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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Era uma vez em Nova York...

Nova York, uma das cidades-fetiche do cinema, aparece nas telas paulistanas em três produções recentes: o indie Tudo acontece em Nova York (Swim little fish swim, 2013), produção franco-americana dirigida e protagonizada por Ruben Amar e Lola Bessis; o norte-americano Bem-vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014) com Jacqueline Bisset e Gérard Depardieu; e finalmente, o objeto de nosso post, Era uma vez em Nova York (The Immigrant, 2013), produção norte-americana protagonizada por brilhantes Marion Cottilard e Joaquin Phoenix e dirigida com pulso por James Gray. 
A metrópole surge, aqui, em tons lúgubres. A história se passa nos albores dos anos de 1920, época de intensa imigração de europeus à América. Centra-se na polonesa Ewa Cybulska (Cottilard), que, como tantos, fugiu da minguante Europa do pós-guerra rumo ao promissor mundo novo representado pelos Estados Unidos. 
Ewa desembarca numa das ilhas adjacentes à cidade com a irmã Magda, jovem frágil e doente. Sua Via-Sacra começa tão logo ela aporta. Principia por se ver apartada da irmã, vítima de tuberculose (portanto, objeto de quarentena) para, em seguida, ser ameaçada com a extradição, devido à conduta moralmente repreensível que supostamente tivera a bordo. Sem família que a protegesse – os tios naturalizados americanos não aparecem para buscar as irmãs –, temerosa de se distanciar de Magda, Ewa aceita o auxílio de Bruno Weiss (Phoenix), que, de passagem pelo local, surpreendentemente se interessa por sua situação. 
Como se é de supor, Bruno não é o filantropo que aparenta. Após abrigá-la, convoca-a a tomar parte nos espetáculos burlescos que ele dirige, num reles café-concerto da cidade. Dali à prostituição é um pulo. O palco serve de vitrine às jovens, vendidas, depois, a granel, ao público frequentador do local. Puritana de trato, Ewa vê-se, em cena, transformada na alegoria da Estátua da Liberdade: fantasia que num só tempo metaforiza seu declínio àquela sorte de espetáculos “livres”, em que a exibição do corpo nos palcos prenunciava os prazeres do leito, e serve de ironia à sua situação de cativeiro – torna-se cada vez mais atada a Bruno, cujos contatos na imigração poderiam salvar a vida da irmã, e cujos clientes arregimentados lhe garantiam o pão. 
A trama acena em razoável medida ao melodrama, como se observa. A novidade, aqui, é o burilamento bastante acima de média dado às personagens de Ewa e Bruno, graças tanto ao roteiro quanto aos méritos pessoais desse excelente par de artistas que é Marion Cottilard e Joaquin Phoenix. Ambos são, eu diria, o ponto alto desse filme já muito bem resolvido no que toca à fotografia, roteiro e direção. Aliás, Marion, em Piaf (2007), e Phoenix, em (por exemplo) Gladiator, já demonstraram capacidade invulgar de deslocar os caracteres epidérmicos deste gênero da obviedade rumo a inesperadas alturas. Phoenix desdobra diante das câmeras um de seus intermináveis (mas não por isso menos interessantes) enfants terribles – a exemplo do Leonard Kraditor de Two Lovers (de 2008, também sob a batuta de Gray) e do Freddie Quell de The Master (2012). Tais personagens passionais espelham – eu já o disse alhures– o tipo sanguíneo do ator, daí a ele fazê-los com tanta verdade. Marion, ao contrário dele, a despersonalização em pessoa, dá neste filme uma Ewa prenhe de ambiguidades: rígida e incandescente; Madalena com laivos de Virgem Maria, a galgar vacilante o caminho do inferno aos céus. 
Era uma vez em Nova York abraça aparentemente o enquadramento do Melodrama, mas alça alguns voos inesperados. Volve uma visada cristã à existência enquanto Via-Sacra do pecado à salvação. Mas tal leitura não é feita sem sobressaltos – daí o interesse do drama. O corpo da mocinha – dotado de pureza irretocável, segundo as convenções do melodrama –, é transformado, no filme, no altar onde se expiam seus pecados. Quanto mais “decaída”, tanto mais digna de nota aos olhos de Deus ela é. Todavia, malgrado a leitura deveras torta que Ewa faz do Evangelho, nesta história em que fatalismo e casualidade curiosamente dão-se as mãos, ainda assim é dado a ela vislumbrar a promessa de felicidade: traduzida pela tela bipartida onde se veem, num só tempo, a aproximação da sonhada Nova York e o afastamento do algoz. 
