segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Boulevard do crime/ Les Enfants Du Paradis (1945/1946)

Uma das mais preciosas joias do cinema é este filme de Marcel Carné, roteirizado por Jacques Prévert, musicado por Maurice Thiriet e Joseph Kosma e protagonizado por Arletty, Jean-Louis Barrault, Pierre Brasseur e María Casares. A ficha técnica segue extensa para que se distribuam as loas de modo equânime: em raros momentos a sétima arte encontrou colaboradores tão igualmente inspirados. 
Boulevard du Temple em daguerreótipo de 1838. 
“Boulevard do Crime” se passa no célebre Boulevard du Temple, rua de Paris onde se situavam os teatros populares na primeira metade do século XIX (até grosso modo os anos de 1860, quando a reforma urbana arrasou com a velha fisionomia da cidade, transformando-a no que hoje conhecemos). O rótulo faz alusão aos dramas sanguinolentos exibidos pelas casas a partir da segunda década do século XIX, época em que o romantismo exacerbado deu mãos à estética do melodrama para levar à cena, com reforçada carga de realismo, os mais sombrios caracteres. No entanto, nem só de sangue vivia o bulevar. A mágica e a pantomima eram dois outros elementos que o alimentavam. 
Debureau  (Barrault) e Lemaître (Brasseur)
O filme costura as vidas de quatro personagens: das atrizes Garance (Arletty) e Nathalie (Casares), do ator Frédérick Lemaître (Brasseur) e do mímico Jean-Baptiste Debureau (Barrault). Os dois últimos, personagens históricos – o primeiro, o principal ator dramático de seu tempo; o segundo, o mais célebre mímico. 
Nathalie
Seus caminhos se cruzam com o do delinquente-poeta Lacenaire (Marcel Herrand), cuja vida de falcatruas e crimes a imprensa da época desvelou às largas. 
Os lastros com a realidade perduram na construção do enredo, nas referências que a película faz aos espetáculos dos quais Lemaître e Debureau tomaram parte: na construção, por parte de Debureau, de uma pantomima altamente estilizada, que agradava desde o povo das galerias à mais alta esfera artística; e de Lemaître, de uma representação mais colada à realidade, forjada a partir da cena, a transformar o ator em coparticipante na construção da história, juntamente do autor. 
Debureau em cena no filme
O background histórico pode ser desvendado nos extras da boa edição de “Boulevard...” lançada no Brasil pela Versátil, com remasterização dos anos 70. A Cinématheque Française dedicou-lhe em 2012-13 uma exposição que coincidiu com o lançamento de uma nova e belíssima remasterização (cuja cópia – repleta de extras e de um livreto explicativo – arrependo-me à morte por não ter comprado...). Aos mais curiosos recomendo Mélodramatiques, no qual Jean-Marie Thomasseau discorre sobre os bastidores do teatro popular parisiense do XIX, atestando sua vitalidade, coesão, inclinação à crítica social e qualidade artística. 
O Debureau histórico
Carné e Prévert atingem o perfeito equilíbrio entre ficção e realidade, nesta obra que mergulha de cabeça no gênero que decanta. É a estrutura do melodrama que a enovela. Nathalie amava Debureau, que amava Garance, que amava Lemaître, que não amava ninguém (ou, quiçá, que amava a “Mulher”, o amor como ideia). Os encontros e desencontros são tecidos com uma precisão matemática, apesar da matéria poética sobre a qual se constroem, ao longo de um filme (curtíssimo) de quase quatro horas de duração. 
Debureau e Garance
“Les Enfants Du Paradis” abraça com um carinho imenso essas trupes que inventaram o teatro popular francês posterior à Revolução, sonhando a liberdade em cena, para si e para o bando de espoliados que as aplaudiam desde as galerias do teatro – denominadas então, e até hoje, de “paraíso”, dada a sua localização. 
Era para os pobres, só então incorporados àquela forma de entretenimento, que falavam os artistas; para “as crianças do paraíso”, “tão pequenas e com tão grandes sonhos”, como tão bem as descreve Debureau, o homem que deu status de arte à pantomima e transformou o pequenino Théâtre des Funambules num palco de encontros das altas rodas literárias da época. 
Diretor e roteirista injetam vida tão pulsante em Debureau, Garance, Nathalie e Lemaître, que pouco importa onde termina a realidade e tem início a fantasia. Também nos dramas históricos levados aos palcos nos oitocentos isto tinha pouca relevância, eles que se apossavam do elemento pitoresco dos panoramas históricos, criando a partir dali intrigas em que a imaginação tinha a primazia. Da costura entre o vivido e o sonhado fica uma homenagem não apenas ao melodrama como ao cinema, seu mais popular continuador. 
As galerias do Funambules: ilustração histórica
Ao cinema, sobretudo, no que ele tem de potencial crítico e de espaço de encantamento. 
“Les Enfants du Paradis” foi rodado durante um momento político igualmente tenso, a ocupação alemã na França, na 2ª G.M. Kosma, judeu, colaborou na composição da música enquanto se escondia dos nazistas (os créditos prestam-lhe uma bela homenagem). A obra nasce com o renascimento de Paris, iluminando o presente com uma versão luminosa do passado; heroicizando uma gente que só ganhou voz no teatro no século XIX, com o desenvolvimento dos gêneros teatrais populares. 
Le Théâtre des Funambules, derrubado em 1862 (ilustração histórica) 
Os quatro indivíduos retratados no filme não se distanciam muito do povo ocupante do “paraíso”. Atores, párias sociais então, ganham densidade. Texto e música emprestam-lhes uma suave alegria, em que o riso é impregnado de uma contínua melancolia. Passado e presente certamente se alinharam aí, os fantasmas da Guerra a assombrarem os palcos em que Debureau e Lemaître faziam das suas... 
Essas vidas de papel e de película estão tão profundamente entranhadas na minha – de pesquisadora de teatro e de cinema, amante apaixonada de ambas as artes – que ultimamente acho “Les Enfants Du Paradis” o filme mais bonito do mundo. O que o público contemporâneo pensará de uma obra como essa, que se desenvolve como um ballet, com um texto que por vezes atinge as raias do verso, tão pouco “realista”, tão lento? Recomendo-o aos sensíveis, às crianças de alma, àqueles que ainda têm a coragem de sonhar com o paraíso (ou a partir do paraíso, onde os preços dos ingressos continuam a ser convidativos e a magia, democrática).
As galerias em Les Enfants du Paradis

