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sexta-feira, 2 de março de 2018

Da cadeira da plateia ao close-up: considerações sobre a ópera no cinema

Anja Harteros (Un ballo in maschera)
Nas últimas duas semanas, aportei duas vezes em Munique. O deslocamento foi mental. Chegou-nos a São Paulo, por meio do Festival “Ópera na Tela”, duas obras encenadas recentemente naquelas paragens: Um baile de máscaras (Un ballo in maschera, 1859), de Giuseppe Verdi, libreto de Antonio Somma, e A Favorita (La Favorite, 1840), de Gaetano Donizetti, libreto de Alphonse Ryoyer, Gustav Vaëz e Eugène Scribe. 
No cinema, as óperas têm para mim um sabor invariavelmente agridoce. A experiência no recinto onde se dá o espetáculo – entre as vozes que nos chegam sem a intervenção de nenhum aparato mecânico e o frenesi compartilhado por uma grande plateia – é incontornável ao gênero. Nos palcos operísticos, como nos teatrais, a presença empírica é fundamental à fruição estética. Embora público, o espaço do cinema favorece a criação de mundos particulares que caminham na contracorrente da dimensão congraçadora do teatro, do caráter de unicidade de cada representação, sempre aberta aos reveses do acaso; da possibilidade efetiva da intervenção das plateias na cena. 
Elīna Garanča/ Matthew Polenzani (La Favorite)
Ao mesmo tempo, de que outro jeito um humilde mortal pode encontrar com essas produções rodadas do outro lado do Atlântico senão desta maneira substituta? Essa impostura tem, no entanto, uma dimensão doce que fala com força dentro de mim. Procuro, a partir do ponto de vista de alguém que descobriu a ópera por meio do DVD e do cinema, antes de ter podido experimentá-la in locus, vasculhar que meandros da especificidade dessa ópera enlatada apaixonaram-me pelo gênero. 
O mais determinante deles é o close-up. Percebo que sou uma espectadora cinematográfica da ópera quando me dou conta de que a minha memória mais vívida dela é o rosto descomposto da Violetta Valéry de Natalie Dessay, tomado em primeiríssimo plano numa montagem que eu nunca vi e jamais poderei ver ao vivo: porque Dessay não mais se envolve em produções operísticas; porque aquele rosto só começou a circular nos cinemas quando a Traviata em questão já havia se despedido da cena; porque, afinal, aquele rosto jamais existiu às plateias operísticas. Porque a ópera no cinema não é ópera, é cinema, ou alguma coisa neste entre-lugar. 
Ao rosto de Dessay soma-se agora o de Anja Harteros, sublime e etéreo como as gazes que a velam do marido enquanto ela se encontra com o homem que ama, e o de Elīna Garanča, grave e profundo como a voz dessa Greta Garbo operística, que eleva o enredo mesquinho da Favorita a uma dimensão inesperada. Esses rostos, e a sobre-humanidade que carregam – são estatuárias, retirados do tempo da história, introduzidos no tempo do mito – unidos à música, fazem uma porção considerável das óperas transcenderem os preconceitos putrefatos de seu tempo. 
A metamorfose é sentida sobretudo pela personagem de Garanča. A Favorita é a principal amante do rei de Castela. Retirada do seio de um pai “abusivo” (é absurdamente atual esta definição) sob o pretexto de um casamento real, a jovem Léonor de Guzman vê-se transformada em cortesã. Tolhida de quaisquer meios de ação, desejada pelo rei que lhe recusa a alforria, repudiada por uma corte carola que a anatemiza por vê-la desvirtuando o monarca, Léonor se parece muito pouco com uma mulher do século XXI. A perseguição religiosa, metafórica e literal, se intensifica quando ela se apaixona por um noviço. No quarto ato, vemo-la pária, a definhar aos pés do altar e do seu amado, depois de ser repudiada por ele, pelo rei e pela corte espanhola. 
