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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

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Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

sábado, 13 de agosto de 2011

Os 112 anos de Hitchcock: notas sobre “Um corpo que cai”, a indústria do cinema e outras cositas mais


Hoje os cinéfilos precisam comemorar: faz 112 anos que nasceu Alfred Hitchcock (13/8/1889-29/4/1980).
O que dizer desse inglês de alma cosmopolita cuja impecável sensibilidade artística gerou uma das obras mais densas da cinematografia mundial? Eu o amo apaixonadamente desde que era menina. Para mim, ele é quem melhor resume a Sétima Arte. Suas obras repletas de cenas de perseguição, grandes romances, traços detetivescos e bom-humor convidam o grande público à diversão. Porém, os elementos do melodrama rocambolesco são sempre sutilmente desvirtuados, para que saciem o gosto do público sem que traiam a arte.
Da primeira vez que vi “Um corpo que cai”, “Janela Indiscreta” ou “Psicose”, eu, que então devorava loucamente Agatha Christie, só queria descobrir o mistério que se escondia por detrás das personagens de Madeleine Elster, Lars Thorwald e Norman Bates. Quinze anos depois, volto a essas obras ainda com avidez. O diretor é um bruxo danado – algumas das faíscas que iluminam suas produções só se fazem visíveis para o espectador insistente.
Eu sou das devotadas, ao ponto de voltar pela 15ª vez a um filme como “Interlúdio”, por exemplo, mesmo que conheça de cor enredo e diálogos, apenas para prestar atenção nas tomadas, no modo como os planos são montados, na composição dos quadros, nas trucagens. Nem sempre dá certo. Mesmo que agora eu tenha mais maturidade e instrumentos críticos para captar as nuances dos diálogos ou o simbolismo dos objetos, muitas vezes acabo mesmo é enredada pela história. Ainda continuo torcendo para Cary Grant conseguir arrancar Ingrid Bergman da casa infestada de espiões nazistas; para ver Grace Kelly finalmente se colocar em posição de igualdade com o solteirão convicto Jimmy Stewart e, assim, dobrá-lo; para a velhinha informante de “A dama oculta” (1938) escapar do trem e cantarolar ao governo inglês a informação secreta em forma de melodia; para o belo Laurence Olivier se livrar do fantasma de Rebeca...
Tomar de passagem a filmografia de Hitchcock, apenas para o mérito da homenagem, geraria simplificações desnecessárias. Pelo menos 20 de suas 50 obras pedem mergulhos profundos que, infelizmente, não tenho meios de dar neste momento. Portanto, deixo os leitores com um bate-papo que Isabella Batista de Souza e eu fizemos sobre Hitch - e especialmente sobre "Vertigo"/"Um corpo que cai” (1958) - no final de 2010. Como eu, Isabella é da área de Letras. Vasculhando a internet em busca de referência sobre o filme para um trabalho de final de disciplina (na UFMG), ela trombou com o post que escrevi sobre ele em março de 2010. A conversa a seguir reflete o desejo dessas duas colegas de formação de entender o maior dos Hitchcocks.

I: Hitchcock é considerado o mestre do suspense e um dos melhores diretores de todos os tempos. Por que ele conquistou tamanha importância no cenário cinematográfico?

