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segunda-feira, 2 de maio de 2011

“Cópia Fiel” (2010): umas reflexões sobre realidade, ficção, original e cópia


Um longo plano médio de um palco vazio. Na mesa de conferência, um livro coopera na contextualização da cena, esboçando em traços ligeiros o caráter do erudito que ali palestraria. Seguem-se cenas que em nada devem aos registros documentais desse gênero discursivo: as desculpas do cicerone pelo atraso do palestrante, a chegada do autor e sua apresentação – tudo tomado por planos longos e impessoais. Os aborrecidos minutos iniciais de “Cópia Fiel” (“Copie Conforme”, de Abbas Kiarostami, com Juliette Binoche e William Shimell) certamente não convidarão a ver o filme mais que a exígua plateia que aguarda que o palestrante James apresente sua obra. Por isso mesmo, insisto com veemência para que o público persista - caso contrário, perderá a coisa mais interessante que chegou aos cinemas neste ano.
O tema da palestra é também o da película, denominada segundo o título do livro. A reflexão sobre a relação entre cópia e original preside o debate pelo espaço de duas horas de projeção, originando um trabalho fronteiriço: o roteiro tem diálogos copiosos que em nada devem a uma obra literária; a fotografia rebuscada e elegante nada deve ao cinema; sem contar que o filme toca o campo teatral pela adoção do “teatro dentro do teatro” – característica que ocupa a cena dramática ocidental faz 5 séculos (com Shakespeare em “Hamlet” e “As you like it” e com Pirandello em “Seis personagens à procura de um autor”, por exemplo).
“Cópia Fiel” implode com os limites entre as artes para colocar em destaque a própria natureza da fruição artística. O que determina nosso olhar à obra de arte? Walter Benjamin nota que cada original é dotado de uma aura atribuída pela tradição, que torna o objeto único. Nesse sentido, as cópias das pinturas e esculturas, mesmo fieis, estariam destituídas desse caráter de unicidade. Por isso, a Mona Lisa original de Leonardo Da Vinci vale muitos milhões mais que qualquer reprodução dela. A original tem um valor simbólico do qual as cópias estão destituídas - por isso, é protegida por uma inexpugnável redoma e visitada diariamente por admiradores embasbacados. Tal ideia é, no filme, debatida pelo casal de protagonistas in locus – na histórica Florença, museu ao ar livre.
Ao sair da Universidade (onde era discutido o livro) e da loja de antiguidades administrada pela mulher (sem nome) interpretada por Juliette, o filme ganha densidade, pois incorpora a natureza como elemento fundamental da equação. A questão da originalidade ganha nova dimensão. Ela não está mais no objeto artístico, mas sim naquilo que é tomado como modelo para a criação da arte – a natureza, as pessoas. É possível recuperar o rastro histórico dessa reflexão. A relação entre arte e realidade já foi deveras discutida, tanto que deu a Oscar Wilde a possibilidade de lançar, na “Decadência da mentira” (1889), um de seus paradoxos: na verdade, é a natureza que imita a arte, já que o modo como enxergamos a natureza é condicionado pelas artes que nos governam.
O filme busca um meio termo entre essas conclusões tocando numa questão moderna: não há uma realidade intrínseca, o que há é o nosso olhar para ela – e o que enxergamos é pautado pela sociedade em que vivemos, pelos valores que aprendemos etc. E neste contexto, somos o personagem que inventamos ser. A arte, na medida em que nos permite experimentar novos “eus”, torna-se o espaço privilegiado para que os indivíduos se deem conta de toda a sua potencialidade. Joel Serrão, estudioso de Fernando Pessoa, tece do seguinte modo o que chama de “fenomenologia da máscara”:

A fenomenologia da máscara permite-nos entrever algo acerca desse desdobramento dum ser que quer parecer aquilo que não é e que acaba por descobrir-se, ao dissimular-se, mediante a sua dissimulação.

