção para a estrutura dramático-sonora operística desta obra que é oriunda de um musical – com texto de Rida Johnson Young e música de Sigmund Romberg, que alcançou surpreendentes 492 performances, segundo a base de dados da Broadway, em cinco diferentes teatros, entre 1917 e 1918. 
A questão é desdobrada no n. do Jornal de Letras de set. 1964, coligido em Um filme é um filme. Diz o autor que “Maytime” é ópera em três atos e dois quadros, organizados, grosso modo, segundo a seguinte lógica: 1º- a festa da primavera frequentada pela idosa Marcia Mornay (agora Miss Morrison) e seu retorno à juventude, quando ela conquista reconhecimento de público e crítica; 2º- o encontro de Marcia com Paul Allison, um pobre e talentoso cantor lírico conterrâneo seu, a revelação do impossível amor recíproco, durante a festa da primavera; 3º- a passagem de sete anos, a consolidação de Marcia como cantora, o seu reencontro com Paul, num palco operístico onde ambos contracenariam, a renovação, em cena, de seus votos de amor, o assassinato dele pelo marido possessivo de Marcia e, enfim, o retorno ao início da narrativa e o reencontro simbólico dos eternos apaixonados. 
A reflexão de Grünewald sobre isso é elíptica e dialoga com problemas de seu tempo – neste caso, a questão do cinema de autor (essa sequência de textos dele sobre os musicais americanos é contemporânea às antológicas entrevistas que Truffaut fez com Hitchcock). Assim, ele procura destacar a proximidade do filme com a ópera e a sua distância da literatura, o que o tornaria um espetáculo puro. Consequentemente, ele pensa naquilo que transforma o filme em cinema, sobretudo no que concerne ao âmbito da visualidade, o que o faz explorar pouco o ponto de vista musical. Além disso, não podemos passar ao largo do preconceito do crítico com relação ao gênero melodramático – que, mais que literatura, é também um teatro (profundamente musical) –, outro fruto de seu tempo. O exercício de se olhar perspectivamente esses textos densos e realmente apaixonados pelo seu objeto, segundo a nossa óptica contemporânea, é interessante, pois podemos fazer emergir as nossas questões. 
A visada de Grünewald é arguta. Do ponto de vista textual, a narrativa de “Maytime” corresponde à ópera (e também ao teatro melodramático), pois mergulha densamente em recortes temporais específicos, que antecederam a turning points na vida dos personagens, deixando de lado uma narrativa estruturada segundo nexos de causalidade mais claros. Todavia, quando consideramos a conexão afetiva estabelecida pela música, enquanto nos melodramas teatrais a sua presença é pontual (por exemplo, os atos usualmente fechavam-se com tableaux expressivos atravessados por ela), na ópera, que tem a música como sua espinha dorsal, tal conexão potencializa-se. Certamente, a potência do âmbito musical, na ópera, torna tragáveis mesmo enredos insossos e encenações pavorosas. Quando bem apropriada pelo cinema, e serve estruturalmente na concepção das imagens fílmicas – para além da trilha sonora –, a música multiplica a conexão afetiva do público com a obra. 
Grünewald faz longas considerações sobre o âmbito visual, descrevendo em detalhes a festa da primavera que é cerne do filme: as imagens abstratas formadas pelos arcos de flores dos casais dançando, os travellings, as fusões – exacerbação cinematográfica da ciranda emocional dos protagonistas. Efetivamente, a câmera de “Maytime” adquire asas, abre mão do realismo em prol da subjetividade e procura embebedar os nossos sentidos com o embebedamento dos sentidos do par romântico. 
O filme é tão moderno hoje, 88 anos depois de ser rodado, quanto o era com 26 anos de idade, momento em que Grünewald o vê em reprise. Mesmo hoje, com a facilidade dos drones, planos-sequência por ele criados raramente adquirem a profundidade, a visceralidade dos existentes no filme. 
Se na sequência da festa da primavera os usos da câmera atingem o paroxismo – há mesmo uma tomada em plano americano do rosto de Jeanette Macdonald que acompanha o seu deleite no balanço em que ela é empurrada por Nelson Eddy –, a excepcionalidade de seu uso é apanhada desde o início da obra: no plano-sequência que abre a primeira cena relativa à juventude de Marcia, que toma desde o palco do palácio de Napoleão III, desliza longamente pelos casais a dançarem e, após uma curva brusca à esquerda, toma a chegada dos convidados (por onde entrará Marcia, no debut de sua vida social junto à corte francesa) – esses perscrutamentos do geral ao particular abundam no filme, esforço, quiçá, de aproximar o tempo da obra do tempo da experiência (e que traquitana tornava possíveis tais prodígios, deus do céu?). 