D: A obra de Hitchcock como um todo é importante para a história do cinema porque ele conseguiu elevar o filme de suspense (considerado até então um gênero menor) a objeto de arte. Os produtos do gênero hoje são influenciados pela obra do diretor – embora a massa dos filmes de suspense produzidas em nossos dias não chega aos pés da produzida por ele.
Todavia, embora hoje ninguém negue que o diretor é um dos maiores de todos os tempos, sua obra demorou para ser aceita pela Academia (apenas uma vez uma obra sua foi premiada com o Oscar de Melhor Filme – “Rebeca”, de 1940 – e ele nunca recebeu o prêmio de Melhor Diretor). Até a altura dos anos de 1960, Hitchcock era, no geral, considerado como mais um diretor da indústria do cinema, desejoso apenas de agradar o público para vender seu produto. Foi nessa época que os cineastas vanguardistas franceses enxergaram uma unidade em sua obra, o que respondia ao conceito de “autoria” criado por eles. Significava grosso modo que, mesmo produzindo seus filmes no centro da indústria cultural, alguns diretores teriam conseguido se descolar dos parâmetros meramente mercadológicos criados por ela. Exemplos de diretores de cuja obra se poderia depreender um estilo autoral seriam John Ford e Hitchcock: se se analisasse suas obras completas, seria possível perceber nelas o desenvolvimento e amadurecimento, ao longo do tempo, de alguns traços ou temas. Em 1962, François Truffaut, fundador da revista francesa Cahiers du Cinema, conduziu uma série de entrevistas históricas com Hitchcock, buscando derrubar por terra a ideia vulgarizada de que o diretor não produzia obras dignas de debate. As entrevistas, compiladas em português no ótimo Hitchcock/Truffaut: entrevistas, foram fundamentais para a mudança de posicionamento da crítica acerca da obra do diretor.

Vertigo, embora tenha sido um fracasso de bilheteria, está entre os 100 melhores filmes, de acordo com o Instituto de Cinema Americano. Por que essa obra carrega tão grande importância na carreira de Hitchcock e no cinema, em geral?

Bem, a questão da recepção das obras cinematográficas é curiosa. Nós hoje pouco sabemos sobre alguns filmes que geraram grandes bilheterias no seu tempo, porém, consideramos grandes obras outros que foram fracassos de público. Não convém levantar os motivos disso, que são muitos (e duvido que eu conheça todos), mas eles têm relação com uma série de fatores. Apenas um exemplo: No começo do cinema sonoro, os primeiros filmes musicais de Al Jolson (protagonista de “The Jazz Singer”, 1927, o primeiro filme sonoro rodado) foram assistidos por grande parte da população norte-americana, curiosa por ver nas telas pela primeira vez a sincronização de som e imagem. Hoje, poucos conhecem este artista e muitos de seus filmes são considerados apenas por sua importância histórica, já que não têm grandes qualidades artísticas.
Não podemos nos esquecer também de quão importante é a publicidade para a venda de um filme. A indústria norte-americana do cinema descobriu isso logo nos anos de 1910. Os departamentos de marketing eram peças importantes dos estúdios, tornando públicas as imagens dos artistas e as películas que faziam. Hollywood construía estrelas – mudava os nomes dos artistas que contratava, lhes inventava biografias chamativas, tudo isso para torná-los interessantes para o público que ia ao cinema e alimentava a indústria. Essa sede que o público tem hoje de conhecer as vidas das celebridades vem daquela época.
Hitchcock, como todos os outros diretores, sabia que o interesse do público era motivado por razões que nem sempre tinham relação com a esfera artística, por isso seus filmes foram tão bem sucedidos na época. O melhor exemplo talvez seja o caso de Psicose (1960): O diretor fez uma campanha junto ao público de “Não conte o final do filme para ninguém, para não estragar o prazer do espectador de conhecê-lo por si mesmo.” (isso pode ser conferido nos extras da edição do filme distribuída pela Paramount). Ele criava suspense junto ao público com relação à sua própria obra, ou seja, acima de tudo era um bom negociador. Além disso, era conhecedor do público que assistia aos seus filmes, portanto, elaborava as cenas objetivando determinadas reações das plateias. Isso fez com que parte considerável de sua obra tivesse obtido sucesso de bilheteria.
Tal sucesso não aconteceu com Vertigo, que, no entanto, teve cerca de 1 milhão e setecentos mil dólares de lucro (segundo informação do IMDB). Na entrevista a Truffaut, Hitchcock vê o filme como um fracasso porque afirma que as bilheterias apenas cobriram os gastos – estamos falando de um diretor que respeitava bastante a opinião do público. Isso considerado, é visível que o diretor não via no filme a relevância que hoje vemos nele. A análise retrospectiva da obra que ele nos deixou, no entanto, nos permite considerá-lo um dos mais importantes, porque nele o diretor atinge a excelência no manejo de temáticas e elementos com que trabalhou durante sua carreira: a sexualidade, as taras que se escondem na vida privada do homem burguês, etc.

