sábado, 31 de março de 2012

O musical dos musicais: “Cantando na Chuva” (Singin’ in the Rain, 1952)


Parece mentira que a obra prima de Gene Kelly e Stanley Donen completou esta semana 60 anos, tão lépida e faceira ela ainda é; mágica do cinema, que dá miraculosa juventude eterna a alguns de seus produtos. Nos três anos de blog quis muitas vezes falar desse filme ao qual já vi seguramente 60 vezes... Mas como me debruçar a contento em algo que tem pra mim tão grande valor afetivo? E o que dizer de uma obra sobre a qual tudo já se disse? O viés mais seguro para fazê-lo, penso hoje que seja o da memória. “Singin’ in the Rain” marcou-me mais que qualquer outro filme. Por mais tempo, pelo menos. Compilar minhas memórias dele talvez (me) ajude a entender porque eu o amo tanto.
“Singin’ in the Rain” foi no início projetado como mais um sucesso de box office da “unidade” de Arthur Freed na MGM. Moda na época era girar os musicais em torno do cancioneiro de compositores americanos relevantes. Desta vez escolheu-se a obra do próprio Freed e de Nacio Herb Brown, respectivamente letrista e compositor de sucessos dos talkies de Hollywood desde 1929. A música tema soou na revista cinematográfica “The Hollywood Review of 1929”, aurora do cinema falado. O sentimento infantil e festivo de se dançar debaixo de um aguaceiro foi o ponto de partida obrigatório para que Adolph Green e Betty Comden construísse o enredo. Costuram o longa outras canções da dupla Freed/Brown, compostas para filmes como “Babies in arms”, de 39 (Good Morning); “The Broadway Melody”, de 29 (“You were meant for me”, “The Broadway Melody”, “The wedding of the painted doll”); “São Francisco: cidade do pecado” (Would you) – filmes de qualidade muito variada, alguns bastante fracos (como “The Broadway Melody”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 29). É notável que esse material heterogêneo tivesse feito brotar flor tão bela.
Mais que beleza, o que Green e Comden conseguem é sistematizar, com artesania ímpar, a História de um filão cinematográfico de tremendo sucesso das décadas de 30-50 (o cinema musical) e de uma fase delicada do cinema mundial (a introdução do som e a reestruturação do quadro “estrelar” das grandes companhias). E isso de forma leve e bem-humorada, num produto de entretenimento plenamente apetecível à massa que ia ao cinema nos anos 50 – uma porção de pretensiosos do século XXI poderiam se aproveitar dessa lição, tornando a arte legível ao espectador contemporâneo...
“Singin’...” recua até o ano de 1927, até os momentos que antecedem e sucedem a chegada de “The Jazz Singer”, o primeiro filme da indústria a inserir de modo sistemático diálogos falados e música. Protagonizado por Al Jolson, artista de renome da Broadway daqueles tempos, o filme causou comoção, não só no público, desejoso de ouvir as vozes dos artistas, como do meio artístico, com razão temeroso de que artistas de vozes pouco atraentes perdessem espaço. Dentro deste contexto histórico recriado por Comden e Green é inserido Don Lockwood (Gene Kelly), personagem ficcional que remete a galãs como John Barrymore e Douglas Fairbanks, que incorporava nas telas o másculo protetor das fêmeas da Idade Média à Idade Contemporânea. Seu par romântico é a loura linda, instável e de voz pouco fotogênica Lina Lamont (Jean Hagen), alusão a atrizes como a norueguesa Greta Nissen, que perderam espaço na tela branca assim que Hollywood começou a falar.
O filme pinta a trajetória desse par romântico que, como tantos, foi cozinhado pelas revistas de 
fofocas de Hollywood. Ambos supostamente se amam. Na verdade, vivem a trocar farpas: o ator detestando a atriz; ela infantilmente acreditando nas fofocas ventiladas pela imprensa. A mulher de voz esganiçada e humor de prima-dona perde espaço para Kathy Selden (Debbie Reynolds), um dos tantos novos rostos surgidos com o som: jovem, fresca e musical. O galã mantém seu posto de macho alfa dentro e fora das telas, agora não mais como o “Cavaleiro Duelista” da fita muda sustada em plena produção, mas como o “Cavaleiro Dançante” da mais nova produção musical – gênero que ascende com a chegada do som, ironicamente atingindo naqueles anos 50 seu apogeu e seu declínio.
Se não bastasse a fidelidade com que a história dessa Era tumultuosa é contada em “Singin’ in the Rain”, o filme ainda surpreende pela genialidade com que conduz o que lhe é mais elementar: a 