Planos-sequência de um lado, e, de outro, potentes sínteses temporais, como aquela que costura os sete anos (número simbólico, associado a períodos de crise, transformação e aprendizado) da vida de Marcia ao lado de Nazaroff, sua ascensão como cantora, costurada musicalmente – pelo seu abraçamento de personagens cada vez mais densos, de Mozart a Wagner – e visualmente – pela presença contumaz da imagem de Paul junto de si, a partir de fusões e duplas exposições que unem as imagens de vias férreas e marítimas e o rosto em close do amado, símbolo da perenidade em meio à agitação vazia da vida dela. 
O filme é pródigo em metáforas visuais, as quais, embaladas pela música, potencializam respostas profundamente afetivas, como aquela do arranjo de flores de laranjeira ao som do leitmotif “Do you remember” – que, na festa da primavera, brotam num close antirrealista, primeiro enlaçadas e depois desenlaçadas, explicitando, num só tempo, o nascimento do amor e a impossibilidade do consórcio do par romântico. 
“Maytime” é repleto de enquadramentos inspirados, novidade para a época, conforme aponta Grünewald, que destaca, por exemplo, a multiplicação dos pontos de vista na cena em que o casal canta os estertores da (fictícia) ópera Czaritza; para além do campo e contra campo entre a plateia e os cantores, há tomadas a partir da coxia, do fundo do palco e das costas dos protagonistas, que registram, além do espetáculo operístico (e do turbilhão emocional vivido pelo casal, mimese daquele experimentado pelas personagens da ópera que representam), as reações de personagens fundamentais à narrativa: o produtor, a dama de companhia de Marcia e o marido dela. 
A novidade/modernidade/perenidade de tais enquadramentos é que eles colocam em questionamento a simetria clássica empregada no cinema, a exemplo da fotografia. Daí o uso de enquadramentos sujos planejados, que fazem emergir a desordem emocional, como o das costas dos protagonistas, na sequência da ópera, ou do duto de gás da sequência em que Marcia despede-se de Paul, depois do almoço na casa dele, em que ambos descobrem suas afinidades, a despeito da impossibilidade de ficarem juntos. 
“Maytime” compendia a gramática cinematográfica consolidada, ao mesmo tempo em que lhe abre novas possibilidades. Exemplo disso é o modo de filmagem dos espetáculos operísticos, que abandona os planos gerais e mergulha neles, dando de ombros à materialidade física do espaço onde eles ocorrem – como fazemos contemporaneamente nos registros desses espetáculos, o que transforma a ópera em cinema. Neste filme em específico, em que musical hollywoodiano e ópera se encontram por excelência, tais enquadramentos servem para traçar uma linha tênue entre a arte e a vida, entrelaçando Marcia e Paul aos personagens operísticos que representam. 
Tal entrelaçamento ocorre com inteligência no plano musical, no uso tanto da música oriunda da obra teatral de Romberg e Johnson Young quanto de óperas ou canções do repertório clássico – as quais inexistem no musical, ao menos a contar pela lista de canções dele compiladas na base de dados da Broadway. Das canções do musical, além de “Will You Remember?”, apenas “Road To Paradise” foi apresentada no filme, para o qual foram também compostas “Vive l'Opera” e “Ham and Eggs” (por Herbert Stothart, com letras de Bob Wright e Chet Forrest). Há no filme, ademais, a introdução de um conjunto bem escolhido de canções tradicionais americanas ou italianas, já impregnadas no imaginário do público, como “Now Is the Month of Maying” (de Thomas Morley, 1595!), “Plantons da Vigne” e “Santa Lucia” (sem crédito) e “Carry Me Back to Old Virginny (de James Alan Bland). 
Enfim, “Maytime” é todo costurado por trechos operísticos e de canções eruditas, os quais, ao mesmo tempo em que demonstram quão distante o roteiro, composto por Noel Langley, estava da peça teatral homônima, denotam que, neste encontro entre o musical e a ópera, os dois gêneros estão alinhados em páreo de igualdade: da canção de coloraturas complicadas “Les filles de Cadix” (de Léo Delibes), à patriótica “Le Régiment de Sambre et Meuse” (de Robert Planquette, sobre poema de Paul Gezano), escrita após a derrota francesa na guerra franco-prussiana – ambas cantadas pela fascinada prima-dona em ascensão na corte de Napoleão III –, à longa cena de apresentação e cavatina do pajem dos “Huguenotes” (de Giacomo Meyerbeer, letra de Eugène Scribe), que Marcia Mornay apresenta no palco da Ópera de Paris, sob o olhar encantado de Paul Allison, aos trechos crescentemente românticos e torturados de Donizetti (“Lucia di Lammermoor”), Gounod (“Faust”) e Richard Wagner (“Tannhäuser” e “Tristan und Isolde), que vemo-la cantar em pout-pourri, à medida em que correm, diante de nossos olhos, sete anos de sua ascensão profissional e distanciamento do homem que amava. 
A presença contundente do gênero operístico no filme coroa-se com o dueto final da ópera “Czaritza”, com texto em francês e música adaptada da Sinfonia n. 5 de Tchaikovsky, criada especialmente para o casal protagonista (o IMDB não informa quem compôs a sua letra, mas, a contar pelos créditos do filme, ela provavelmente ficou a cargo de Wright e Forrest, com adaptação ao francês de Gilles Guilbert, tendo cabido ao diretor e adaptador musical Herbert Stothard a acomodação da música de Tchaikovsky à cena operística). 
Se os trechos musicais populares e eruditos servem ao papel de grande espetáculo do musical hollywoodiano, também contribuem à tessitura dos caracteres e à contação de história, como acontece nas grandes obras do gênero. 