A fragilidade patente de sua posição não comove personagem algum, até que ela está prestes a se esvair e, porque não mais representa ameaça ao status quo, é perdoada pelo homem que ama, o qual vem de ser ordenado. Ele ainda a ama – é o que professa, trêmulo, ao final –, mas apenas poderá viver tal sentimento no plano espiritual, já que o corpo dela pereceu: o corpo, espaço do tão temido “pecado” com que a igreja por séculos amedrontou(a?) seus fiéis. 
Mesmo com os inúmeros passos para trás dados ultimamente pela sociedade em escala mundial, uma temática tão anacrônica só desce goela abaixo do público por conta da música primorosa de Gaetano Donizetti – as notas estão libertas dos contornos do machismo. Por conta da música e de Garanča, que traz no rosto a dimensão de sua voz excelente de mezzo, ambos uma mistura de docilidade e de firmeza. Seu rosto e sua voz sublinham uma dimensão bem-vinda da encenação, que, ao optar por figurinos contemporâneos, propõe uma leitura distanciada e crítica desta ópera. 
Anja Harteros/ Piotr Beczala
(Un ballo in maschera)
Já Anja Harteros é a contraparte de Elīna Garanča. Longilínea, pálida e de um timbre cristalino, é a heroína perfeita da grande ópera italiana. Ela é Amelia, a esposa de Renato, secretário fiel do conde inglês Riccardo, alocado em Boston nos tempos da colônia. A história toma como base o assassinato do rei Gustavo III, da Suécia, vítima de um complô político, durante uma mascarada. Alterado por decisão da censura, a redução do título da personagem histórica atrela o libreto com força neste nosso contexto político feito de conchavos e de golpes. 
Verdi é um grande analista da alma humana. Amparado pelo libreto, sua música sublinha a dimensão trágica das personagens, dignas de um Shakespeare ou de um Sófocles: a sentença da cartomante Ulrica, espécie de sibila trágica, de que o primeiro homem a apertar a mão do conde seria responsável por sua morte (bela metáfora de nosso contexto político), explicita de antemão o destino do nobre. Como prova de que não a crê, Riccardo aperta a mão de Renato, que, quererá o destino, será responsável por sua morte, durante a fatídica mascarada. 
A produção da ópera da Bavária apresentada em São Paulo é de um primor raramente visto. Além de uma competente distribuição (Piotr Beczala e George Petean são o conde e o secretário), cria no palco um microcosmo alusivo à ventriloquia, que remete à noção algo reverberada no Oitocentos de que não passamos de títeres num contínuo duelo entre Deus e o Diabo. 
Todavia, se alguns momentos são de puro deleite visual (o títere do conde, manipulado por ele próprio, a entoar junto consigo aquela grande ária que é “Di’ Tu Se Fedele”), o conjunto recende um amargor profundo: a crise de consciência da esposa que deixa de amar o marido (corporificada em cena pela presença dos duplos de Amelia e Renato, jovens e felizes), e o terror inerente à impossibilidade de se retirar deste consórcio, o que a leva à feiticeira, ao recôndito onde ela iria preparar a droga do esquecimento, e ao inevitável encontro do homem que ama (e de seu próprio destino). O pessimismo e o mergulho na esfera das subjetividades refletem o momento político tenso enfrentado pela Europa naqueles anos de 1858 e 1859. Por isso, exibida nesses tempos igualmente sombrios, esta ópera soa tão atual. 

A dimensão de jogo e de contação de história que a encenação dá à obra recupera a ideia de fingimento alusivo ao seu título. Amelia é a única personagem nesta montagem que se recusa ao falseamento, estabelecendo o único ponto de ancoragem no real – impossível, numa sociedade talhada à mascaragem, como o desenlace demonstrará. Harteros é brilhante. Seu jogo de cena repercute a sua voz de manancial, fonte cristalina que não pode se conter mesmo que seu destino seja a tormenta. Como Callas (ou como Dessay), não é só grande cantora como é grande atriz, e neste Baile de Máscaras ela constrói uma Amelia nuançada, sob os signos da paixão e da desesperança. Que honra vê-la assim tão de perto, nesse espaço paradoxal que é a ópera em cinema, onde a ausência física do artista acaba por lhe dar, como dá às estrelas, uma inesperada eternidade.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O “Don Carlos” de Verdi (1867) na Opéra Bastille: a eternidade num sopro

Antonio Arnoni Prado, professor demasiado importante e querido, dizia-nos que uma obra de arte é estrela numa constelação: ao surgir, rearranja o espaço; passa a refletir na relação com aquelas que estão em derredor, emprestando-lhes seu brilho, tomando o brilho delas. Já nós, céus em miniatura (a analogia, mais picaresca que arrogante, é minha; perdoem-na), não somos menos buleversados e rearranjados quando uma obra de gênio nos atravessa. 
Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa. 
“Don Carlos”, gloriosamente ressurgido na Bastilha, numa montagem controversa do polonês Krzysztof Warlikowski (vaiada por uma metade da sala e aplaudida entusiasticamente por outra, na qual eu – que a vi no dia 13 de outubro – me incluía) vem para corroborar a regra. A encenação traz a trama seiscentista a uma modernidade kubrickiana, delirante. Se abandona o caráter histórico do libreto, tem o mérito de situar a ação num solo poroso que estabelece liames indiscutíveis com a nossa realidade, em âmbito transnacional; daí a emoção que me tomou enquanto eu a via. 
Don Carlos (Jonas Kaufmann) e Rodrigues (Ludovic Tézier)
Transposições e fissuras já marcam o libreto que Joseph Méry e Camille du Locle escreveram em 1867, a partir de um drama de Friedrich Schiller que antecedera em dois anos a Revolução Francesa: “Don Karlos, Infant von Spanien”, de 1787. Schiller mergulha no passado com os olhos daquele presente pré-revolucionário. Os conflitos concernentes à vida de Carlos – príncipe espanhol de meados do XVI que perde a noiva para o pai (a francesa Elisabeth de Valois é dada em consórcio ao rei em troca do fim da Guerra Italiana) transformam-se, na pena do escritor alemão, em mote à verbalização de libelos anti-monárquicos e em favor da liberdade. 
O Don Carlos histórico 
Retrato de Sofonisba Anguissola, 1560
 
Já Verdi nutre o drama Romântico da poética do melodrama. O desvario amoroso de Carlos frente à mulher que lhe fora prometida, e que ele terminantemente perdera, dá lugar a um embate mais premente: a luta pela liberdade da população de Flandres, que o rei tiranizava. Quase no desfecho da trama, Elisabeth e Carlos cantam a sublimação de seu amor na entrega de ambos à luta pela libertação do povo oprimido; a transcendência do amor na morte e na vida eterna – as personagens seiscentistas são regidas pela moral burguesa, à qual o sentimento de honra se sobrepõe à realização carnal. 
O amor é, todavia, o lume que conduz à revolução. Atravessa a trama o tema da liberdade, que os amigos Carlos e Rodrigues primeiro entoam à guisa de oração: 
Dieu, tu semas dans nos âmes/ un rayon des mêmes flammes,/ le même amour exalté,/ l’amour de la liberté! 
Leitmotiv fundamental de “Don Carlos”, o tema acompanha, no plano sonoro, o amadurecimento paulatino do jovem príncipe, em seu percurso de romântico desesperançado a agitador social – transformação operada por obra do amigo que, por sua vez, agita a sua alma, fazendo-lhe enxergar, para além de seu coração despedaçado, a expoliação empírica de todo um povo ao qual ele poderia ser útil. O Don Carlos histórico, príncipe cuja vida fora marcada pela instabilidade mental, era personagem de pouca monta perto do homem valoroso no qual Schiller e Verdi o transformam. 
É tal tema que tecerá a maravilhosa e dilacerante despedida dos amigos, no cárcere onde Don Carlos é cativo, no qual um já moribundo Rodrigues lhe lembrará que está a morrer por si, cobrando do amigo, portanto, que ele não abandone o sonho sonhado em conjunto. E é em busca desse sonho que Carlos se reunirá uma última vez com a sua amada Elisabeth, e malgrado ambos cantem o chaste amour que as amarras sociais os obrigam a manter, serão apanhados e massacrados pelo tirano. 