Hitchcock, a esposa e a equipe de filmagem na Europa dos anos de 1920

A linguagem da câmera, os planos, o próprio nome do filme (Vertigo) – todas essas expressões carregam significados. Na resenha sobre o filme, você fala de como o “modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo”, exemplificando a primeira cena, em que John Ferguson e Midge Wood se encontram. Quais recursos o diretor utiliza para expressar características dos personagens, além das explicitadas no enredo? E quais são essas características?

Eu tentei pontuar um pouco isso ao longo da resenha (que, aliás, foi escrita numa tarde e não tem qualquer intenção de fechar uma interpretação da obra). Quis dizer que o enredo de Vertigo é básico comparado à excelência com que ele é construído cinematograficamente. Essa cena que você sublinhou, por exemplo. De acordo com o enredo, nela precisamos ficar sabendo que John está doente e recebendo apoio da amiga, que sente por ele um amor platônico. Quantas vezes não ouvimos histórias assim? Isso beira a subliteratura. Porém, o trabalho de Midge, o silêncio com que ela escuta o que lhe fala o homem e o modo como ela o olha quando ele menciona o episódio do casamento, bem como o modo como ela o ampara quando ele despenca da escada, trazem à tona essas ideias de modo incrivelmente conciso e denso, o que torna a cena tão fascinante.
Hitchcock é notório por escolher obras literárias menores para transformar em filmes. Perguntado por Truffaut sobre porque nunca havia adaptado nenhum clássico, afirmou algo como: “Porque essas obras têm muitas palavras e todas são importantes.”. Nós, que somos da Letras, devemos atentar a isso: o diretor percebe que o mundo construído pelos grandes romancistas passa pelas palavras que escolheram utilizar – retirar uma palavra do todo seria destruir a obra. Isso fica claro tão logo vemos as adaptações cinematográficas de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro – as piores são aquelas que desejam com mais veemência copiar literalmente a obra de Machado de Assis para as telas. Em Vertigo, Hitchcock estava interessado em trabalhar as ideias de modo cinematográfico (o que, aliás, é uma constante na produção dele). Por isso nessa cena faz uso de símbolos para mostrar a força de Midge e a fraqueza de John. O modo como a cena é organizada através da montagem diz mais que quaisquer palavras. Por exemplo (sem nenhuma intenção de fazer uma análise exaustiva): O sutiã que a mulher desenha mostra seu papel empreendedor. Ele não é usado como um símbolo da inferioridade feminina com relação ao homem, mas sim simboliza o papel da mulher que trabalha. Neste sentido, contrapomos Midge e John: ela ganha seu próprio dinheiro, ele foi aposentado por problemas psicológicos. O modo irreverente como ela trata a sexualidade ao longo da cena mostra que ela é assertiva, enquanto a fragilidade de John torna-o passivo. Ao mesmo tempo, vemos que ela ainda é apaixonada por ele. Esses elementos, trabalhados na composição dos quadros dessa cena e na montagem dela, serão trabalhados ao longo do filme – quando Midge cuida de John no manicômio, quando cola seu rosto no corpo da suposta antepassada de Madeleine, no quadro que pinta, etc.


com Janet Leigh (Psicose)

Nesse mesmo post você fala, também, da maneira que, na visão de homem apaixonado de John, a mulher “misteriosa” se assemelha a um objeto de arte. Quando isso acontece e quais os símbolos responsáveis por tal interpretação?