Marcia e Paul amalgamados às flores da primavera
na sequência final do filme
 
Destaque-se fundamentalmente “Will You Remember?”, que atravessa “Maytime”. A sua melodia principia por acompanhar a composição e o esfarelamento dos créditos do filme. A canção retorna num dos turning points dele, cantada, na festa da primavera, como declaração de amor de Paul a Marcia, sob as flores de um Parc de Saint-Cloud reconstruído nos estúdios da Metro. E, enfim, seus acordes são onipresentes nos estertores da obra: embalam, a princípio, a velha Miss Morrison, enquanto ela fita o desabrochar da vida nos albores da primavera; e, enfim, são cantados em dueto no clímax da história, em que uma Marcia eternamente jovem deixa o corpo de uma Miss Morrison morta ou adormecida, e percorre, com Paul, as aleias floridas da cidadezinha suburbana onde ela resolveu viver os últimos dias de sua vida. 
A cinematografia e a trilha sonora somam-se à escalação acertada do elenco e à qualidade das interpretações, dos coadjuvantes aos principais. O sanguíneo Herman Bing é um divertido e cálido August Archipenko, professor e, depois, empresário de Paul Allisson. Os physiques de Tom Brown e Lynne Carver cabem bem aos jovens pueris que representam, tecendo uma possível imagem de como seriam Marcia e Paul antes de ela ter se envolvido com Nazaroff e selado o seu destino. Rafaela Ottiano dosa sisudez e calor na construção da personagem de Ellen, a dama de companhia que compartilha uma vida com Marcia. Por fim, dentre os coadjuvantes, o lendário John Barrymore, que ascendeu em grande estilo ao cinema depois de se consolidar nos palcos como intérprete de papéis shakespearianos, é um perfeito Nicolai Nazaroff, de gestos contidos e olhares impermeáveis. 
Jeanette MacDonald/Marcia Mornay
no crepúsculo da vida
Além de química, Jeanette MacDonald e Nelson Eddy provam-se, em “Maytime”, intérpretes sólidos. A crítica contemporânea não erra ao dizer que ele reage à presença dela, mais que efetivamente atua – é um passional e enlevado Paul Alisson, o perfeito galã romanesco. Jeanette MacDonald é o cerne do filme, já que é a sua história, e o que a atravessa, que centraliza a narrativa. Quanto a analisamos a contrapelo de outras performances femininas da época, percebemos que seu trabalho é verdadeiramente excepcional, e surpreende o fato de ela não ter sido indicada a nenhum prêmio importante por ele. Jeanette consegue, de forma emocionante e inesquecível, com seu corpo e voz (e a variação filigranada de seu timbre), construir a curva dramática que a história demanda à sua personagem: da garota que descobre o mundo, cheia de luz e sonhos; à mulher macerada pela tristeza, malgrado a sua ascensão profissional; e, enfim, à senhora de voz ligeiramente rouca e olhos melancólicos que prontamente se iluminam quando ela se lembra daquela primavera que havia durado uma vida inteira, como rezam os versos da maravilhosa canção “Do you remember”: “Though our paths may sever/ Through life’s last faint embers, will you remember, springtime, lovetime, May”.
“Maytime” é uma dessas maravilhas que nos lembram para que serve o cinema. Ele é “máquina do tempo”, como lindamente coloca Grünewald, por permitir que a conjuntura existencial de dado momento seja novamente sentida, devido à “permanência de um temperamento” que as imagens filtram e cristalizam. E, pelo poder de perscrutação, síntese e de distensão do tempo que tem o cinema, ele é máquina de sonhos, mergulhando-nos nos corações e nas mentes de seres feitos de sombras – tão contemporâneos, nossos e nós, malgrado quase um século nos separe deles.


terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.

sábado, 2 de outubro de 2010

Judy Garland em cena: um filme e um show


Judy Garland é uma das estrelas de cinema que mais me atraem. Mais que admirar seu trabalho sempre competente como atriz e cair siderada quando a ouço cantar, fico fascinada com a relação de amor e ódio que ela desde sempre travou com o show biss.
Filha mais nova de um casal de artistas de vaudeville de Minnesota, Judy praticamente nasceu nos palcos, nos quais ingressou profissionalmente aos dois anos, quando, reza a lenda, arrebatou o público com sua interpretação de "Jingle Bells"... Sua voz lhe abriu as portas da poderosa MGM, que a rebatizou - até então ela era era Frances Ethel Gumm - e tomou para si a tarefa de transformar a adolescente gorducha numa jovem longilínea que fosse desejada pelas plateias de todo o mundo.
O movimento, comum à Hollywood do star system, deixou na moça marcas tão profundas quanto deixara anos antes em Greta Garbo. Em 1939, ano em que Garbo emplacou seu último grande sucesso de bilheteria e de crítica (o imperdível "Ninotchka"), Judy despontou para a fama no "Mágico de Oz". A ele se seguiu uma série de filmes que rodou com outro queridinho de Hollywood nos anos dourados do cinema, Mickey Rooney (com quem já havia trabalhado num filme da série "Andy Hardy", protagonizada pelo ator). O sucesso dos filmes da dupla tornou-a uma das principais estrelas da galáxia da MGM, porém, também foi o deflagrador da dependência química que acabaria por levá-la à morte em 1969, quando ela tinha apenas 47 anos. Em quantas histórias reais e ficcionais como essa a indústria do cinema não desempenhou papel análogo de mãe que se revelou madrasta?...

O passeio pela biografia da nossa Frances Gumm não aparece aqui por acaso. Os tropeços da jovem atriz na trajetória pela estrada pedregosa da fama estão impressos em sua obra, e é isso que a torna tão notável. Selecionei aqui duas de suas produções que me agradam muito - e por motivos diferentes. A primeira é "Strike up the band" (1940), segunda das quatro películas que ela rodou com Mickey Rooney; a segunda é o "Judy Garland Show", série televisiva veiculada pela CBS entre 1963 e 1964.


"Strike up the band" é um daqueles descontraídos musicais que Hollywood rodou desde que começou a falar, em torno de 1929. A fórmula de sucesso do gênero é seguida quase que religiosamente. Nele estão presentes artistas conhecidos, bom humor, romantismo, canções de compositores queridos pelo público e números musicais de tirar o fôlego. No entanto, o filme se destaca pela deliciosa sequência "Nell of New Rochelle", interessante não apenas pela leitura crítica que faz da tradição teatral, como porque alude ao próprio passado artístico de Judy, que cresceu nos populares palcos do vaudeville dos anos 20.
O fio que liga a ação desse musical é tênue: As personagens de Judy e Mickey são dois jovens do interior que sonham com a fama. No intuito de conseguirem dinheiro para levarem a Nova York seu grupo musical, os jovens colocam em cena "Nell of New Rochelle", melodrama "cheio de palavras antigas" que haviam escrito.


A bem humorada sequência dá uma aula de história do teatro. O enredo encenado é totalmente tributário dos melodramas que eram sucesso de público na Europa e na América desde 1800.
Nela estão presentes as personagens tipificadas - Nelly é uma pobre moça que vive de esmolas, é perseguida por um vilão bigodudo que tem voz cavernosa e risada macabra, e é salva por um belo cavalheiro; a moral burguesa é defendida de modo escolar pelas personagens, quer por meio de discursos, quer de canções; e todos terminam felizes para sempre, depois da destruição do vilão pelo mocinho.
O melodrama constantemente visita esse blog. Não é um acaso. O gênero surpreendentemente nos persegue a todos, por meio dos enlatados cinematográficos e das telenovelas que ainda insistem em nos fazer engolir essa visão religiosa de que o mundo é justo, o casamento e a procriação são a finalidade maior da existência, and so on...
Portanto, não podemos deixar passar uma produção que zomba desses lugares comuns como esse filme (de 1940!) o faz. Recomendo fortemente a sequência aos leitores. Recostem-se com calma (ela tem 15 minutos). Certamente vão se divertir:



