Mostrando postagens com marcador Cantando na Chuva. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cantando na Chuva. Mostrar todas as postagens

sábado, 31 de março de 2012

O musical dos musicais: “Cantando na Chuva” (Singin’ in the Rain, 1952)


Parece mentira que a obra prima de Gene Kelly e Stanley Donen completou esta semana 60 anos, tão lépida e faceira ela ainda é; mágica do cinema, que dá miraculosa juventude eterna a alguns de seus produtos. Nos três anos de blog quis muitas vezes falar desse filme ao qual já vi seguramente 60 vezes... Mas como me debruçar a contento em algo que tem pra mim tão grande valor afetivo? E o que dizer de uma obra sobre a qual tudo já se disse? O viés mais seguro para fazê-lo, penso hoje que seja o da memória. “Singin’ in the Rain” marcou-me mais que qualquer outro filme. Por mais tempo, pelo menos. Compilar minhas memórias dele talvez (me) ajude a entender porque eu o amo tanto.
“Singin’ in the Rain” foi no início projetado como mais um sucesso de box office da “unidade” de Arthur Freed na MGM. Moda na época era girar os musicais em torno do cancioneiro de compositores americanos relevantes. Desta vez escolheu-se a obra do próprio Freed e de Nacio Herb Brown, respectivamente letrista e compositor de sucessos dos talkies de Hollywood desde 1929. A música tema soou na revista cinematográfica “The Hollywood Review of 1929”, aurora do cinema falado. O sentimento infantil e festivo de se dançar debaixo de um aguaceiro foi o ponto de partida obrigatório para que Adolph Green e Betty Comden construísse o enredo. Costuram o longa outras canções da dupla Freed/Brown, compostas para filmes como “Babies in arms”, de 39 (Good Morning); “The Broadway Melody”, de 29 (“You were meant for me”, “The Broadway Melody”, “The wedding of the painted doll”); “São Francisco: cidade do pecado” (Would you) – filmes de qualidade muito variada, alguns bastante fracos (como “The Broadway Melody”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 29). É notável que esse material heterogêneo tivesse feito brotar flor tão bela.
Mais que beleza, o que Green e Comden conseguem é sistematizar, com artesania ímpar, a História de um filão cinematográfico de tremendo sucesso das décadas de 30-50 (o cinema musical) e de uma fase delicada do cinema mundial (a introdução do som e a reestruturação do quadro “estrelar” das grandes companhias). E isso de forma leve e bem-humorada, num produto de entretenimento plenamente apetecível à massa que ia ao cinema nos anos 50 – uma porção de pretensiosos do século XXI poderiam se aproveitar dessa lição, tornando a arte legível ao espectador contemporâneo...
“Singin’...” recua até o ano de 1927, até os momentos que antecedem e sucedem a chegada de “The Jazz Singer”, o primeiro filme da indústria a inserir de modo sistemático diálogos falados e música. Protagonizado por Al Jolson, artista de renome da Broadway daqueles tempos, o filme causou comoção, não só no público, desejoso de ouvir as vozes dos artistas, como do meio artístico, com razão temeroso de que artistas de vozes pouco atraentes perdessem espaço. Dentro deste contexto histórico recriado por Comden e Green é inserido Don Lockwood (Gene Kelly), personagem ficcional que remete a galãs como John Barrymore e Douglas Fairbanks, que incorporava nas telas o másculo protetor das fêmeas da Idade Média à Idade Contemporânea. Seu par romântico é a loura linda, instável e de voz pouco fotogênica Lina Lamont (Jean Hagen), alusão a atrizes como a norueguesa Greta Nissen, que perderam espaço na tela branca assim que Hollywood começou a falar.
O filme pinta a trajetória desse par romântico que, como tantos, foi cozinhado pelas revistas de 
fofocas de Hollywood. Ambos supostamente se amam. Na verdade, vivem a trocar farpas: o ator detestando a atriz; ela infantilmente acreditando nas fofocas ventiladas pela imprensa. A mulher de voz esganiçada e humor de prima-dona perde espaço para Kathy Selden (Debbie Reynolds), um dos tantos novos rostos surgidos com o som: jovem, fresca e musical. O galã mantém seu posto de macho alfa dentro e fora das telas, agora não mais como o “Cavaleiro Duelista” da fita muda sustada em plena produção, mas como o “Cavaleiro Dançante” da mais nova produção musical – gênero que ascende com a chegada do som, ironicamente atingindo naqueles anos 50 seu apogeu e seu declínio.
Se não bastasse a fidelidade com que a história dessa Era tumultuosa é contada em “Singin’ in the Rain”, o filme ainda surpreende pela genialidade com que conduz o que lhe é mais elementar: a 