Hitchcock emoldura a personagem de Kim Novak – você percebeu isso bem ao apontar, abaixo, a moldura que envolve o perfil da atriz, assemelhando-a a uma estátua grega. Isso também é patente na cena da floricultura e, imediatamente depois, na do museu de arte. A composição de imagens nessas duas cenas se assemelha: Na primeira, John abre uma porta no final do beco e dá num lugar incrivelmente florido; na segunda, a fria construção do museu recebe um quadro de temática e cores análogas. Ambos os lugares convidam o mergulho na imagem (o mergulho na ficção, por parte do personagem principal que observa a cena e por parte do espectador, que, por tabela, a vê). Isso também pode ser lido como uma metáfora no mergulho do espectador no objeto produzido pela Sétima Arte: teóricos na época ressaltavam o papel da montagem cinematográfica na identificação do espectador com a história apresentada nas telas. Lembra-se da Rosa Púrpura do Cairo, quando a personagem de Cecília é convidada pelo mocinho do filme a entrar na tela? Woody Allen tornou literal a metáfora da projeção do espectador no filme.

Em várias cenas, as molduras são presentes no cenário (em alguns, com abundância). Na cena em que John vê Madeleine, pela primeira vez, há um momento em que ela se levanta da mesa, com sutileza, ao fundo uma moldura a envolve. Ela sai da mesa, passa por outra moldura, para e quando sai do restaurante sua imagem está em um espelho. Esses enquadramentos poderiam ser interpretados como uma metáfora do “segredo” do filme?

Do meu ponto de vista, essas composições sugerem o mistério que envolve a personagem (já que o mistério que a circunda é criado primeiramente pelo suposto marido dela e em seguida pelo próprio John); o romantismo com que o protagonista a observa; e, em última instância, a existência da mulher apenas enquanto construção ficcional – já que, como uma pintura, ela é apenas fruto da interpretação de alguém. Neste sentido, creio que podemos dizer que isso metaforiza o segredo do filme, sim.

Você diz que “Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez)”. Gostaria que você explicasse o porquê da afirmação de que “o espectador precisa ver o filme uma segunda vez” e falasse mais do envolvimento do telespectador, manipulado, ou não por Hitchcock.

Bem, eu escrevi o texto quando já tinha visto o filme umas dez vezes pelo menos. Uma obra de substância como essa vai se revelando para os espectadores aos poucos. Só prestamos atenção na relação entre o elemento pictórico e a ironia que envolve a personagem, por exemplo, quando já conhecemos o final da história – ou seja, depois que já sabemos que a misteriosa Madeleine não passava de uma simplória vendedora, e que a imagem de mistério dela foi construída para nós, como um pintor bom corrige as imperfeições de uma pessoa ao desenhá-la. Ao vermos o filme pela primeira vez, somos enganados tanto quanto Johnny. Depois de o vermos algumas vezes, conseguimos organizar seus símbolos em direção a uma interpretação. Sobre a manipulação do cinema, lembro os debates fomentados por Béla Balázs e Edgar Morin sobre o modo como a montagem direciona o olhar do espectador. No cinema, somos levados a enxergar com os olhos das personagens: quando uma personagem olha para determinado objeto, nós também o olhamos. Isso acontece pela alternância entre as objetivas indiretas (o olhar da câmera aos objetos) e as subjetivas diretas (o olhar do personagem aos objetos) – por exemplo, a câmera focaliza o personagem e, em seguida, focaliza o que ele vê. Esse movimento contínuo faz com que tenhamos a sensação de estarmos do filme, daí nossa identificação – ou seja, daí a sermos manipulados pelo diretor, já que é ele o responsável por organizar os olhares aos personagens, às coisas e os olhares dos personagens às coisas.
Hitchcock e Ingrid Bergman