A sequência é fascinante pela recriação que faz do gênero.
Recriação cômica, bem entendido, pois embora os artistas melodramáticos precisassem exagerar nos gestos para imprimirem em suas fisionomias o que se passava nas suas cacholas, é certo que aqui tal exagero é elevado ao cubo. Porém, a maquiagem carregada do elenco, a voz sibilante da mocinha (e a voz rouca do bandido) e os diálogos verborrágicos não devem em nada aos melodramas protagonizados por artistas como Sarah Bernhardt. Não conheço a fundo a biografia de Judy Garland, mas é bastante provável que ela tivesse dado vida, nos palcos populares pelos quais passou, à personagens da estirpe de Nell of New Rochelle. A atriz sublinha de modo formidável o que de patético há em canções como "Heaven Will Protect the Working Girl" ("O céu protegerá a moça trabalhadora", de 1909) e "Come home, father" ("Volte para casa, papai", 1864), as quais levavam os espectadores de fins do século XIX e começo do XX às lágrimas, canções cuja pobreza conceitual salta aos olhos quando vistas com algum senso crítico. "Strike up the band" mostra de modo cabal que enredos e personagens frágeis como esses apenas podem ser ressuscitados pelo viés do humor. Escolha de mestre a do diretor Busby Berkeley, cuja contribuição à história do cinema não se resume aos estravagantes números de caleidoscópio, como pensam muitos.
E nesse filme Judy ainda dava os primeiros passos rumo àquele espantoso domínio de cena que ela demonstrará anos mais tarde, e que está todo contido no "Judy Garland Show".

Mickey Rooney, já então um mocinho de 20 anos e com impressionantes 14 anos de experiência nas telas (e - pasmem - hoje, aos 90 anos, ele ainda continua na ativa), parece ter exercido papel de destaque no desabrochar da atriz como profissional. Sua participação na série televisiva de Judy prova-nos que a química do casal era fruto da afeição genuína que sentiam um pelo outro - e essa afeição foi fundamental para a sustentação da atriz que desde bem jovem vivia sob o efeito de calmantes e estimulantes.
Porém, se Mickey Rooney naqueles anos 60 ainda conseguia fazer Judy reviver a cômica que ela havia sido no teatro de vaudeville, os anos de consumo de drogas e o desdém com que a indústria cinematográfica passara a tratá-la deixaram-lhe marcas profundas. A soma desses fatores deu-nos, no entanto, uma atriz madura, complexa e completa. Por isso, a visita ao "Judy Garland Show" é programa obrigatório aos seus fãs.

Se Judy Garland já brilha como atriz, como cantora ela é incomparável. O domínio de palco e câmera que revela, a escolha do repertório e a incrível afinação oferecem ao público uma experiência estética de um nível poucas vezes suscitado por um intérprete num palco. Ao interpretar as canções que marcaram sua infância e adolescência, sua vida pessoal e profissional, Judy Garland consegue o casamento perfeito da mulher, da atriz e da cantora. Toda a complexidade da mulher está impressa no modo como ela interpreta canções como "A foggy day in London Town" (Gershwin), "San Francisco" (Kahn); "Old Devil Moon" (E.Y. Harburg e Burton Lane) e tantos outros clássicos. Em "A Foggy Day", seu desempenho começa contido e se intensifica conforme os olhos do eu-lírico da canção veem o amor iluminar o caminho onde antes havia uma neblina espessa. O mise-en-scène intimista e os primeiros planos por meio dos quais Judy é tomada dão relevo apenas à canção (demorei muito tempo para reencontrar essa gravação, que tanto me impactou quando a vi pela primeira vez no blog do Ricardo).



A voz de Judy Garland e seus gestos potencializam os sentidos das canções que ela escolhe. A especificidade do veículo onde essas pérolas foram veiculadas não é em nenhum momento negligenciada. Sobejam os primeiros planos da artista - a subjetiva direta, profundamente expressiva, aproxima-se mais e mais de seu rosto, parecendo captar o alvoroço de sua alma nas canções melancólicas ou sensuais. E quando invade a tela o rosto já macerado da atriz e seus grandes olhos inquirem o espectador, ela se torna muito humana e lindíssima.