música e a comédia. Para ilustrá-lo, cenas pegas ao acaso bastam: A dançarina e atriz iniciante Kathy Selden (uma crua e talvez por isso mesmo eficaz Debbie Reynolds) é obrigada pelo acaso a dar carona a Don Lockwood: para resistir à investida do galanteador (o trocadilho com o nome do Don Juan não é casual), Kathy relativiza o valor artístico do trabalho dele – “Não passa de pantomima”, diz ela, diferente do teatro, arte de verdade, repleta de diálogos grandiosos. John Barrymore, irmão de carne-e-osso de Don Lockwood, possivelmente ouviu assertivas do tipo, ele que trocara os palcos onde declamara Shakespeare pelo cinema silencioso, muito mais lucrativo. Don no começo faz pouco da jovem que sonhava sucesso nos palcos: “Kathy Selden como Julieta, como Lady Macbeth, como Rei Lear (para esse papel você vai precisar usar uma barba)”. Mas no final, o desfecho cômico-patético-dramático de Don, que tem suas roupas rasgadas pelo carro de Kathy depois de lhe dizer teatralmente “I must tear myself from your side” (“Devo me apartar de você”, “tear” significando igualmente rasgar”), patenteia de modo efetivo o lugar de peça de museu que Hollywood legava aos artistas incapazes de fazerem a passagem do cinema silencioso para o sonoro.
Pérolas são todas as sequências do estúdio onde será filmado o filme-dentro-do-filme “Cavaleiro Duelista”: o plano-sequência de Don passeando pelo estúdio da fictícia “Monumental Pictures” (ironia graciosa com outros estúdios de nome hiperbólico, como a “Universal Pictures”), enquanto no segundo plano desenvolvem-se cenas que em nada se relacionam umas às outras (um ritual indígena; um ajuntamento de torcedores vestindo as cores da bandeira; uma luta em cima de uma locomotiva); as cenas do silent “Cavaleiro Duelista” propriamente ditas, por exemplo aquela em que Don executa trejeitos amorosos para a mulher fingida que era sua estrela, enquanto a boca dele lhe profere uma torrente de insultos; e depois, o mesmo estúdio aparelhado para a rodagem de filmes sonoros, com seus técnicos ainda acostumando-se com a novidade (os microfones mal posicionados que ora gravavam os batimentos cardíacos da atriz, ora deixavam de captar parte importante do que ela dizia).
Essas cenas todas encontram ressonâncias no mundo real. Hoje são notórias as brigas on screen e off screen entre artistas que o público julgava se amarem. Isso sem contar os problemas ocorridos durante a projeção, sobre os quais até revistas brasileiras debruçaram-se – a Cinearte, depois de relatar como um delay do som destruiu a atmosfera dramática de “Coquete” (1929), primeiro filme falado de Mary Pickford, questiona-se se o cinema sonoro sobreviveria. “Singin’ in the Rain” traz uma cena épica alusiva à questão, na qual a mocinha sem querer troca de voz com o vilão, transformando o drama na mais arrematada comédia e o “Cavaleiro Duelista”, num fracasso de bilheteria.
Ao tomar como objeto os bastidores de Hollywood do final de 1920, “Singin’ in the Rain” prefere a leveza ao drama. Escolhe como protagonista um astro que, como vários, fez com segurança a passagem do silencioso ao sonoro. Assim, tem a oportunidade de usar a trilha alegre e adocicada 
que Freed e Brown criaram para tantos filmes em que imperava o Happy End. A minha preferida de todos os tempos, desde me conheço por cinéfila, é “Good Morning”, introduzida por Kathy Selden depois que ela propõe a Don e ao amigo comum Cosmo Brown (Donald O’Connor) transformarem o “Cavaleiro Duelista” no “Cavaleiro Dançante”. Meu lado feminista adora ver a jovenzinha com esse poder na sociedade de 1920, que começava a reconhecer os direitos da mulher; mas também meu lado crítico não deixa de perceber a ironia da situação posta em cena – caberá à nova geração a primazia nos musicais da época (tanto que é a adolescente “Judy Garland” a responsável por entoar “Good Morning” pela primeira vez em película).
Leveza que em momento algum significa fragilidade 
de concepção. O filme tem uma porção de números musicais primorosamente coreografados: Além de “Good Morning” e da legendária “Singin’ in the Rain” destaca-se o balé da “Broadway Melody”, que no filme-dentro-do-filme sinalizaria a passagem da realidade ao sonho do protagonista, mas no filme serve de desculpa para uma das sequências mais sofisticadas da história do cinema musical: com grande corpo de baile, números de balé e sapateado, e uma longilínea Cyd Charisse dividindo com Gene uma sequência em que ela ora se faz de vamp arrasa quarteirão, ora de mocinha (prenúncio do que ela faria um ano mais tarde no número “A Murder Mistery in Jazz”, de “The Band Wagon”). Outro imperdível é “Make ’em Laugh”, que presta uma justa homenagem aos números disparatados do teatro de vaudeville, homenagem ainda mais cabível já que é dançado por Donald O’Connor, ator formado por esse teatro.
“Singin’ in the Rain” foi pouco lembrado pelo Oscar de 1953 (onde recebeu duas indicações e nenhum prêmio), talvez porque um ano antes “Sinfonia de Paris” – que também tinha o dedo de Gene – levara para casa 6 Oscars (incluindo os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Música). No entanto, ele teve a sorte de ter entre seus criadores o obstinado Gene Kelly, que anos depois produziria a triologia de documentários “That’s Entertainment”, hino de amor ao cinema musical que situava “Singin’ in the Rain” entre os grandes, ao lado de “Sinfonia de Paris”. Felizmente acreditaram em Gene, e agora esta e outras maravilhas do cinema musical estão em DVDs recheados de extras, prontas para deliciarem as novas gerações.