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX . 
Na montagem de Warlikowski, Philippe II é o Saturno
de Goya, a devorar o próprio filho
A escrita da história comporta traços do momento histórico do escrevente. Krzysztof Warlikowski faz nosso presente lúgubre porejar desse episódio de meio milênio. O despotismo ao qual fora submetido o povo de Flandres durante o governo de Filipe II ecoa, por analogia, num sem-número de conflitos armados protagonizados por regimes totalitários a ocorrerem nos imediatos limites da Europa, bem como nos maciços contingentes oriundos das diásporas, com os quais o continente europeu precisa pragmaticamente lidar. 
A obra já abre numa tonalidade sombria: o coro dos cortadores de lenha, que na versão original clama pelo fim da guerra, se endereça, aqui, não apenas à rainha, mas também ao público. Perde o caráter espetacular da grande ópera para se transformar num coro trágico, que atravessa “Don Carlos” como o decalcamento dos milhões de indivíduos que as guerras deslocam. Don Carlos conhecerá Elisabeth, a noiva prometida, para imediatamente perdê-la. 
Jonas Kaufmann e Sonya Yoncheva, Don Carlos e Elisabeth
O libreto original situa a cena na floresta de Fountainbleau, mas Warlikowski dá-lhe um caráter onírico, que mistura a gélida floresta francesa – momentaneamente aquecida pelo fogo que Don Carlos acende à amada Elisabeth, e que brota de sua alma (e do belo rosto moreno de Jonas Kaufmann) – ao gabinete de trabalho de Carlos, no qual um busto do avô Charles V repousa como lúgubre invocação da permanência da tradição sobre o progresso. Ao fim e ao cabo, a felicidade não fora mais que um sonho que n’a duré qu’un jour, constatação dos amantes malfadados que é leitmotiv da obra. 

Mas nem tudo é iluminação em “Don Carlos”. A tomada de consciência frente aos desvarios do totalitarismo – Rodrigues a dizer ao rei ciumento que vem de agredir a esposa: “Você domina metade do mundo, mas é incapaz de dominar-se a si próprio.” – convive com a reverberação incessante do pecado e da culpa oriundos do cristianismo, mesmo por parte de Elisabeth, que expulsa do reino a princesa Eboli tão logo a descobre amante do marido, dizendo-lhe: “Devolva-me a cruz!”. Todavia, laivos da moral cristã não grassam na sociedade ainda hoje? 
Por outro lado, “O Grande Inquisidor” é tanto ou mais vilão que Phillipe II – é a voz da igreja que pede ao rei a cabeça de Rodrigues e Carlos. Warlikowski, responsável por uma louvável atualização crítica desta ópera, sublinha-o, transformando a personagem num burocrata vestido de negro, ainda mais pernicioso porque usa a religião como moeda no jogo político. 
No entanto, em meio aos paradoxos de uma trama que oscila entre o progresso e o atraso impõe-se a música; a partitura de Verdi carregando-nos em turbilhão. Um espetáculo operístico bem desempenhado é como uma cachaça que nos embriaga, uma febre que nos obnubila. O “Don Carlos” francês, levado a cabo por um elenco dos  deuses e conduzido pelo bravo Phillipe Jourdain, foi uma jornada coalhada de erotismo, romantismo e desvario. 
As vozes carregam o texto para altitudes insuspeitadas. Jonas Kaufmann, tenor a flertar cada vez mais intensamente com os abismos do barítono, constrói, com seu timbre num só tempo melancólico e doce, um príncipe no qual a lugubricidade e a ternura coexistem. Seu physique dialoga tanto quanto a sua voz com o timbre de barítono de Ludovic Tézier (Rodrigues). Os duetos de ambos entram em consonância numa mesma linha melódica que acena para uma identidade entre as personagens que ultrapassa a esfera da amizade. A intensidade do afeto que os une exacerba-se na cena do cárcere – je meurs pour toi, Rodrigues lembra Carlos –, ainda mais pungente nesta encenação já que ambos estão fisicamente separados, a voz sendo tudo o que resta para uni-los. 