Nunca imaginei que alguém pudesse superar a interpretação de Petula Clark de "Old Devil Moon". Judy consegue, pois injeta uma dose de desvario romântico na leitura desses versos, glosando assim a crescente intensificação do arrebatamento amoroso que eles suscitam:

You've got me flyin' high and wide
On a magic carpet ride
Full of butterflies inside.
Wanna cry, wanna croon,
Wanna laugh like a loon.
It's that old devil moon
In your eyes.





E nos momentos descontraídos, a atriz mostra-se tão senhora de si como quando dera vida a Nell of New Rochelle, em 1940. Exemplo disso é sua interpretação de "San Francisco", canção que ganhara as telas em 1936 no filme homônimo (denominado no Brasil "São Francisco, cidade do pecado") protagonizado por Jeanette Mac Donald e Clark Gable.
A canção era uma das preferidas de Judy, como nos atestam os vários registros que há da mesma nos álbuns da artista gravados a partir de seus shows. Em comum nessas gravações há a introdução de uma estrofe cômico-laudatória que parece ter sido composta pela própria Judy, na qual ela dizia que nunca se esqueceria como a "Brava Jeanette" cantava em meio das ruínas da cidade: "A-a-a-and saaaang", enfatiza ela, reproduzindo a interpretação que Jeanette fizera da canção - interpretação tão ao gosto dos anos 30, quando a performance das operetas teatrais ainda dava as cartas no cinema. E Judy leva o mimetismo às últimas consequências, numa apresentação que paga claro tributo ao número musical de sua antecessora. Trinta anos depois de Jeanette, Judy traz à canção o mesmo entusiasmo quase infantil que tomara a mocinha de "São Francisco, a cidade do pecado" enquanto ela entoava o hino da cidade que estava prestes a ser varrida por um furacão. Um misto de homenagem e bom humor bem Judy Garland que leva o público à loucura. Abaixo, a cena do filme "São Francisco" (colorizada, pois não encontrei a versão original) e, em seguida, Judy.






Meu primeiro ímpeto é acabar isso aqui lastimando a fatalidade que a levou tão cedo. Mas aí entro no You Tube e assisto aos excertos do "Judy Garland Show" nos quais ela arrasa cantando as canções que tanto amava; pego meu DVD do "Desfile de Páscoa" e revejo aquela cena incrível em que ela canta "Easter Parade" para Fred Astaire, uma de minhas preferidas dos dois artistas; volto ao You Tube e vejo mais uma vez sua interpretação de "Old Devil Moon" (canção que me persegue faz alguns meses); e acabo me decidindo pela manjada - porém, não menos sincera - conclusão de que Judy continua por aqui, vivíssima.


*
Nos comentários à postagem, os amigos trouxeram não apenas a Dorothy - que aqui apareceu apenas de passagem, largadinha sobre as flores do Mágico de Oz - como a Liza Minelli. Como agradecimento pelas leituras carinhosas que o post recebeu, divido com todos o número de "Over the rainbow" do qual tomam parte a mãe e a filha - bela sequência do show que ambas realizaram no London Palladium em fins de 64. Depois de afirmar "Oh, I sang this song for so many years", Judy pede ajuda da plateia. Olhem...

12 out. 2010

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um filme antigo, um livro antigo e uma emoção sempre nova