domingo, 14 de março de 2010

Um corpo que cai (1958): o amor e a loucura segundo Hitchcock



Ontem revi o extraordinário "Vertigo", um dos grandes Hitchcocks, filme espantoso, que continua a impressionar depois de ser revisitado 10 vezes (eu que o diga...). Surpreende-me a sólida visão de conjunto que Hitchcock demonstra na maioria de seus filmes. Ele sabia o que queria, e raramente deixava de realizá-lo. Por isso, deixou-nos inúmeras obras-primas (desculpem-me o paradoxo), que têm a rara qualidade de interessar desde o espectador ingênuo até o mais exigente - coisa de mestre, que conhece a indústria do cinema tão perfeitamente ao ponto de saber que o valor artístico da película deve ser somado ao seu potencial mercadológico. "Vertigo"- que recebeu no Brasil o título de "Um corpo que cai" - é um dos meus preferidos.
Vemos nele um Hitchcock maduro, plenamente consciente de sua arte, que consegue levar a um alto grau de excelência elementos cinematográficos que ele ajudou a criar. A coerência do resultado final já se faz anunciar pelo título, que a horrível tradução brasileira escamoteou -Vertigo: medo de altura; vertigem; tonteira; sensação de desfalecimento; perda momentânea do auto-controle; desvario; loucura. Toda esta gama de significados é explorada em "Vertigo". A perseguição inicial do policial ao bandido, que leva a personagem de Jimmy a descobrir sua doença e culmina com a morte do policial que tentara salvá-lo e seu afastamento da Polícia é apenas o primeira deles.


À caça ao bandido - elemento recorrente nas histórias de suspense - se sucede o diálogo entre o então ex-policial John Ferguson e Midge Wood. A conversa é aparentemente frívola: o homem, enquanto vê a amiga desenhando roupas íntimas, não esboça mais que uma vaga preocupação com sua doença e quase nenhuma culpa pela morte do colega. Porém, o diálogo acaba por apresentar outros elementos de tensão. A câmera abandona o plano de conjunto em que focalizava Midge para tomá-la num primeiro plano no exato momento em que ela relembra ao amigo que fora sua noiva por "três semanas inteiras". John, testando sua saúde, sobe a escada que Midge lhe oferece e, olhando pela janela de vidro, percebe a altura que separa o apartamento do rés-do-chão, desfalecendo nos braços de Midge. Hitch faz aqui cinema puro - aquele em que o modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo. Sabemos que Midge é o elemento forte da relação, o que ampara, protege e ama o outro. John é sensível, frágil, por isso tende a fugir de compromissos e problemas. No entanto, a tonteira que derrubou-o da escada é prenúncio de vertigens mais avassaladoras.



Hitch apresenta em "Vertigo" um complexo triângulo amoroso que penso ser altamente tributário de Freud. Conheço pouco a teoria, portanto, não farei mais que indicar seus componentes mais flagrantes e o modo como eles se movem. Midge é uma jovem espirituosa e feminista mas, no fundo, tem uma amargura enorme por não ter se casado com John. Descobrimos que o impedimento ao casamento fora levantado por ela mesma, depois daquelas "três semanas inteiras de noivado". Por quê? Talvez devido à inversão de papéis da relação? A moça liberal, que se denomina a mãe do amigo - "Don't worry, John-O, mother is here", diz ela quando ele purga no manicômio a culpa pela morte de Madeleine -, queria na relação algo que ela nunca poderia ser - sim, porque ela era a castradora, não estava em sua personalidade ser o elemento passivo. John, débil e infantil, queria se ver livre da mãe-amiga, mas era demasiadamente frágil para tomar qualquer atitude - ora, é a moça que o deixa. Caberia à frágil e dependente Madeleine o papel de salvadora deste homem passivo? Caberia a ela devolver ao homem castrado a sua masculinidade? Cada vez mais me parece que sim. Todavia, embora John se transforme em homem para amparar Madeleine, ele continua detentor daquela personalidade sensível e romântica que, na tradição ocidental, cabe às mulheres. O romantismo exacerbado transforma-se num amor passional que, na segunda metade do filme, dará lugar aos excessos do homem apaixonado. Depois de morta Madeleine, ele tentará ressucitá-la na pele da sexy Judy, que parecia assemelhar-se à morta apenas na aparência - e, ainda assim, assemelhar-se vagamente. As cenas finais, em que John muda o guarda-roupa e os cabelos da mocinha banal até transformá-la na misteriosa e intangível Madeleine, parecem também simbolizar sua passagem de criança passiva a homem empreendedor - já que, até então, ele se mantinha quase que exclusivamente como o voyeur da situação. Aqui já não resta mais nada do homem pacato do princípio da história.