De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe. 
Em estado de graça, no que toca à voz e ao jogo cênico, Ludovic Tézier sublinhou a ambiguidade de seu Rodrigues, cuja ascendência sobre o príncipe alavanca a ação e determina, num só tempo, a tomada de consciência política do amigo (e a intervenção deste no Flandres) e a perdição do trio. O timbre de Sonya Yoncheva construiu uma perfeita terceira ponta deste triângulo amoroso. Sua voz sensual extravasa a armadura puritana com que a sociedade veste a sua personagem: o desejo, força indômita, leva de roldão as barreiras morais e sociais; o casamento real não consegue apagar a mulher apaixonada do seio da rainha. 
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social). 
Um lampejo do Olimpo materializado, assim, diante de nossos olhos, leva-nos a pensar na kantiana finalidade sem fim da obra de arte; no poder que a arte tem de nos abalar desde as entranhas, de nos ruir e reedificar. Briguei anos a fio com Verdi, mas a sua intensidade dramática acabou por me render. Se encenada com rigor, a sua obra hoje me parece, pela gama das contradições que encerra, o espaço modelar para operar revoluções.


*
Para os interessados, a íntegra da montagem, exibida pela "Arte", está online.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Um clássico moderno: Uma linda mulher (Pretty Woman, 1990)

Diz-se que, não importa sobre o que escolhemos escrever, acabamos sempre falando sobre nós mesmos... Prova disso é este último post do ano, saído do caldeirão onde nas últimas horas revolveram-se artigos de uma Folha da semana passada, zelosamente guardada por minha mãe enquanto eu viajava; uma resenha antiga sobre “Charada”, datada do início do blog; o último conto de fadas de Julia Roberts, exibido ontem em TV aberta entre um amontoado de inserções comerciais...: Bárbara Heliodora fez publicar recentemente uma história do teatro cuja única novidade é a informação de que Machado de Assis escreveu uma paródia de “La Traviata”, diz o jornal paulistano. Que Machado desgostava da “Dama das Camélias” eu já sabia. O desdobramento inusitado da tal ojeriza muito me fascina, vindo do escritor que a história literária embalsamou dentro duma aura de santidade. A ópera de Verdi e “Charada” foram apanhadas com a mesma graça por Gary Marshall em “Uma linda mulher”, protagonizada pela ainda hoje belíssima e carismática Julia Roberts, obra que vi faz muito pouco tempo, por conta d’outras “Traviatas”... 
Bem, so much for the autobiography. Vamos ao filme. 

“Uma linda mulher” é fruto da parceria entre o diretor Garry Marshall, o roteirista J. F. Lawton, a até então novata Julia Roberts e o galã Richard Gere, cuja carreira remontava ao início dos anos 70 e contava já com uma obra de sucesso como “O Gigolô Americano” (1980). Aliás, a aproximação das temáticas de ambos os filmes é apenas acidental. A obra de Marshall dá ao assunto árido o talhe dos contos de fadas. Sua protagonista é uma Gata Borralheira moderna, prostituta do baixo meretrício de Hollywood Boulevard transformada em Cinderela pelas mãos de um ricaço de Wall Street. O Happy Ending é tão irreal quanto adorável. Não falamos de realidade, mas de cinema, como o filme deixa claro, ao apropriar-se de um conjunto de produções da dita “Era de Ouro” da cinematografia, especialmente de “Charada” (Stanley Donen, 1963) - obra que, por sua vez, dialoga com o cinema que lhe é anterior (por exemplo, “Interlúdio”, de Hitchcock, 1946 – reflexão mais aprofundada sobre tal produção o leitor obterá neste link). 