música e a comédia. Para ilustrá-lo, cenas pegas ao acaso bastam: A dançarina e atriz iniciante Kathy Selden (uma crua e talvez por isso mesmo eficaz Debbie Reynolds) é obrigada pelo acaso a dar carona a Don Lockwood: para resistir à investida do galanteador (o trocadilho com o nome do Don Juan não é casual), Kathy relativiza o valor artístico do trabalho dele – “Não passa de pantomima”, diz ela, diferente do teatro, arte de verdade, repleta de diálogos grandiosos. John Barrymore, irmão de carne-e-osso de Don Lockwood, possivelmente ouviu assertivas do tipo, ele que trocara os palcos onde declamara Shakespeare pelo cinema silencioso, muito mais lucrativo. Don no começo faz pouco da jovem que sonhava sucesso nos palcos: “Kathy Selden como Julieta, como Lady Macbeth, como Rei Lear (para esse papel você vai precisar usar uma barba)”. Mas no final, o desfecho cômico-patético-dramático de Don, que tem suas roupas rasgadas pelo carro de Kathy depois de lhe dizer teatralmente “I must tear myself from your side” (“Devo me apartar de você”, “tear” significando igualmente rasgar”), patenteia de modo efetivo o lugar de peça de museu que Hollywood legava aos artistas incapazes de fazerem a passagem do cinema silencioso para o sonoro.
Pérolas são todas as sequências do estúdio onde será filmado o filme-dentro-do-filme “Cavaleiro Duelista”: o plano-sequência de Don passeando pelo estúdio da fictícia “Monumental Pictures” (ironia graciosa com outros estúdios de nome hiperbólico, como a “Universal Pictures”), enquanto no segundo plano desenvolvem-se cenas que em nada se relacionam umas às outras (um ritual indígena; um ajuntamento de torcedores vestindo as cores da bandeira; uma luta em cima de uma locomotiva); as cenas do silent “Cavaleiro Duelista” propriamente ditas, por exemplo aquela em que Don executa trejeitos amorosos para a mulher fingida que era sua estrela, enquanto a boca dele lhe profere uma torrente de insultos; e depois, o mesmo estúdio aparelhado para a rodagem de filmes sonoros, com seus técnicos ainda acostumando-se com a novidade (os microfones mal posicionados que ora gravavam os batimentos cardíacos da atriz, ora deixavam de captar parte importante do que ela dizia).
Essas cenas todas encontram ressonâncias no mundo real. Hoje são notórias as brigas on screen e off screen entre artistas que o público julgava se amarem. Isso sem contar os problemas ocorridos durante a projeção, sobre os quais até revistas brasileiras debruçaram-se – a Cinearte, depois de relatar como um delay do som destruiu a atmosfera dramática de “Coquete” (1929), primeiro filme falado de Mary Pickford, questiona-se se o cinema sonoro sobreviveria. “Singin’ in the Rain” traz uma cena épica alusiva à questão, na qual a mocinha sem querer troca de voz com o vilão, transformando o drama na mais arrematada comédia e o “Cavaleiro Duelista”, num fracasso de bilheteria.
Ao tomar como objeto os bastidores de Hollywood do final de 1920, “Singin’ in the Rain” prefere a leveza ao drama. Escolhe como protagonista um astro que, como vários, fez com segurança a passagem do silencioso ao sonoro. Assim, tem a oportunidade de usar a trilha alegre e adocicada 
que Freed e Brown criaram para tantos filmes em que imperava o Happy End. A minha preferida de todos os tempos, desde me conheço por cinéfila, é “Good Morning”, introduzida por Kathy Selden depois que ela propõe a Don e ao amigo comum Cosmo Brown (Donald O’Connor) transformarem o “Cavaleiro Duelista” no “Cavaleiro Dançante”. Meu lado feminista adora ver a jovenzinha com esse poder na sociedade de 1920, que começava a reconhecer os direitos da mulher; mas também meu lado crítico não deixa de perceber a ironia da situação posta em cena – caberá à nova geração a primazia nos musicais da época (tanto que é a adolescente “Judy Garland” a responsável por entoar “Good Morning” pela primeira vez em película).
Leveza que em momento algum significa fragilidade 
de concepção. O filme tem uma porção de números musicais primorosamente coreografados: Além de “Good Morning” e da legendária “Singin’ in the Rain” destaca-se o balé da “Broadway Melody”, que no filme-dentro-do-filme sinalizaria a passagem da realidade ao sonho do protagonista, mas no filme serve de desculpa para uma das sequências mais sofisticadas da história do cinema musical: com grande corpo de baile, números de balé e sapateado, e uma longilínea Cyd Charisse dividindo com Gene uma sequência em que ela ora se faz de vamp arrasa quarteirão, ora de mocinha (prenúncio do que ela faria um ano mais tarde no número “A Murder Mistery in Jazz”, de “The Band Wagon”). Outro imperdível é “Make ’em Laugh”, que presta uma justa homenagem aos números disparatados do teatro de vaudeville, homenagem ainda mais cabível já que é dançado por Donald O’Connor, ator formado por esse teatro.
“Singin’ in the Rain” foi pouco lembrado pelo Oscar de 1953 (onde recebeu duas indicações e nenhum prêmio), talvez porque um ano antes “Sinfonia de Paris” – que também tinha o dedo de Gene – levara para casa 6 Oscars (incluindo os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Música). No entanto, ele teve a sorte de ter entre seus criadores o obstinado Gene Kelly, que anos depois produziria a triologia de documentários “That’s Entertainment”, hino de amor ao cinema musical que situava “Singin’ in the Rain” entre os grandes, ao lado de “Sinfonia de Paris”. Felizmente acreditaram em Gene, e agora esta e outras maravilhas do cinema musical estão em DVDs recheados de extras, prontas para deliciarem as novas gerações.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Artista (2011): de volta aos tempos em que o silêncio valia ouro