O desejo louco, a vertigem do amor - e aí cabem bem aquelas outras definições de "vertigo" - fazem com que ele some o que de mais intenso há nos dois sexos no que se refere ao relacionamento amoroso (estou tentando aqui pensar nas diferenças que havia nos anos 50) até simbolicamente matar Judy para novamente dar vida a Madeleine e, por fim, contribuir para que Judy/Madeleine literalmente morram. John, agora plenamente masculino e assertivo, quer legislar sobre a vida e a morte da identidade social de Judy. Mas já o pai de Héracles da tragédia homônima dizia que a moderação era necessária sobretudo àquele que tinha poder. Héracles não deu ouvidos ao pai e enlouqueceu. John é igualmente punido por desdenhar da voz da tradição.
A entrevista de Hitchcock a Truffaut - entrevista cuja versão definitiva a Companhia das Letras publicou por aqui faz alguns anos - dá a ver de modo fascinante a personalidade artística daquele que conduziu com pulso firme o enredo de "Vertigo" e de tantos outros clássicos.
Ao falar sobre o relacionamento amoroso tecido neste filme, um Hitch sem papas na língua alude ao que ele chama de "sexo psicológico": "é (...) a vontade que anima este homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas simplesmente, esse homem quer se deitar com uma falecida, é pura necrofilia.". O diretor ainda aprofunda a explicação, motivando uma das poucas surpresas que Truffaut explicita ao longo da entrevista que faz com o diretor: "Todos os esforços de James Stewart para recriar a mulher são mostrados, cinematograficamente, como se ele procurasse despi-la em vez de vesti-la. E a cena que eu sentia mais profundamente era quanto a moça voltavam depois de ter tingido de louro o cabelo. James Stewart não fica totalmente satisfeito, porque ela não prendeu os cabelos num coque. O que isso significa? Significa que ela está quase nua diante dele mas ainda se nega a tirar a calcinha.".

As linhas deixam perceptível que a sexualidade não era algo tranquilo para Hitchcock. Aliás, a trivia hollywoodiana já apresenta inúmeros exemplos relacionados ao assunto: que Hitch teria se deitado com a esposa apenas uma vez; que ele havia se gabado por ter sido seduzido por Ingrid Bergman e se deitado com ela, etc. O diretor era um feixe de medos e complexos que daria trabalho a algum discípulo de Freud se ele resolvesse tentar se livrar deles. Não sei se ele chegou a frequentar um psicanalista. Felizmente, ele nunca deixou de ser perseguido por esses fantasmas que tomaram forma, de modo mais ou menos bem acabado, em toda a sua obra.
Hitchcock é pródigo ao dar à sociedade moderna uma visão complexa de seu psiquismo. Ele entra nos lares burgueses e mostra os anseios e as taras que subjazem ao exterior aparentemente são e pacífico. O relacionamento homem-mulher que culminava no casamento e na felicidade eterna - receita pregada no grosso dos filmes do período - era muito mais complexo do que parecia. Herança de Freud e tantos outros intelectuais que flagraram e explicaram a desfragmentação dos elementos que sustentavam o modo de vida ocidental - a igreja, o paternalismo, a ciência positivista -, Hitchcock mostrava que o homem podia não mais ser o indivíduo rijo responsável pelo sexo oposto. O diretor inglês é um dos indivíduos que mais bem compreendeu a sensibilidade moderna. Sua obra toda paga um tributo a ela.
"Vertigo" é seu mais arrematado exemplo e James Stewart, seu melhor porta-voz. A simplicidade e delicadeza com que James desempenha seus papéis me surpreende cada vez mais. Ele desempenhou um mesmo tipo durante décadas, porém, fê-los evoluir de acordo com as necessidades do diretor. Ele foi um dos primeiros stars do sexo masculino que chorou em frente das câmeras - numa época machista como os anos 30, bem se pode imaginar como isso não taxava negativamente os artistas. Os personagens que ele deu ao público nos anos 30 e 40 ajudaram a tornar verossímil não apenas John Fergusson mas todo o "Vertigo", que conhecemos em grande parte por seu próprio ponto de vista.
Vejamos as cenas em que ele conhece Madeleine e, a pedido de seu suposto esposo, passa a persegui-la. Vêmo-la primeiramente de costas (num plano de conjunto que toma todo o restaurante) e depois de perfil (num close-up). Ainda que se aproxime, ela continua a ser para John uma figura misteriosa - o que se deve em grande medida à imagem (mentirosa) que seu esposo pintou dela para John: ela estaria enlouquecendo, possuída pelo espírito da bisavó morta por amor. Uma imagem romântica...