Aliás, achados cinematográficos e simbólicos do tipo exemplificam o cuidado de um filme preocupado em aliar tema e forma. Outros exemplos: A melancólica paleta do amarelo que o envelhece. A poesia de certos lampejos de reconstrução de época, a somarem o histórico e o fictício: Caruso (Joseph Calleja) levando sua arte aos imigrantes-prisioneiros; o ilusionista romântico (Jeremy Renner), graças ao qual a vida desgraçada da mocinha se impregna de alguma magia... E, enfim, o batom com que Ewa adorna os lábios, feito de seu sangue derramado – metáfora cabal dos amargores que subjazem à beleza da aparência.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Quando nada acontece na tela: Amantes (Two lovers, 2008)

Do volume de filmes que vejo, tem sido meu costume comentar aqui os que prefiro. Hoje, abro uma exceção para falar sobre esse filme estranho que vi faz alguns dias.
Estranho não quer necessariamente dizer ruim. As várias resenhas sobre ele, que li depois de sair do cinema, demonstram que o filme satisfez uma porção de gente. Eu efetivamente não fui uma delas.
A explicação disso talvez esteja no chiste que a personagem de Audrey Hepburn faz em "Quando Paris Alucina (Paris when it sizzles, 1963), esse sim, um de meus favoritos. O filme da Audrey faz uma divertida leitura sobre o processo de produção de uma obra cinematográfica. Audrey representa uma taquígrafa contratada por um roteirista que deseja alinhavar em dois dias o script de um filme. Ao mergulharem no trabalho intenso, ambos dão a ver ao público a maquinaria da maior indústria de cinema do mundo - Hollywood: a necessidade de o filme terminar com a aproximação das duas cabeças muito bem pagas que trocarão aquele beijo responsável pela venda de pipocas e ingressos do cinema. A brincadeira com a conhecida fórmula de sucesso de Hollywood se soma às espinafradas dadas em alguns cineastas ditos cult, que, segundo a personagem de Audrey, constróem um filme pela negação. Daí os títulos paródicos "A festa que não aconteceu"; "Nenhuma dança nas ruas", etc.
Vendo "Amantes", me senti em contato com um desses pseudo cults ironizados pela taquígrafa atilada - que, aliás, convence o roteirista (interpretado por William Holden) a escrever um roteiro mais real, mais otimista, enfim, mais hollywoodiano.
Não defendo apenas os filmes que seguem a fórmula antiga e conhecida. Não é um grande problema quando as coisas efetivamente não acontecem num filme, mas sim quando elas deixam de acontecer em virtude de uma tentativa mal-sucedida do diretor de se afastar dos padrões. Isso - é o que ocorre em "Amantes" - faz com que o filme se torne falso, postiço.
Que nome dar para aquela fotografia titubeante que parece ter sido produzida por alguém com vertigem? Ela cairia bem se encontrasse alguma contrapartida na história, mas não parece ser esse o caso. Se ela tivesse sido usada para refletir o estado de perturbação e alheamento do protagonista, talvez a cena do primeiro jantar devesse ser tomada da distância, e não por meio de primeiríssimos planos de cada um dos pratos. E os diálogos fajutos, pobres mesmo, semeados pelo roteiro: "Você é um doido?", "Não.". E aquele (disforme) triângulo amoroso, ou devemos dizer "quadrado", já que a foto da antiga namorada assombra o protagonista até quase o fim da história? Sem contar a incoerência sobre a qual a história é construída: o rapaz que, dois anos depois de abandonado pela namorada, ainda tentava dar adeus à vida, de repente se vê dividido entre duas mulheres. É claro que a vida é complexa e o psiquismo ainda incompreensível, mas quando o diretor abusa dessas premissas, corre o risco de ser rejeitado.
O maior problema, na minha opinião, é que o filme não consegue alçar voo. Triste, pois ele faz algumas brilhantes tentativas. Além dos bons desempenhos de Gwyneth Paltrow, Joaquim Phoenix e Isabella Rossellini - eles fizeram tudo o que podiam com o roteiro que tinham -, os cenários são precisos. Os da casa do rapaz e da tinturaria de seu pai pintam muito bem os domínios de uma família de classe média baixa por demais presa ao passado.
E, no que toca às personagens, chamo atenção para a mãe do protagonista, interpretada por Isabella Rossellini, assustadoramente parecida com sua mãe Ingrid Bergman nos gestos, no rosto e na voz.
Os trajes dos anos 40 usados por ela, tão semelhantes aos que sua mãe usou em filmes como "Arco do Triunfo" ou "Interlúdio", expressam com alguma crueldade a distância entre o glamour das personagens de Ingrid e a ostentação pueril e fora de lugar desta personagem de Isabella. Isso, somado às bolinhas de naftalina que deixam sua casa cheirando à casa de vó, estendem à família do protagonista o deslocamento vivido por ele.
É uma pena que tantos elementos interessantes se percam no meio de situações e diálogos mal construídos. Do contrário, teríamos um filme que certamente seria lembrado por muito tempo.