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Podridão entre quatro paredes: Álbum de família (2013)

Uma versão contemporânea das "DRs" infindas protagonizadas por Liz Taylor em “Gata em teto de zinco quente” (Richard Brooks, 1958) e “Quem tem medo de Virginia Woolf” (Mike Nichols, 1966) ainda pode ser desfrutada pelos espectadores nas grandes redes exibidoras. “Álbum de família” mergulha fundo nessa fonte donde porejam as águas do cinema e do teatro. O roteiro de Tracy Letts é profundamente teatral. Embora o cenário diga muito, as palavras têm primazia, brotam aos borbotões de um modo que parte considerável da crítica está considerando irrealista, over the top
Porque não espero que o cinema esteja fundamentalmente colado à realidade, gostei um bocado do filme. Amparado no roteiro de Letts, John Wells coloca em cena um variado mostruário de personagens silenciosamente agônicas, cujas dores irrompem todas durante um opressivo verão num condado longínquo dos Estados Unidos. A matriarca da família, Meryl Streep, puxa o desfile de astros que tomam parte da empreitada: Julia Roberts, Chris Cooper, Ewan MacGregor, Sam Shepard, Dermot Mulroney, Juliette Lewis, Abigail Breslin... A briga de egos que é usualmente oriunda de empreitadas do tipo serve, aqui, ao tema do filme: o embate, que é seu cerne, faz transcender para o plano ficcional quaisquer possíveis rivalidades, nutrindo-o, ao invés de prejudicá-lo. 
É um filme feito ao talhe do Oscar. Sua principal fraqueza talvez seja seu desejo de fazer cada artista demonstrar quão alto ele pode se elevar dramaticamente. Pretensão tão visível acaba fazendo emergir a artificialidade do conjunto. A necessidade de dar voz a tantas e tão diversas personagens torna o roteiro mais artificioso que profundo. 
Seu cerne é o desaparecimento e posterior suicídio de um escritor amargurado. O encontro da família e a lavagem de roupa suja que se sucede deixa patente o porquê da atitude estremada do homem. Basicamente, sua esposa é uma megera de grosso calibre, cuja metralhadora giratória não poupa ninguém. Sua verborragia soma-se aos seus atos e temos, então, uma vilã cuja mesquinhez e inominável crueldade a pareia com a fase de ouro do nosso Félix. É uma personagem de pantomima que vale sobretudo pela atuação magistral de Meryl Streep, noutro grande momento de sua carreira. 
Secunda-a Julia Roberts, no papel da filha mais velha que outrora fugira ao jugo da mãe e, de volta ao condado de Osage, vê fervilhar a rebeldia da filha adolescente (Abigail Breslin, ótima) e as últimas fagulhas de seu relacionamento com o pai da menina (Ewan MacGregor, idem). O roteiro é mais grandiloquente que assertivo na tessitura da relação do casal. O rebuscamento lexical gira no vazio, neste e noutros momentos da trama. No entanto, a visceralidade das atuações faz-nos perdoar a falha e atentar para o teatro individual, executado com homogênea qualidade. 
A única nesga de brisa que sopra do ambiente opressor é protagonizada pelo dueto Julianne Nicholson e Benedict Cumberbatch, primos cujo afeto, cumplicidade e paixão são paulatinamente desvelados ao público, pouco antes do horrendo segredo familiar que os apartará: não há espaço para a felicidade sob a aridez do teto da matrona de Streep. Cumberbatch está especialmente brilhante. Seu dilema é infantil, mas ele o veste com delicadeza e angústia aterradoras. Eu nunca o havia visto. Aposto na sua indicação ao Oscar de ator coadjuvante. 
Julia Roberts secunda Meryl Streep com brio. Está tão bem quanto esteve em “Erin Brockovich”, e, sem maquiagem e com um vestuário pouco charmoso, mostra quão grande atriz pode ser. Figurino e fotografia são igualmente dignos de nota: a poeira e a canícula que tudo envolvem falam tanto quanto as personagens. Neles e nas atuações estão os grandes trunfos de “August: Osage County” (o título em inglês prepara melhor o público para a aridez que o espera), filme que, sem ser uma obra-prima, merece o encontro com o público.
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Enquanto procurava imagens que ilustrassem o post, descobri que o filme foi originalmente uma peça de teatro vencedora do Tony e do Pullitzer (2008).