A referência artística fundamental do filme é, no entanto, “La Traviata”, cujas sequências principais são encenadas diante de uma protagonista em prantos, espectadora de seu provável – no entanto, não consumado – infortúnio. A Violetta da obra de Verdi ao final sucumbe à doença, à solidão, ao preconceito. A Vivian/Julia Roberts é salva pelo seu errático cavaleiro andante: que galopa uma limusine conduzida por um motorista, usa o guarda-chuva à guisa de espada e galga com dificuldade, pois tem medo de altura, a escadaria de serviço que o leva ao topo do prédio onde jaz sua dama... “Pretty Woman” desce o conto de fadas das alturas do mito até o chão-a-chão da realidade – ainda que edulcorada. 
Suas personagens, ao abdicarem da intrepidez arquetípica das matrizes clássicas, ganham em humanidade. Penso que o viço deste blockbuster – mesmo passados mais de 20 anos de seu lançamento – se deve ao equilíbrio certeiro que ele estabelece entre a fantasia atemporal e o pragmatismo contemporâneo. Para além de debates rasteiros sobre o suposto machismo presente no “resgate” da prostituta da “sarjeta” por meio do casamento, temos ali um par de personagens que igualmente precisam de salvação, e seu duro percurso rumo ao comprometimento afetivo como fuga do capitalismo selvagem. Desnecessário me ater em como isso se dá – quem desconhece “Uma linda mulher”? 
Calha ainda de o filme ser acompanhado por uma das trilhas sonoras mais brilhantes de todos os tempos. Bastam os primeiros acordes de “Pretty Woman”, na voz poderosa de Roy Orbison, para que venha à nossa cabeça a sequência chave do filme: Vivian experimentando os figurinos com que entrará para o jet set. Marshall constrói aí uma perfeita versão moderna da transformação da Gata Borralheira em Cinderela. A “Fada Madrinha” não é só o galante Edward Lewis/Richard Gere mas sobretudo o seu cartão de crédito - o verdadeiro protagonista dos afagos do gerente da loja de luxo. Clímax do filme, a cena mostra que, no palco de aparências da sociedade, cada qual só vale pelo que ostenta. Só o amor atinge a essência dos seres. 
Qualquer pieguice da conclusão é diluída por um roteiro repleto de tiradas luminosas, pela química dos protagonistas (ambos igualmente ótimos), além da música inesquecível. Nossa “Traviata” moderna palmilha as ruas de Hollywood embalada por uma trilha que se revelaria tão popular quanto a de Verdi, como tantas outras palmilharam antes dela, de Alla Nazimova a Greta Garbo e Vivien Leigh, em tantas versões de “damas da noite” em busca da felicidade. Felizmente já estávamos em 1990, e então ela pôde encontrá-la.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Uma anti-verdiana se encontra com Aida (Teatro Municipal de SP, 13/8)

Testemunho de uma cinéfila, até outro dia anti-verdiana, que experimenta a conversão completa depois de ter visto a montagem da Aida no Municipal de São Paulo... 

Testemunho é algo que este blog não está muito acostumado a ver, ele que padece do defeito da blogueira-acadêmica de querer ajuntar a tudo o esquema apresentação (seguida de exemplos) - análise objetiva - conclusão. 
O formato novo deriva de um assunto (quase) novo nestas paragens, a ópera. 
Pouco sei de ópera. Até pouco tempo atrás, só sabia que desgostava de Giuseppe Verdi. Resquício de minha pesquisa de mestrado... Estudei a produção teatral de alguns wagnerianos de fins do século XIX. Eles odiavam o compositor italiano, cuja música remetia a um passado monárquico que desejavam esquecer; eu comprei a briga (culpada de novo...). 
Resultado: vi à época uma porção de montagens de obras de Verdi em DVD. Ri da “Traviata” (1853) – mulher submissa à moda das sofredoras do melodrama europeu, simples brinquedo nas mãos dos homens da sociedade, a ter como única salvação possível a morte. Ri muito de “Aida” (1871), sua companheira de infortúnio – esta, coitada, escrava despossuída até mesmo de seu corpo, à qual a morte seria um privilégio. 