Vivemos a Era do revival do Cinema Clássico. Homenagem ao centenário da estabilização do cinema como “máquina de contar histórias” ou constatação de que tudo o que valia a pena ser dito pela Sétima Arte já o foi e nos resta apenas redizê-lo? Dos indicados ao Oscar desse ano, “A invenção de Hugo Cabret”, “Meia-noite em Paris” e “O Artista” – a enumeração não é exaustiva – são exemplos de produções alinhadas à febre. Isso sem falar no curta de animação The Fantastic Flying Books of Mister Moris Lessmore”, que parece “The Wizard of Oz” (1939) transposto para o contexto da fruição literária, com direito a furacão, a trabalho análogo com as paletas do cinza e a colorida, e com livrinhos-anões dançando em torno do protagonista-Dorothy ao longo de um brown brick road... Em vários desses casos, a citação de obras antigas conseguiu bons resultados. Exemplo é o franco-americano “O Artista” (“The Artist”, Michel Hazanivicous, 2011), filme tornado cult desde que seu protagonista Jean Dujardin recebeu ano passado em Cannes o prêmio de Melhor Ator e a obra concorreu à Palma de Ouro.
“O Artista” conta a história de George Valentim, um star de cinema bem ao gosto dos anos 20 (charmoso, egocêntrico e milionário) e de Peppy Miller, aspirante a atriz que ruma à Hollywood em busca de fama – trajetória comum a milhares de jovens iludidas pelas revistas de fofocas cinematográficas da época. A câmera narrará paralelamente as trajetórias de ambos, trajetórias decididas pela transição do cinema silencioso para o falado. Certamente, já vimos esse filme antes – e “O Artista” não tenta esconder suas influências, antes as cita exaustivamente (não só ao longo da hora e meia de projeção como de modo textual, nas entrevistas do diretor), procurando estabelecer seu valor antes de tudo como homenagem às primeiras décadas do cinema de estúdio.
O filme é um charme do começo ao fim: tem personagens carismáticos, situações divertidas e tocantes. Tem o mérito de recontar para as novas gerações a história do cinema silencioso no seu momento mais dramático, a transição dos silents para os talkies. E ainda o faz a partir da forma: em branco e negro e sem o uso de diálogos. O roteiro (também de Hazanivicous) é estruturado com competência, com raros momentos de pouco interesse e uma ocasional (e bem-vinda) fuga do dramalhão pelo humor. É um filme muito bom, mas não chega a ser grande devido ao seu próprio contexto de produção e circulação: um filme silencioso e branco-e-preto só seria aceito nesses tempos de tagarelice filmada, 3D, High Definition e quejandas inovações tecnológicas se fizesse concessões ao grande público. A estratégia deu certo, tanto que o filme anda enchendo salas ao redor do mundo. Pretendo, daqui em diante, olhar com algum cuidado para essas estratégias:
George Valentim, encarnado de modo brilhante por Dujardin, é Douglas Fairbanks, John Gilbert, Ronald Colman e, porque não, Rodolfo Valentino (seu nome não é casual). Porque o ator incorpora bem o gestual desses galãs dos silenciosos, o que é um mérito seu; e porque a película desenvolve-o segundo as personas privadas e cinematográficas dos galãs dos anos 20 – desses, apenas Colman fez a passagem para o cinema falado; as carreiras dos outros dois morreram com a chegada do som (e Valentino morreu antes de Hollywood decidir pela transição). Ele é também – e, sobretudo – o Don Lockwood de “Cantando na Chuva” (1952), que por sua vez já era uma soma dos galãs anteriores temperado com tap dancing.