quarta-feira, 21 de março de 2012

“A invenção de Hugo Cabret” e a redescoberta da magia do cinema

O final de março geralmente coincide com a retirada das salas de exibição dos oscarizáveis e oscarizados do ano. Por isso, essa minha leitura de “A Invenção de Hugo Cabret” chega um pouco atrasada. Porém, escrevo porque ainda dá tempo de convidar enfaticamente o leitor a ir apreciar essa obra-prima no cinema.
“Hugo” foi o grande injustiçado do Oscar 2012, tendo perdido os principais prêmios (Melhor Filme em Língua Inglesa e de Melhor Diretor) para um filme que, embora gracioso, não lhe chega aos pés. Mas eu quero pensar que Martin Scorsese é um novo Georges Meliés, e, como ocorreu ao seu biografado, daqui a uns anos essa sua criação vai cair nas mãos de um par de críticos sensíveis e finalmente será descoberta. A história do cinema tem dessas coisas cinematográficas...
O problema de Scorsese talvez tenha sido o de Méliès: ambos lançaram mãos dos recursos tecnológicos dos quais dispunham para contarem histórias ao mesmo tempo cativantes e despretensiosas, portanto, não chamaram a atenção da Academia de Artes Cinematográficas – cuja cegueira na maior parte das vezes só lhe permite perceber o caráter “artístico” da produção quando ele é sinalizado por bandeirolas; mas aí já não falamos de obra de arte, mas de obra de presunção.