O mistério que emana da mulher é, ironicamente, maior do que se supõe a princípio. Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez). É personagem ficcional, saída da imaginação de um homem calculista que, para matar a esposa, precisa de uma cúmplice (Judy/Madeleine) e de um bode espiatório (John). Ela é literatura (ou então, cinema). O modo como o homem apaixonado a vê em grande medida recupera-a como objeto de arte. Ela às vezes se assemelha às estátuas gregas (como no fotograma acima). Às vezes, a um quadro (como na fascinante cena da floricultura, em que o ambiente cinza ao redor de Jimmy só faz intensificar a explosão de cores em que a moça está mergulhada, emoldurando-a).



Depois de enquadrada, John vê Madeleine observar o quadro de sua ascendente. A linha que divide realidade e ficção parece desaparecer.


Hitchcock dá a ver o artífice competente que é, criando em "Vertigo" leitmotivs que perpassam todo o filme. O modo como Madeleine observa sua bisavó é semelhante ao modo como John Ferguson observa Madeleine - e é o ramalhete de rosas que levará John casualmente a encontrar Judy.
Madeleine olha o quadro; John a olha; nós os olhamos. Para esse voyerismo multiplicado há a excelente expressão francesa mise en abyme, (mal) traduzida entre nós por metalinguagem, e que literalmente significa “posto no abismo”, aquele efeito obtido por dois espelhos: quando uma imagem contém uma cópia menor dela, e assim sucessivamente. Ao fim e ao cabo, o público é tão ludibriado quando o protagonista pela cena que se oferece diante de si como espetáculo. Esta imagem que o filme constrói é, aliás, oriunda do mesmo campo semântico do redemoinho que se insinua primeiro nos créditos, repetindo-se no decorrer da obra no intuito de glosar a sensação de entontecimento, de falta de chão, de desvario do protagonista. (Este parágrafo só nasceu hoje, 29 jan. 2014, depois de dois meses de minha revisita ao filme, desta vez na telona do paulistano Espaço Unibanco-Augusta...). 

O tom esverdeado que circunda Madeleine quando ela caminha pelo cemitério repete-se nas luzes artificiais que envolvem Judy - tornada Madeleine -, no quarto barato de hotel. Hitchcock fala sobre esses dois usos do verde na entrevista a Truffaut, mas nada diz sobre a abundância de verdes que envolve a personagem de Kim Novac (o carro de Madeleine, o vestido de noite que ela usa quando John a vê pela primeira vez, o gramado em frente ao museu, a saia de Judy). O elemento verde é reiterado ad nauseam ao longo de "Vertigo", inebriando o ex-policial ao ponto de levar a mente até certo ponto cartesiana que cabe aos indivíduos de sua profissão a acreditar na história suspeita contada pelo amigo. Sem falar no leitmotif musical criado por Bernard Hermann, já que os violinos glosam, no plano sonoro, a paixão crescente de John por Madeleine.
"Vertigo" é uma obra de ficção que, enquanto explicita a filosofia de Hitchcock - alguns filmes são fatias de vida; os meus são fatias de bolo - trás à baila questões pungentes da sociedade contemporânea. Vemos desfilar um belo concerto criado pelos olhos apaixonados de John, mas também conhecemos o poder terrível que pode ter a ficção. Monroe (do O último Magnata, de Scott Fitzgerald), que amadureceu no mundo do cinema e ajudou a delinear as fronteiras do medium, descreve a aparição de Kathleen de modo muito semelhante ao que faz o John Fergusson criado por Hitchcock - e ambos acabam por perder a única mulher que poderia salvá-los, mulher que eles mesmos criaram. Porém, as respostas não são simples, se pensarmos que, com a crise da religião, a arte aparecia como o único elemento capaz de dar sentido à vivência cotidiana.