De acordo com Fernando Pessoa, é na distância de nós que descobrimos quem somos. O tema tem espaço na literatura há tempos. Rosalinda, da peça de Shakespeare “As you like it”, segue esse percurso da ficcionalização até a descoberta de si mesma:
A necessidade prática de sobrevivência a faz se travestir de homem para cruzar uma perigosa floresta. A fantasia acaba tornando-se um disfarce perante si mesma quando a moça vê na floresta o nobre Orlando, que a conhecera durante um torneio e por ela se apaixonara. Ela (agora transformada no jovem Ganimedes) pede que Orlando lhe fale como se ela fosse Rosalinda. Isso o leva a expressar sua paixão sem constrangimento, enquanto que a jovem, transformada no confessor daquele que a amava, consegue o distanciamento que lhe permite analisar a questão como se fosse uma terceira pessoa. No entanto, pessoa e personagem se misturam: o momento crucial em que Rosalinda se descobre apaixonada pelo jovem é quando, ainda fingindo-se de homem, desmaia após receber do irmão de Orlando, Oliveiro, um lenço com o sangue do moço.
Se Abbas Kiarostami não inovou no tema, inovou no modo de tratá-lo, já que leva suas personagens a renegociarem constantemente seu lugar na ação, o que multiplica a força do travestimento.
As personagens de “Cópia Fiel” experimentam de forma literal a teoria que postula a identificação dos leitores com as personagens criadas pela arte: ao invés de experimentarem outras vidas da distância, a mulher e James lançam-se no jogo de criação de personagens, abandonando os papéis que usualmente interpretavam na sociedade. A Toscana torna-se palco de um processo de descoberta de si e de desdobramento do eu. A ideia de que o mundo é um palco e nós, meros atores (presente em “As you like it”) é em “Cópia Fiel” elevada à enésima potência, já que o travestimento parte dos dois lados e pouco conhecemos as personagens até elas começarem a se reinventar.
Para compor a questão cinematograficamente, o diretor lança mão de jogos de espelho que multiplicam a “realidade”, detalhando suas gradações. No escuro antiquário, onde predominam originais e cópias de obras de arte, vemos James-William Shimell conversar com o reflexo de Ela-Juliette Binoche. Na clara praça da cidadezinha da Toscana para onde viajam as personagens, apenas vemos a escultura dos amantes refletida no espelho que está no meio do casal, em segundo plano – a “originalidade” da mulher e de James é aqui ressaltada, mesmo que ambos estejam dando corpo às personagens que criaram (porém, onde exatamente acaba a realidade e começa a ficção?).
O percorrer das ruas da cidadezinha é também o palmilhar da tradição cinematográfica. “Viagem à Itália” (1951) está muito presente em “Cópia Fiel”. A tomada inicial da película de Rossellini, do carro numa estrada cortada por ciprestes, com a alternância das tomadas da estrada e das personagens que estão no carro; o debate sobre o cotidiano dos habitantes da região, que no começo serve meramente para preencher o silêncio, mas depois o meio e os indivíduos acabam introjetados nas personagens, modificando-as; as canções típicas italianas que enchem o espaço: Kiarostami retrabalha esses elementos de modo pessoal.
Para o diretor iraniano, assim como para Rossellini, o belo cenário não serve apenas para ostentar histórias de amor pueris: nele a amargurada mãe solteira desdobra-se na esposa de James: ora cética, ora melodramática, ora romântica, ora sensual – toda uma vida (ou então muitas vidas) condensada no espaço de uma tarde. Tanto um diretor quanto o outro abrem o campo visual e deixam falar o mundo complexo tomado pela câmera. A diferença está no casal que ambos colocam no centro desse mundo. Quando o casal de Kiarostami discute a relação turbulenta que inventou para si, está discutindo o papel de cada um de nós na sociedade: os papéis sociais que interpretamos são em grande medida definidos pela nossa herança cultural – é por isso que a língua, importante fator de identidade, desempenha papel fundamental na película, construindo simbolicamente a aproximação e o distanciamento entre a(s) mulher(es) e James.
Juliette Binoche exerce papel preponderante para que essa história complexa (e até mesmo academicizante) funcione tão bem no cinema.
Não é novidade dizer que a atriz atua e fotografa muito bem. Aqui, no entanto, ela dá a performance de sua carreira (Bravo! Juliette). Constrói nos mínimos detalhes as nuances de suas personagens, circulando com fluidez pelo francês, italiano e inglês – idiomas que mostra dominar com perfeição. Juliette está sublime como suponho, por exemplo, nenhuma atriz americana jamais conseguiria estar neste papel – o lugar de destaque ocupado pelos Estados Unidos no mundo determina o modo como seus habitantes enxergam a si e aos outros: é muito difícil encontrar num norte-americano essa percepção sensível do estranho ao ponto de conseguir colocar-se tão inteiramente em sua pele (questão, aliás, que é o cerne do filme). A atriz faz com que nos identifiquemos com cada desdobramento que cria de si, o que só faz sublinhar o caráter de representação não só da arte como também da vida.
Porém, se no campo da arte as possibilidades são infinitas, na vida temos de lidar com os liames que nos foram socialmente impostos. A mulher e James precisam pôr um ponto final em sua encenação no momento em que esses liames são ameaçados. Porém, isso faz o filme se salvar – afinal, cabe à arte esse papel de nos fazer voar.

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Só agora me dei conta de que a personagem de Juliette não é nomeada. A dificuldade de me referir a ela ao longo do texto deixou ainda mais patente para mim a complexidade da questão tratada no filme.
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Queria deixar aqui meus sinceros agradecimentos ao Antonio Nahud Júnior pela referência que fez a este blog. Fiquei muito comovida com suas palavras!