Vejamos o enredo do filme: Hugo (Asa Butterfield) é um moleque de rua que vaga por uma estação de trem parisiense cujos relógios ele opera na surdina, fazendo-se passar pelo tio, velho beberrão de quem aprendeu o ofício e que some no mundo. Nem o tio, nem o menino são moralmente irrepreensíveis. O primeiro tirou-o da escola depois da morte de seu pai e sem dó o bota para trabalhar. E este, vive dos pequenos furtos que realiza na estação. Mas nenhum deles é personagem plano. Ao tio, que aparece pouco, cabe ensinar o menino a sedutora vida das ruas parisienses. Hugo torna-se ladrão também alimentado pelo sonho de ver funcionando o autômato que herdou do pai, brinquedo que, supõe ele, lhe traria um sinal do homem que a fatalidade lhe tirara tão cedo. Nem o tio é um crápula, nem o menino um pobre coitado, por isso é que este combina tão bem com o velho casmurro dono da loja de brinquedos da estação – ninguém menos do que o até então esquecido cineasta Georges Méliès.
O filme de Scorsese tem dois méritos fundamentais, desde meu ponto de vista: no plano histórico, o de recontar com razoável fidedignidade a história do sucesso, esquecimento e renascimento de Méliès; no plano cinematográfico, o de reproduzir, em seus momentos fundamentais, a estética do cineasta francês. Quem nunca ouviu falar desse homem, a quem o cinema deve muito, aproveita a lição dada com graça por Scorsese. Já eu, que estou mergulhada nesse mundo faz um tempo, quase morri de emoção ao vê-lo em todas as suas cores vibrantes na tela cheia, plenamente apetecível para as plateias do século XXI. Sei, parece exagero, mas vou tentar demonstrar porque não é:

Para isso, outra história, dessa vez a de Georges Méliès (Ben Kingsley). Oriundo de uma família de industriários, Meliés decidiu dedicar-se ao mundo do faz de conta, primeiro como mágico aprendiz do célebre mágico francês Robert-Houdin, depois como fazedor de cinema, invento que então também parecia imbuído de magia. O impacto que o cinema lhe gerou foi tão grande que, depois de assistir às vistas dos irmãos Lumière (1895), o homem se convenceu de que o futuro do invento estava na criação ficcional e não no registro de fatos do cotidiano (coisa que os Lumière faziam). Vendeu o teatro Houdin, que já àquela altura lhe pertencia, e montou um estúdio de vidro (fantasticamente recriado para “Hugo”); e nele recriou as mágicas que faziam sucesso no teatro – aproveitando-se para isso da montagem, elemento primordial da linguagem cinematográfica, que ele inventou. O artifício é igualmente mostrado ao público, de modo pedagógico e ao mesmo tempo com ótimo rendimento narrativo. Do final do século XIX até os primeiros anos do XX, Méliès evoluiu para uma estética que usava as mágicas de palco como matérias primas de filmes fantásticos, recheados de diabos, seres mitológicos, ETs, aproveitando-se copiosamente da montagem para criar uma realidade ágil e em constante mutação, outra característica fundamental da linguagem cinematográfica. Falido em meados dos anos 10, só em meados dos 20 é redescoberto, por estudiosos do cinema e cineastas de vanguarda.

Georges Méliès (1861-1938)