Tenho nas mãos as duas mais deliciosas descobertas que fiz nesses últimos tempos: um livro de António Ferro, um filme de Ernst Lubitsch. Os dois me permitiram casar deleite e vida profissional - melhor que isso, impossível. O livro, na verdade, são dois. Hollywood, capital das imagens e Novo mundo, mundo novo, compilação das crônicas sobre os Estados Unidos que o escritor português publicou numa das folhas de seu país. No título, referi-me ao segundo, que me proporcionou o prazer de recortar suas folhas antes de iniciar a leitura - prazer do qual só podemos usufruir, hoje, ao termos a sorte de comprar um livro antigo cuja cópia nunca tenha sido lida.
Minha viagem pelo Mundo Novo desfraldado por António Ferro já começou empolgante, empolgação que só fez crescer à medida em o escritor, jornalista do Diário de Notícias, se aproximava de seu destino principal: a Hollywood dos anos 20... Difícil um cinéfilo não invejar a aventura do intelectual, que, além de publicar seu encontro com Mary Pickford e outras "estrelas" e "astros" do "écran" (como essa palavra é repetida por ele...), ainda estampa, no primeiro livro, sua fotografia com Douglas Fairbanks. Difícil um analista crítico da Hollywood dos anos dourados não se surpreender com a empolgação, a paixão, o abandono com que o escritor olhava as ruas, hotéis, cenários e artistas que povoavam aquela terra de sonhos.
Olhava para deslindar aos seus patrícios a verdadeira capital do cinema, aquela em que uma rua deserta do far-west dava numa rua gelada de Nova Iorque, em que as cabines de passageiros de um navio ficavam a quilômetros de distância de sua proa. Mas, mesmo depois de conhecer a realidade, e de insistir para que a "pequenina luz que sonha com as estrelas" não deixasse Portugal imaginando uma vida de celebridade em Hollywood, mesmo assim o cronista não deixava de olhar com fascínio para a ficção que surgia dessa realidade tão disparatada. Seu enamoramento por Mary Pickford é prova disso: "Basta dizer Mary... Mary Pickford, casada com Douglas, está casadinha, também, com os olhos de todos, olhos amorosos, olhos que a beijam... Amor respeitoso, amor cristão... Mary Pickford é a Nossa Senhora da Luz Branca!...".
Que bonitinho!... Fascinante conhecer uma opinião tão apaixonada vinda do tão ajuizado escritor modernista. Porque, afinal de contas, quem não se sente mais ou menos assim ao assistir a um filme favorito? Mesmo que os extras do DVD divulguem os detalhes que se escondem por detrás das lentes da câmera, continuamos rindo e nos emocionando com as histórias por ela contadas.
Por exemplo, com "Alvorada do amor" (The love parade), o primeiro filme sonoro dirigido por Ernst Lubitsch, ainda em 1929 (na alvorada do som) dois anos depois da visita de Ferro a Hollywood. Embora Ferro tenha dito não gostar "de fitas faladas", é bem provável que tenha visto esta, pois deixa claro a admiração que sentia por Maurice Chevalier - na película, o namorador de Silvânia que é convocado de volta a seu país depois de escandalizar a já escandalosa Paris. Sobre ele, Antonio Ferro diz: "O êxito de Maurice Chevalier é a sua completa adaptação ao espírito da época. Maurice é o tipo-símbolo, a soma de muitas parcelas: dandismo do faubourg, perfume de boîte-à-chansons, sabor de garçonnière, passos da Broadway, sugestão cinegráfica no claro-escuro do chapéu de palha e do negro do smoking, graça enfant terrible e máscara de Bébé Cadum, Place Pigalle e Times Square, ginástica das oito às nove e amor das cinco às sete, cartazes nos tapumes avec le sourire e bilhetes postais emoldurados nas tapeiras, Sour les toits de Paris uma elegância de apache disfarçado (...)".
Depois de ver Maurice em um de seus filmes, é impossível discordar do escritor. Que dirá, então, depois de vê-lo nesse filme, anterior à censura que os estúdios cinematográficos se impuseram, filme que dosa tão bem o romance, o sexo, a ironia e a comédia, amarrando-os tão bem - porque, na verdade, o mundo não passa de uma longuíssima comédia dos sexos... Exemplo cabal da aptidão do conde Alfred Renard pelas mulheres é aquela cena inicial, em que ele tenta administrar duas amantes, enfrenta o marido de uma delas e, imperdíveis reviravoltas depois, abotoa o vestido da moça sob os olhos do agradecido e apaixonado marido dela. E, então, a cena em que o conde, já convocado de volta à Silvânia, canta a rainha (e para a rainha): "Loves I've known are buried in the past/ They could last with you/ None of them could ever hold me fast/ In the way you do. (...)/ Eyes of Lisette, smile of Mignonette/ The sweetness of Suzette/ In you displayed/ Grace of Delphine, charm of Joséphine/ The cuteness of Pauline/ In you, arrayed.". Essa cantada debochada, bem ao estilo de Chevalier, é uma delícia e merece ser vista:



Esta estudante de literatura e teatro teve, ainda, uma grata surpresa ao encontrar neste filme
tantos elementos do teatro cômico-musicado: o par romântico, a comédia física, os trocadilhos sexuais, números musicais atados mais ou menos frouxamente à ação - e neles, os duetos românticos. Estrutura usada nos palcos da França, de Portugal, do Brasil, e depois tão bem aproveitados por esse mestre da comédia ligeira que é Lubitsch. Infelizmente, Hollywood não o deixou ser tão alegre e saltitante por tanto tempo... Então, vale a pena aproveitar esse filme, imperdível para quem quer conhecer uma das mais bem acabadas matrizes dos musicais da capital do cinema. E também para quem quer ver a bela Jeanette MacDonald no primeiro e mais livre papel de sua carreira.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Quando a música contagia: "Ama-me esta noite" (Love me tonight, 1932)