domingo, 2 de novembro de 2008

O AMOR ESTÁ NO AR!: OS TÍTULOS PASSIONAIS QUE DAMOS AOS FILMES NORTE-AMERICANOS

Quando penso nas versões em português para os títulos dos filmes norte-americanos, me vem de imediato à mente a imagem da nossa Carmen Miranda, de lábios vermelhos e vestida em cores tropicais, beijando freneticamente o americano bobalhão de meia idade do filme “Entre a Loura e a Morena” (1943).
Não foi difícil encontrar duas dúzias de exemplos que provam o fato. Em dez minutos, minha busca comprovou que, se temos uma palavra favorita, ela não é outra senão o substantivo “amor”, que intitula indistintamente, e com a mesma ênfase, comédias descabeladas (as “screwball comedies”, gênero que floresceu nos anos de 1930 e 1940), comédias românticas, comédias musicais e dramas. “Jejum de amor” é o título em português para uma das comédias mais afiadas a que eu já assisti, “His girl Friday” (1940), de Howard Hawks, na qual um casal de jornalistas divorciados brigam durante duas horas para impor suas opiniões, tendo como pano de fundo um caso sensacionalista de assassinato, ao qual o personagem de Cary Grant (o dono do jornal), ajuda a botar mais lenha. Nesse caso, quem procura o filme porque se sentiu atraído pelo título em português é que vai ficar em “jejum”...
E tem mais, “O amor custa caro” intitula o “Intolerable cruelty” (2003) dos irmãos Cohen (diretores de “Onde os fracos não tem vez”, apenas para citar o mais premiado) filme tão ágil quanto “His girl Friday”, com direito até a uma perseguição na qual o bandido asmático se mata com um tiro na boca pensando aplicar em sua garganta o medicamento contra as crises da doença. “Bell, book and candle” (Sino, livro e vela - 1958), comédia romântica com James Stewart e Kim Novac cujo título norte-americano remete às bruxarias da personagem principal, transformou-se entre nós em“Sortilégio do amor”; “Desk set” (1957), outra comédia da década de 50, em que atua o inesquecível casal Katharine Hepburn e Spencer Tracy – os quais têm como coadjuvante o bisavô do site de busca “Google” – ganhou o nome de “Amor eletrônico”; “Dancing lady”, no qual a dama dançarina do título é interpretada por Joan Crawford (!), chama-se aqui “Amor de bailarina”; “The Barkeleys of Broadway” (1949), fascinante película de Ginger Rogers e Fred Astaire, cuja história remete à vida de Ginger (a comediante Sra. Barkeley, para se firmar como atriz “séria”, leva aos palcos um drama que conta a história de Sarah Bernhardt – semelhante ao que fez a Sra. Rogers, que recebeu um Oscar pelo drama “Kitty Foyle” depois de ter feito oito comédias musicais com o Sr.Astaire), é intitulada, no Brasil, “Ciúme, sinal de amor”; “Anchors aweigh”(1946), divertido musical dos anos de 1940 no qual figuram Frank Sinatra e Gene Kelly como dois marinheiros, é chamado por nós “Marujos do Amor”; o recente drama musical “Moulin Rouge” (2001) – entre nós conhecido como “Moulin Rouge: oamor em vermelho”, é outro exemplo; sem falar no maravilhoso filme do mesmo gênero “West side story” (A história do lado oeste - 1961), aqui conhecido por“Amor Sublime Amor”. Como a lista é maior do que eu imaginava, discutirei em seguida os títulos que abusam dos adjetivos ou frases altissonantes.