Os filmes de Méliès podem ser considerados bobos demais para os olhos do público de hoje. Para que se compreenda o que eles representaram para a sociedade da virada do século, eu recomendaria primeiro uma visita a “A invenção de Hugo Cabret”, que não apenas conta textualmente essa importância – impondo ao público a voz de estudiosos do cinema, também personagens do filme – mas dá a ver o fato, ao maravilhá-lo com as sequências apresentadas. Fiz um trabalho de pesquisa e saí inquirindo espectadores bem diferentes sobre o que acharam dele, e ouvi deles que o filme era uma delícia/ adorável/ leve/ divertido. Adjetivos semelhantes aos que o público do começo do século passado usava para se referir aos filmes de Méliès.
Scorsese atinge o feito notável de traduzir, para o público contemporâneo, a magia do cinema do cineasta francês, e o faz apropriando-se de tecnologia de ponta. Nunca o 3D foi tão bem utilizado como aqui. Especialmente porque ele não está de enfeite em “Hugo”. Cumpre, sim, função prática – função, porque não dizer, análoga a que tinha a paleta de cores, também naquele momento “tecnologia de ponta”, nos filmes do cineasta francês. Para multiplicar o encantamento, Georges Méliès se dava ao trabalho de mandar pintar fotograma por fotograma de seus filmes, rodados
em preto-e-branco. O resultado são cores berrantes, vivíssimas. Quem os vê hoje pode achá-los demasiado artificiais, mas que efeito não fizeram nas primeiras plateias?! Quem tem curiosidade de conhecer a importância que as cores têm na criação do mundo mágico de Méliès precisa fazer o teste: ver o histórico “A viagem à Lua” (Le voyage dans la lune, 1902) primeiro em preto e branco e depois na versão colorizada, heroicamente resgatada das ruínas e apresentada ao público em Cannes no ano passado (os vídeos estão abaixo). Parecem dois filmes diferentes, o segundo infinitamente mais rico que o primeiro.
“A invenção de Hugo Cabret” é o filme dos últimos tempos que melhor pinta o amor pelo cinema – amor que nele se desdobra em várias facetas: na menina que descobre o cinema pela primeira vez e se deslumbra, no menino que entra escondido nas salas de exibição e conhece todos os artistas e fitas, nos acadêmicos que redescobrem o cineasta esquecido e o devolvem ao público. E isso numa linguagem que, de tão apaixonada por seu objeto, o mimetiza: Pouco a pouco, as cores brilhantes das fitas de Meliés, ora reencenadas, ora apresentadas em seu original, acabam se impregnando na materialidade do filme. Paris torna-se cada vez mais sépia quando posta diante dos coloridos filmes do mago-cineasta. Conduzido por Martin Scorsese, é o cinema que salva o menino, como por muitas vezes já deve ter salvo o diretor – também ele cinéfilo apaixonado.

domingo, 11 de março de 2012

Nunca houve filme de terror tão bom como "Os Inocentes" (1961)

por Chico Lopes

Uma constatação: entre todos os gêneros cinematográficos, talvez sejam os filmes de terror os que oferecem maior quantidade de produções ruins ou de lixo abaixo do desprezível. E, no entanto, esses filmes são produzidos com abundância, as locadoras estão cheias deles (assemelham-se em tudo, até nos títulos, como que indiferenciados pela apelação) e o público (sobretudo o adolescente) continua consumindo-os. Bons enredos, bons atores, boas direções, boa fotografia, nada disso está mais em questão: trata-se de uma espécie de vício, a repetição é cega, compulsiva, e os addicts pouco se importam com isso, mais interessados em conferir sustos e mortes sádicas. De vez em quando, produções como “O sexto sentido” (The sixth sense, 1999) e “Os outros” (The others, 2001) se destacam, e são sempre lembradas como modelos de sugestão e qualidade a seguir, mas as ideias mais felizes são diluídas e recicladas descaradamente em filmes que parecem ter um potencial interessante até certa altura e de repente despencam no total descrédito dos clichês mais abusivos. A publicidade intensa acaba favorecendo os mais... digamos, originais. Vamos vê-los na esperança de uma redenção, de uma direção excepcional, inteligente. Mas a originalidade é apenas uma distinção ligeiramente acima da média geral (que é muito baixa) e, na verdade, originalidade e comércio deslavado se casam muito mal: as concessões que têm que ser feitas a um público imbecilizado fazem sempre com que o comércio vença.

"Os outros" (2001)