Peppy (Bérénice Bejo) é a diluição de uma porção de estrelas que galgaram com esforço os degraus da fama, como, por exemplo, Gloria Swanson, que só ascendeu a protagonista de filmes sérios depois de ser girl da Keystone e saco-de-pancadas de comédias pastelão. Ela tem suas matrizes ficcionais não só na Kathy Selden de “Cantando na Chuva”, corista aspirante a atriz de cinema por quem o galã Lockwood se apaixona, como nas várias stars de “A Star is Born”, especialmente Janet Gaynor (1937) e Judy Garland (1954) – ambas descobertas por astros que vão se apagando enquanto elas ganham espaço no céu de estrelas de Hollywood.
Tais influências são trabalhadas com afinco (e, porque não dizer, paixão exacerbada) em “O Artista”, umas vezes até com prejuízo da trama. Um compêndio de referências iria encompridar desnecessariamente o texto, portanto, deixemo-lo de lado e vamos nos concentrar nas principais: as cenas de luta de George Valentim (“The Mark of Zorro”, de Douglas Fairbanks 1920 e, depois, o filme-dentro-do-filme de “Cantando na chuva”); seu encontro com a jovem, no set de filmagens e os planos do galã caminhando entre cenários e da jovem caminhando pelas ruas do estúdio (“Cantando...”); a estética art déco do cenário onde ambos bailam a cena final e os ângulos em que os planos são tomados (qualquer filme de Ginger Rogers e Fred Astaire, exceto o primeiro e o último – nos outros oito a elegância dos amplos cenários brancos casava-se perfeitamente à imagem dos atores); o fato de se encontrar, na música, um meio-termo entre a voz e o silêncio (“Cantando...”).
Além dessas relações que dizem respeito ao enredo, “O Artista” cita inúmeros outros clássicos na composição de suas sequências: o “Cidadão Kane”, na montagem paralela que, por meio de pequenas cenas na mesa do almoço, mostra o adensamento do abismo que separa o ator em decadência e sua esposa; “Sunset Boulevard” (1950), na cena em que o ator já decadente se observa no écran; e “Pennies from Heaven” (1981) - esta canção, que compõe a banda sonora de “O Artista”, só faz salientar que ele executa um movimento análogo de paráfrase do cinema clássico ao que o filme de Steve Martin fez nos anos 80. E mais, a cena que eu suponho a mais bonita do filme, aquela em que Peppy veste-se com um dos braços do terno do galã para ganhar dele um abraço impossível, foi livremente baseada na comovente cena de Stela Maris” (1917) em que a órfã (Mary Pickford, a estrela-das-estrelas daqueles tempos) interage com o terno do homem que a adotou. Uma dessas referências chegou a causar polêmica: o uso literal de um longo trecho do score de “Um corpo que cai” (1957), composto por Bernard Hermann, culminou no repúdio formal de Kim Novac, a protagonista da fita de Hitchcock.
Porém, eu
suponho que nada tenha influenciado “O Artista” tanto quanto o fez “Show People” (King Vidor, 1928).