Em 1927 Hollywood começou a falar e a cantar, especialmente, que o diga "The Jazz singer", primeiro filme no qual houve introdução extensiva do som, exatamente nos números musicais. O deslumbre pelo som da voz humana em todas as suas nuances - único elemento do qual o cinema até então não podia se utilizar - foi intenso e se revelou, no final dos anos 20 e primeiros anos dos 30, nos musicais produzidos pelo maior pólo da indústria do cinema.

Exemplo disso é "Ama-me esta noite", veículo que revelava um novo par romântico das telas, Jeanette Mac Donald e Maurice Chevalier - contratados quando a emergência do som pegou de calças curtas uma série de divas e galãs cujas vozes não se equiparavam aos belos rostos que possuíam (John Gilbert e Clara Bow, apenas para citar alguns).

Adaptação de peça de teatro, "Love me tonight" mostra um percurso usual em Hollywood ainda no tempo dos "silent pictures", quando Erich von Strohein rodou "The merry widow" (1924), estrondoso sucesso da Broadway. Não é um acaso, portanto, que uma das uniões do par Jeanette/Maurice tenha ocorrido para a filmagem de uma nova versão de "Merry Widow" (1934), desta vez com a direção de Lubish.

A temática de "Ama-me esta noite" serve bem ao intuito principal da "fábrica de sonhos", daí a apropriação de uma das variantes da estrutura dos contos de fadas, aquela em que o mocinho enfrenta inúmeros percalços para salvar a donzela em perigo. O divertido é que, no filme, o esquema é subvertido. A mocinha - a princesa Jeanette - que já não é donzela, uma vez que fora casada, está efetivamente em perigo, mas por um um mal muito menos palpável que os vilões convencionais: ela sofre constantes desmaios. A profilaxia é apresentada por um médico cuja formação bastante provavelmente é tributária do pseudo-cientificismo dos anos de 1870: o casamento. É aí que aparece o salvador, não um príncipe encantado, mas o alfaiate Maurice, que vai para o castelo no intuito de cobrar o conde pilantra a quem vendeu fiado, e, devido à galanteria que é típica das personagens interpretadas pelo ator, dá algum colorido àquele ambiente centenário (habitado por pessoas não tão mais jovens do que isso) e acaba, por meio de um beijo, acordando a Bela Adormecida hollywoodiana.

Outra graça de "Ama-me esta noite" é que a apropriação dúbia dos contos de fadas é acompanhada por uma linguagem verbal e cinematográfica que muito se aproveita da censura frouxa e pouco sistemática em voga na época (a cena em que Maurice tira a medida do busto da princesa é o exemplo que primeiro me ocorre).


E isso não raras vezes é feito através de canções muito atraentes e por isso, acredito, tão cativantes. O delicioso número inicial, da canção "Isn't it romantic", é o exemplo mais claro, e acredito que é o primeiro número a palmilhar um percurso que depois será comum nos musicais de Hollywood, o da introdução de um longo número musical que, neste caso, aos poucos é compartilhado por todos os personagens que participam da ação, responsável por unir os planos - e, simbolicamente, o personagem do mocinho ao da mocinha - e, consequentemente, o ator à atriz, a qual verbaliza seus anseios amorosos através de lindos versos de Lorenz Hart e música de Richard Rogers (dos quais depois Billy Wilder se apropriará no clássico Sabrina, de 1954, numa clara referência ao filme):

"Isn't it romantic
Music in the night, a dream that can be heard.
Isn't it romantic
That a hero might appear and say the words
brought by a secret charm or by my heart's command
My prince will come just to kiss my hand..."



A assertiva de Walter Benjamin, segundo o qual para o cinema é menos importante o ator representar diante do público um outro personagem do que ele representar-se a si próprio, encaixa-se como uma luva nesta produção - sintomático é o fato de os nomes dos personagens serem iguais aos dos artistas.
O efeito disso é claro e bem conhecido pelos empresários dessa fábrica de sonhos, que nada tinham de tolos: convidar o espectador a participar da ação, a compartilhar dos sentimentos daqueles personagens aos quais poder-se-ia atribuir os rótulos de "pessoas". O curioso é que ainda hoje aceitamos o convite, por mais que saibamos que tudo isso não passa de ilusão...