Filmes de terror (especialmente americanos) são fenômenos mais para a área da sociologia e da psicologia que da cinefilia, de algum tempo para cá. Eu gosto do gênero, para minha infelicidade, e vejo muita coisa, sempre acreditando que de cada vez possa me surpreender com qualidade debaixo de um título menos conhecido. Qual! Quebro a cara sem parar, e, no entanto, sigo vendo (gosto do senso se atmosfera que se instala, para ser arruinado daí a pouco). Acabo vendo só para constatar variantes em torno do mesmo tema: bandos de jovens adolescentes que vão a um acampamento ou se perdem numa estrada vicinal etc e se deparam com os Jasons da vida ou com cabanas onde demônios guardam seus mais terríveis segredos em livros cabalísticos que, claro, alguém vai decifrar para os personagens e para o público e contém ameaças horrendas. Os jovens vão morrendo um após outro (e é impossível lamentar as mortes, pela total cretinice dos tipos) e sempre resta um último para esticar a coisa e reservar um susto que já não assusta mais ninguém.
Filmes desse tipo parecem exorcizar medos adolescentes obsessivos, e por isso talvez sejam tão obsessivamente ruins e repetitivos – a neurose obsessiva que satisfazem precisa do mecanismo de repetição, sua mecânica é cega. Rendem-se à superstição e ao moralismo mais rígido e autoritário totalmente, como se um adolescente fosse uma criatura destinada ao desastre a menos que os pais, os mais velhos, professores, vizinhos respeitáveis, os mestres e feiticeiros com suas advertências extremamente conservadoras – “não se envolva com isso que o perigo é terrível” – o oriente. Naturalmente, o conselho só faz aguçar a curiosidade pela “coisa errada” e está pronto outro enredo de filme vagabundo. Esses filmes perpetuam tabus – desafiá-los acaba sendo ruim demais para os xeretas e desobedientes. Parecem servir à perfeição para, através do mistério, exercer irracionalidade e opressão sem questionamentos. O passado, a tradição, as regras que não devem ser ultrapassadas, têm neles um papel decisivo. Tudo que vendem é uma espécie de submissão assustada ao obscurantismo salvaguardado pelo medo – “viu só no que deu você ter me desobedecido?”, clama o adulto careta.
O modelo americano pegou no mundo todo – de repente, depara-se com filmes assim procedendo da Noruega, da Rússia e de outros cantos menos previsíveis, e os eternos adolescentes cretinos estão lá, a postos para uma excursão desastrada pelo terreno do Mal onde não deveriam penetrar. A onda de terror japonês fez entrar na coisa crianças esquisitas, mortos e fantasmas menos previsíveis, em produções que até teriam sua poesia se aproveitassem aquelas ideias em outras direções que não a do mais rasteiro e ofensivo clichê. Mas portas se entreabrindo, rangentes, noites de tempestade quando o clímax do drama se instala, gente correndo de mascarados com facas ou outras armas nas mãos, misteriosos farfalhares de mato em torno de acampamentos e olhos de monstros não vistos seguindo os incautos, isso nunca se acaba...