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Os Melhores Filmes de 2013 versão "O filme que vi ontem"

A relação considera as obras lançadas ao longo do ano no Brasil, em circuito comercial, e é, obviamente, fruto de minha observação pessoal (estive longe de ver tudo o que entrou em cartaz no ano...). Os eventuais links enviam o leitor para os posts do blog correspondentes aos filmes. Notas breves apresentam aqueles ainda não resenhados. 


1- Vocês ainda não viram nada! (“Vous n’avez encore rien vu”, Alan Resnais, França, 2012)


2- Gravidade ("Gravity", Alfonso Cuarón, EUA, 2013) 

3- Branca de neve ("Blancanieves", Pablo Berger, Espanha, 2013) 
"O Artista" (2011), retomada moderna do cinema silencioso, deixou muita gente embasbacada por aquela arte. Porém, o grande momento dessa febre vintage eu penso que seja "Blancanieves", fantasia infantil vestida em branco e preto e de carregado tom dramático saída da batuta de Pablo Berger. O diretor mostra-se não só um exímio continuador dos grandes artistas da cena muda, a exemplo de Murnau - pelo requinte com que constrói visualmente a história - como um brilhante fabulista. Sua Branca de Neve (o roteiro também é de sua autoria) bebe tanto da fonte literária quanto da produção cinematográfica que lhe antecedeu. Jogos de luzes e sombras e enquadramentos (fugazes e dramáticos) lembram a obra do criador de "Aurora". Já o enredo recupera outro momento - mais recente, igualmente brilhante - do cinema: Nas errâncias de Branca de Neve após sua fuga do jugo da madrasta faz-se presente o mote de "Fale com ela" (2002), de Almodóvar, onde igualmente há homenagem ao cinema silencioso: o membro da trupe dos toureadores que ama a mocinha em coma acalenta o seu silêncio - como nós acalentamos o silêncio prenhe de sentido dos filmes mudos.

4- Azul é a cor mais quente ("La vie d’Adèle", Abdellatif Kechiche, França, 2013) 

5- O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2013) 
Filme brasileiro que mais burburinho causou ao longo do ano, "O som ao redor" narra o cotidiano de um bairro de classe média do Recife por meio de um sofisticado exercício técnico. A banda sonora exerce papel preponderante, como o título faz anunciar. A qualidade da obra se apresenta logo na cena que a abre, no plano-sequência que percorre visualmente a área comum de um edifício, atravessada pelos ruídos que emergem de dentro e fora de seus muros - surgindo, entrecortando-se, calando-se à medida em que a câmera circula. As personagens seguem a trilha da exasperação anunciada pelo barulho circundante: Cachorros irrequietos, britadeiras, estilhaços, mesmo o ruído aparentemente calmante de uma cachoeira penetram-lhes os ossos. Os fios lançados ao longo da trama, através do preponderante uso expressionista do som, culminam na costura de um thriller tão local quanto universal. "O som ao redor" é o nosso concorrente ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Tenho uma impressão muito forte de que ele ficará entre os 5 finalistas. 