Em Paris para desenvolvimento de parte de minha pesquisa de Doutorado, já no fim de 2012, o baú das memórias é revirado pelas comemorações referentes ao bicentenário de Verdi (1813-1901) e Wagner (1813-1883). No cinema, o rosto da primadona Natalie Dessay enche a tela no documentário “Traviata et nous”, no momento do “É strano”, e por meses o meu cinematógrafo cerebral insiste em reproduzi-lo. Na Opéra Bastille, uma noite de festa é dedicada à obra dos dois músicos. A música de ambos espalha-se harmonicamente pela sala, e eu decido que já é hora de enterrar os velhos fantasmas e entrar no coro: Verdi é, sim, genial. 
Verdi
A Aida encenada no Municipal de São Paulo (regida por John Neschling, cenografia de Italo Grassi) só vem sublinhar o fato. Se ali pulsa o melodrama – nos sofrimentos da princesa Etíope feita escrava, impossibilitada de se unir ao amado Radamés, filho do Egito rival, prestes a se casar com a princesa egípcia Amneris – pulsa com mesmo peso a tragédia. Se algo aprendi nesses meses em que vivenciei (um tanto quanto intensamente) a ópera, é a respeito do papel que o mise-en-scène tem no resultado final. Esta Aida explora com a mesma maestria os momentos operísticos de grande espetáculo – que Verdi soube como poucos criar – e as árias e duetos de revelação íntima. 
O recuo temporal na direção de um passado milenar que só pode ressuscitar como fantasia tira do melodrama o gosto rançoso do atrelamento histórico. Ganham destaque os dilemas internos dos personagens. Aida é aqui uma meia-irmã da Antígona de Sófocles, cujo coração pende com a mesma intensidade entre dois polos: o amor ao pai (e à mãe-Pátria) e a Radamés. 
O líder do exército egípcio ganha humanidade ao resistir em deixar a pátria (e a glória recém-alcançada) por Aida. A jovem é num só tempo escrava e dona do amor do melhor dos homens. É mocinha tingida do cálculo da femme fatale, já que, por ter o coração dividido entre o amor e a obrigação filial, precisa nalgum momento trair Radamés para salvar o pai. Como a protagonista do trágico grego, presa entre duas obrigações de peso análogo, só encontra coesão na morte. 
Aida/Municipal-SP
A extinção de Aida é um recomeço. Porque ela só poderá encontrar o descanso ao lado de Radamés naquela Eternidade – pagã, e não obstante, tão cristã – onde todos os liames são dirimidos. Por isso, o sepultamento de ambos em vida ganha conotações múltiplas; sublinhadas pela encenação: a exiguidade do espaço que os prende retumba com suas juras de amor eterno, finalmente reverberadas em uníssono; a luz celestial os ilumina; enquanto que os cantos fúnebres ecoam no exterior da tumba, interrompidos pelos reclamos lancinantes da princesa Amneris. 
Amneris também é múltipla – pelo menos o foi a jovem que a cantou no dia 13, Tuija Knihtlä, em cuja voz ficaram bem marcados o amor por Radamés, a piedade – e depois o ódio – por Aida e o dilaceramento pela morte do guerreiro. Maria Josè Siri e Stuart Neill estiveram igualmente sensacionais. Impecáveis de corpo, alma e voz as duas cantoras, estrondoso o tenor (não vou estranhar se sua voz tiver sido ouvida do lado de fora do Teatro). 
Aida/Municipal-SP
Fonte: operaeballet.blogspot.com
Aida. Enquanto eu voltava para casa assoviando trechos de suas inesquecíveis árias, ia me lembrando de como aqueles escritores de fins do XIX criticavam a popularidade de seu autor, como se popularidade implicasse na diminuição de valor. A vida que pulsa de ti, jovem donzela na flor dos seus 142 anos, não cabe no libreto que li faz anos e me soou tão antigo; não cabe no quadrado da TV da sala. Precisa ser gritada em plenos pulmões, numa sala tão grande (e simbólica) quanto a do Municipal, por essas vozes que parecem brotadas do centro da terra, e que me são cada vez mais caras, a despeito de mim mesma.