ADAPTANDO HENRY JAMES

Acho, na verdade, que nunca vi melhor filme de terror que o clássico “Os inocentes” (The Innocents, 1961), de Jack Clayton, tanto que ele é modelo indireto para “Os outros” e é sempre citado como o clássico que todo diretor de terror respeitável precisa ver. Ainda que depois vá fazer, seguindo os ditames de produtores ávidos por dinheiro e modas entre adolescentes, mais uma porcaria a ser despejada nas locadoras. É ótimo citar fontes prestigiosas, mas ninguém quer perder dinheiro, ora...
Eis a situação do filme, produção inglesa de 1961: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo – resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer. O casalzinho de crianças órfãs, lindíssimo, verdadeiramente angelical (Martin Stephens é Miles e Pamela Franklin é Flora), pode estar sendo vítima de possessão por um casal já morto, o estranho criado Peter Quint e a preceptora anterior, Miss Jessel.
Na novela original (muito conhecida no Brasil), “A volta do parafuso”, Henry James não deu nome à sua personagem. No filme ela tem – é Miss Giddens. E é interpretada por Deborah Kerr em estado de graça – não vi na carreira dela um papel em que seu tipo se ajustasse tão perfeitamente e em que ela fosse uma atriz tão visceral e convincente. O tio é vivido, só no início, por Michael Redgrave (fala-se que era para ser Cary Grant, mas ele achou o papel pequeno demais). Aparece apenas para jogar charme sobre a suscetível Miss Giddens, visivelmente uma solteirona reprimida para quem um homem daqueles, chique e mundano, seria um partido extraordinariamente desejável. Na verdade, ela só aceita a missão com sua estranha exigência porque sucumbiu ao charme do solteirão hedonista e espera tornar-se uma heroína aos olhos dele, cuidando das crianças e não o importunando. A primeira coisa que ouvimos dele é “a senhorita tem imaginação?”, ao que ela responde excitadamente que sim.
Tem mesmo, para sua desgraça. E, aliás, há, em torno da novela de James (de que fiz uma das traduções no Brasil, pela Editora Landmark, SP, em 2004), toda uma mística e uma incansável polêmica, porque James escrevia com tanta sutileza, em tantas camadas psicológicas dignas de desconfiança, que muita gente simplesmente acha que não havia fantasmas em Bly, que tudo era imaginação da preceptora. É preferível que o ângulo psicanalítico não seja enfatizado demais, no entanto, porque essa mistura de literatura e análise freudiana restringe muito o alcance da história. Embora a preceptora, uma figura vitoriana de mulher casta, reprimida, dotada de imaginação romântica como uma heroína de Charlotte Bronte, que “introjetou” todos os valores da época através de um pai sem dúvida repressor, seja um prato cheio para os Juquinhas que veem o dedo da sexualidade em tudo. E James, que foi um escritor sobretudo alusivo, semeie sugestões perversas (talvez involuntárias, reflexos de sua própria repressão) por toda a narrativa. Mas ele confessou que só quis fazer uma história de fantasmas, não mais.
Bem, o prodígio do filme é que ele adapta James melhor que qualquer outro filme já realizado (pelo menos dos que vi, embora confesse não ter visto “Tarde demais” (The Heiress, 1949), adaptado de “Washington Square”, dirigido por Wyler e com desempenho muito elogiado de Olivia de Havilland). É impressionante como, para um espectador que tenha passado primeiro pela leitura da novela, tudo estará lá: a atmosfera, o cenário escolhido (o lago é uma perfeição), a Bly imaginada por James, os fantasmas (Miss Jessel e Peter Quint são pavorosos, até porque mais sugeridos do que vistos claramente), a casa, seus cômodos imensos, escadarias e ornamentos vitorianos, a impecável Meg Jenkins como Mrs. Grose, uma criada analfabeta e dona de grande calor humano. A fotografia de Freddie Francis é um primor. Francis foi quem fez a fotografia de “O homem-elefante”, de David Lynch, por exemplo. É um artista consumado do preto e branco e, tivesse o filme sido feito a cores, teria perdido violentamente em nuances preciosas.
“Os inocentes” parece ser dessas poucas operações miraculosas que de vez em quando o Cinema faz com a Literatura, propiciando um par de dançarinos que nunca tropeçam um no outro, ajustam-se muito bem e saem valsando divinamente. Henry James, se tivesse vivido tanto para ver o cinema dos anos 60, não teria um só reparo a fazer. Nisso talvez haja dedo de um grande escritor, Truman Capote, que, junto com John Mortimer, usando diálogos de uma versão teatral do texto escrita por William Archibald, adicionou doses de sua conhecida malícia ao trabalho (e, em certos pontos, creio eu, exagerou um pouco). Mas o respeito à obra literária é mantido escrupulosamente e, sem fugir à fidelidade, o filme toma pequenas liberdades criativas (como a lágrima de Miss Jessel sobre uma escrivaninha) que só acrescentam. São liberdades a partir de possibilidades bastante verossímeis que estão na narrativa original.