A matriz: “Show People” (1928)

Cruzei com esta obra-prima esquecida de King Vidor por um acaso um tanto quanto cinematográfico. Quem o sugeriu foi o Sistema do IMDB, que por algum motivo obscuro sabia que eu precisava vê-lo. A obra é protagonizada por Marion Davies, que não é outra senão a amante de Randolph Hearst parodiada por Orson Welles em “Cidadão Kane” (1940). Ao contrário do que pinta o ferino Welles, Davies era uma atriz cômica sensacional, e está especialmente luminosa em “Show People” na pele da mocinha que, por influência do pai, decide tentar o sucesso na capital do cinema. Ela adentra Hollywood, passa pelos estúdios e, pescada na entrada dos extras de um, é jogada em cena ao lado de um galã. O paralelo com “O Artista” não para por aí. A jovem é Peggy Pepper (e a semelhança nos nomes não é casual, pois Miss Pepper é tão apimentada quanto a Miss Peppy de “O Artista” é vivaz). E cabe ao galã – que dessa vez não passa de um ator principal de comédia pastelão – treiná-la para o sucesso.

A moça sobe como um foguete ao céu de estrelas de Hollywood e o rapaz segue no pastelão, mas quem se sai realmente bem é o público, que tem o prazer de conhecer detalhes dos dois mundos – o que mais me fascina em Hollywood é seu duplo movimento de mostrar ao público os pouco realistas bastidores das produções para depois convencê-lo que as histórias filmadas eram a mais pura realidade.
No nosso passeio pela Hollywood de 1928 – feito no calor da hora, o que o torna ainda mais fascinante – trombamos com Chaplin (sem os andrajos do mendigo que ele tornou célebre), com Douglas Fairbanks, com Mary Pickford, todos se desempenhando a si próprios (melhor dizendo, todos reforçando os tipos que o star system lhes criou). Menciona-se Gloria Swanson, àquela altura uma das grandes do cinema e que, segundo o mocinho, “antes de tudo foi obrigada a fazer comédia pastelão”. Surgem nele cenas que depois outros filmes tornariam notórias, como a personagem de Judy Garland encenando um close para o marido em “Nasce uma Estrela”, ou a personagem de Gene Kelly beijando paulatinamente os braços da nobre que ele amava numa sequência de filme-dentro-do-filme em “Cantando na chuva”. Isso sem contar o uso notável que “Show People” faz da banda sonora, incorporando na película, logo na alvorada do som, as canções populares americanas escritas por clássicos como Irving Berlin e os leitmotiven das personagens – procedimento que depois se tornaria padrão (e é padrão até hoje). “The Artist” usa em seu score alguns acordes do leitmotiv do par romântico de “Show People”, “We’ll meet again”, de Abner Greenberg. Isso para eu não me estender nas outras várias citações que ele faz do filme, e que certamente o leitor foi percebendo ao longo da leitura. Uma, final, e que salta aos olhos, é o título das películas: porque “The Artist” concentra seu universo no ator principal; “Show People”, na indústria do espetáculo.