6- Dentro de casa (“Dans la Maison”, François Ozon, França, 2012) 
Ozon une-se novamente ao fabuloso Fabrice Luchini (a quem dirigiu recentemente em "Potiche") para narrar a história do professor de Liceu enredado nas teias da novela escrita pelo aluno-prodígio Claude Garcia (Ernst Umhauer). Ficção e realidade se interpenetram num perigoso crescendo: à medida em que o aluno, com a ajuda do professor, vai refinando sua escrita, seu lugar dentro da família que ele resolve retratar desloca-se do posto de observador para o de ator. Claude deseja a onisciência, mas também quer-se narrador-personagem, daí a bisbilhotar de modo cada vez mais assertivo a vida da família, a interferir de forma crescente em seu dia-a-dia... Essa tragicomédia com cheiro de thriller traz também no elenco outro primor de atriz, Kristin Scott Thomas. 

7- O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira, Portugal, 2010) 

8- O amante da rainha ("En kongelig affære”, Nikolaj Arcel, Dinamarca, 2012) 
O cinema dinamarquês ganhou protagonismo na Europa em 2012 depois que o ótimo Mads Mikkelsen arrebatou o prêmio de Melhor Ator em Cannes com "A Caça" (de Thomas Vinterberg, história do professor do jardim de infância injustamente acusado de pedofilia). "O Amante da Rainha" rodou o circuito europeu em seguida e mostrou ao público o ator versátil que ele é. Mikkelsen interpreta o médico do rei louco Christian VII que se envolve amorosamente com a rainha e, graças à confiança inabalável que o monarca deposita nele, acaba adquirindo foros de governança, imprimindo ideais iluministas à atrasada Dinamarca. A película é interessante não apenas porque os quiproquós têm lastro histórico, mas sobretudo pela belíssima fotografia, a competente reconstituição de época (séc. XVIII) e - sobretudo - a química entre Mikkensen e Alicia Vikkander. 

9- Django livre ("Django Unchained", Quentin Tarantino, EUA, 2012) 
Um típico Tarantino, "Django livre" lança mão de referências pop, de grande elenco e de muito sangue para contar a história do escravo em busca da liberdade para si e sua esposa. Ajuda-o o dentista Dr. King Schultz - Christoph Waltz, brilhante num papel de "mocinho" depois de seu memorável nazista arquetípico de "Bastardos Inglórios", o filme anterior de Tarantino). A inversão de papéis segue com a escalação do cada vez melhor Leonardo Di Caprio como Calvin Candie, o sanguinário fazendeiro que tem a posse da esposa de Django. Pontuado por ironia, o filme fecha com uma brilhante sequência que carrega na sátira à arrebicada nobreza francesa, molde para a alta-sociedade americana do século XIX. No entanto, todo o empolamento desce pelo ralo quando a saraivada de balas começa...

10- Frances Ha (Noah Baumbach, EUA, 2012)
Não é só o branco e preto e a corrida desembestada da mocinha pelas ruas de New York que nos fazem aproximar o luminoso "Frances Ha" de "Manhattan", obra-prima de Woody Allen. A protagonista do longa de Baumbach (Greta Gerwig, co-roteirista da história junto com o diretor) também é uma apaixonada pela cidade. Com a diferença de que a visada irônica de Allen é aqui substituída por uma doçura ingênua que se casa perfeitamente à protagonista, jovem aspirante a dançarina sem brilho particular que tenta se descobrir na vida afetiva e profissional. A câmera segue as andanças (e os bailados...) da mocinha pelas ruas da cidade, dividindo seus descaminhos por meio de intertítulos que lembram a organização de um filme silencioso, e aborda com uma suavidade matreira seus altos e baixos - mesmo ao final, e prova disso é a sequência que encerra o périplo da jovem, quando ela finalmente consegue colocar seu nome na porta de seu apartamento próprio e, simbolicamente, acabar de construir a sua identidade.