O SUSTO COMO ARTE


Não pude ver o filme quando passou pelos cinemas em seu tempo porque era menino ainda, não tinha 14 anos (que era a censura da época), mas pessoas que o viram, na minha cidade natal, comentaram comigo, dizendo que uma aparição de Peter Quint lhes deu um susto tão violento que passaram uma semana sem dormir direito. Um amigo desenvolveu fobia a janelas, porque “Os inocentes”, naturalmente, não foge à gramática do gênero: tem muitas janelas com cortinas esvoaçando ao vento, e é numa janela que Quint enfia sua cara horrenda, sugerindo coisas que a gente só pode imaginar para a preceptora (ele jamais fala coisa alguma; é muito mais uma influência pairando na mansão de Bly do que um fantasma; e de Miss Jessel, sua companheira, só de vez em quando ouvimos a voz tristíssima e o pranto).
A razão pela qual um filme desses, tão pouco explícito em seu terror, parece mais assustador que qualquer outro, é digna de reflexão. Acredito que é porque o filme tomou o susto como uma forma de arte, como uma forma superior de compreensão da alma humana e suas desolações. Há nele uma espécie de solidão pungente, um abismo de classes (bem, se trata da esnobe Inglaterra) e uma dose de sofrimento moral e afetivo (tanto nos fantasmas quanto nas crianças) que acaba por nos impressionar, em revisões. Evidente que Quint e Miss Jessel tinham uma relação escabrosa, sado-masoquista, da qual ficamos sabendo pelas alusões cautelosas e envergonhadas da criada Mrs. Grose. O casal de órfãos, com sua beleza e vulnerabilidade, é de fazer pena, pela solidão, pelo egoísmo do tio, e a gente os imagina tão sozinhos em suas brincadeiras que não tinham por que recusar a influência dos mortos que haviam conhecido em vida (na verdade, é como se Quint e Miss Jessel simplesmente houvessem continuado a brincar com eles, na condição de espectros). O momento em que o garoto Miles declama um poema (que é abertamente um convite a que o espectro venha vê-lo) é de uma enorme beleza. Flora dançando no quiosque junto ao lago, invocando a presença de Miss Jessel, que surge do outro lado, pouco vista, mas terrível em seu luto e sua desolação, é outra cena de uma beleza extraordinária. Lição: filme de terror pode ser grande arte (o que hoje em dia parece impraticável).
“Os inocentes” também tem outra lição: é um filme de ruídos conscientemente muito elaborados, começando pelo início quando, em tela totalmente negra, ouve-se pássaros cantando, e vão surgindo as mãos crispadas da preceptora. E, numa voz infantil de menina, ouvimos uma musiquinha doce que, no entanto, está recheada de desolação e sexualidade de tal modo que entendemos que ela sintetiza a relação de Quint e Miss Jessel. Foi composta por Georges Auric, autor da bela trilha sonora do filme, e tem letra de Paul Dehn (aí está, pra quem quiser conhecer o filme):

We lay my love and I beneath the weeping willow.
But now alone I lie and weep beside the tree.

Singing "Oh willow waly" by the tree that weeps with me.
Singing "Oh willow waly" till my lover return to me.

We lay my love and I beneath the weeping willow.
A broken heart have I. Oh willow I die, oh willow I die
.

Afora esta cançoneta doce e sinistra, insistente, retomada em vários momentos dramáticos e tocada numa caixinha de música, os sons (de pombos destroncados, gritos, sussurros, ventania, ruídos ainda mais furtivos e imprecisos) em torno de Bly fazem com que o filme ganhe uma eloquência envolvente, que pode matar de susto algum incauto que se deixe levar profundamente por ele (isso sim é terror: alusões, matérias-primas obscuras para a imaginação, a paranoia e o desespero).
Outros achados: o quarto de brinquedos do filme parece uma ideia reaproveitada por Ridley Scott muitos anos depois em “Blade Runner” (1992) e há algo do posterior “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986) no inseto que sai da boca de um querubim no jardim, assustando a preceptora. Também as tomadas de voos de pombos levam diretamente a lembranças de “Blade Runner”. A influência de “Os inocentes” se espalhou por outros gêneros. É de fato terror, e terror da mais pura espécie – elegante e peçonhento. Quanto a essa influência, no entanto, lembrar que ela teve frutos um pouco bastardos, como o filme “Os que chegam com a noite”, de Michael Winner, realizado em 1972. Winner, cineasta muito inferior ao diretor Jack Clayton, especula sobre a relação entre Quint e Miss Jessel falando do que teria acontecido antes de suas mortes, tendo Marlon Brando e Stephanie Beecham no papel do casal. O filme é de uma fase em que a carreira de Brando estava em total decadência e não faz falta nenhuma.
O fundamental, mais que ver uma vez, é ter “Os inocentes” para vê-lo e revê-lo muitas vezes, por cinefilia. O DVD está no mercado pela distribuidora Oregon, sem extras, mas com uma cópia muito bonita, com todo o esplendor do preto e branco de Freddie Francis.