*

Influenciado por tantas obras-primas, não tem como "O Artista" não ser bom. Porém, quem conhece os filmes citados corre o risco de passar mais tempo a elencar as referências que a mergulhar na história e fruí-la. É certo que as citações dos clássicos aciona a memória afetiva, ajudando no envolvimento do público. Mas ela é feita no filme com demasiada pertinácia, o que o faz vez por outra esbarrar na obviedade, ou então, que o eixo narrativo seja abandonado em prol do exercício de erudição cinematográfica. O filme ganharia, por exemplo, se investisse no aprofundamento das personagens principais, que não passam de tipos de pouca densidade psicológica. A simplificação certamente contribui no entendimento da história para a massa do público desacostumada aos silents, mas é só se conhecer meia dúzia dos grandes da época (dramas como "The Crowd", "Aurora" ou "A última gargalhada", thrillers como "Nosferatu", épicos como "The Gosta Berling Saga" e comédias como "Lady Windermere's Fan", de gênios como Lubitsch, Murnau e King Vidor) para se relativizar seu valor.
Por isso, penso que os melhores momentos da trama são aqueles em que as citações são observadas criticamente. Valentim encarando a tela branca, tal qual Norma Desmond, mas para dizer “Você é um covarde!” é um grande momento. Mas o melhor é mesmo o abraço simbólico que Peppy dá em seu amado – abraço que cria um novo sintagma no já formidável dicionário de gestuais do cinema silencioso.
Por fim, não podemos deixar de lado a grande sacada do filme – o elemento que é mais intrinsecamente dele: o desdobramento dos signos referentes à palavra. A cena inicial, também um filme-dentro-do-filme, em nada se distanciaria de “Ed Wood” (1994) se o protagonista não dissesse, em letras garrafais: “I WONT SPEAK”. Aqui, pessoa e personagem se integram numa mesma persona – elemento caro ao cinema de estúdio, que elimina as barreiras entre o mundo dos sonhos criado para as telas e o mundo real.
Valentim passará o filme silencioso em silêncio, porém, seus gestos serão tão copiosos como eram os dos artistas que, segundo Metz, tentavam transformar cada palavra num movimento de corpo. A narrativa, sempre subjetiva, mimetizará o desespero do protagonista com relação à sonorização dos estúdios por meio de uma inteligente sequência de pesadelo, sequência em que ele escuta, intensificados, todos os ruídos do mundo, menos sua própria voz.
É certo que o filme simplifica a questão, ao transformar o bloqueio do ator com relação à palavra num desvio psicológico dele, evitando assim falar dos artistas enxotados da cena por terem vozes pouco condizentes com os tipos que representavam ou dos conluios das companhias para que algumas carreiras naufragassem. Porém, o expediente acaba por funcionar, e eu acredito que durante algum tempo se vai falar da cena final: momento catártico em que, depois de um frenético número de sapateado, a gente escuta pela primeira vez a voz do protagonista. Nessa hora me senti como o público que, depois de esperar por meia hora a primeira palavra de Greta Garbo em "Anna Christie", pôde finalmente respirar aliviado.


*

Eis, abaixo, a tal sequência de "O Artista" em que é usado o score de "Um corpo que Cai". Caso haja problemas na visualização ela pode ser baixada por aqui:






*

Esse post foi escrito com a ajuda de: o livro A significação no cinema, de Christian Metz; o documentário "A batalha por Cidadão Kane"; o site do Mary Pickford Institute, cuja resenha sobre Stela Maris (por Hugh Neely) me levou ao filme e Jonas Nordin, que apresenta o trecho de "Um corpo que cai" vítima de litígio no blog All talking, all singing, all dancing"; a indicação que Elisa Coelho me fez do curta-metragem. "Show People" pode ser encontrado aqui.