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domingo, 17 de agosto de 2014

A diva vai à ópera: autorreferência em “A Dama Misteriosa” (1928), com Greta Garbo

Curioso esse The Mysterious Lady, segundo filme de Garbo dirigido por Fred Niblo (o primeiro, The Temptress, de 1926, é uma obra-prima). A história, numa primeira vista d’olhos parece não passar de “veículo” à exibição da atriz, mercadoria valiosa na época – os stars valiam, então, mais que as histórias; estas importando, sobretudo, enquanto meios de veiculação das imagens deles ao redor do globo. O plot: Karl (Conrad Nagel), jovem militar austríaco em ascensão, apaixona-se por uma bela jovem apenas para descobri-la uma espiã russa. 
A descoberta, tardia (ela enreda o rapaz para apoderar-se dos documentos secretos que estavam em posse dele), fá-lo ser degradado e preso, e patrioticamente desejar vingança. É, portanto, uma história de ranço belicoso, a porejar repúdio pelo incompreendido elemento estrangeiro, como tantas já rodadas (e que ainda o seriam) na América vinda da primeira Grande Guerra. 
Não é neste enredo mais epidérmico que encontraremos alento, mas sim na imagem etérea que ele constrói de Garbo, imagem para a qual concorrem, além da fotogenia da atriz (aliada a uma inteligência de expressão oriunda de um talento inato – a jovenzinha de vinte e dois anos exibe, aqui, a eternidade dos deuses, coisa que espantosamente fizera desde sua primeira produção, The Gosta Berling Saga, rodada quando ela tinha dezessete); a excelência dos novos processos de fotografia; e, finalmente, o subtexto, que dá carnadura à trama. 
Em Greta Garbo: a cinematic legacy (nunca é demais recomendá-lo aos admiradores da atriz, de fotografia e da Hollywood dos anos 20 e 30), Mark Vieira informa-nos que a obra beneficiou-se de uma então recente transição técnica da fotografia: a adoção do filme “panchromatic” (em substituição ao “ortho”) e das luzes “Mole”, que suavizavam e iluminavam as imagens. Sublinha-se, assim, o etéreo da persona criada por Garbo. 
Mas, The Mysterious Lady não seria um veículo tão apropriado à atriz não tratasse ele, também tematicamente, de retirá-la do rés do chão onde transitam os reles mortais, elevando-a a um intangível céu estrelado. 
Garbo (tímida e antissocial, segundo aqueles que a conheceram nos seus anos de MGM) nunca foi, em cena, a típica girl norte-americana. Nunca trabalhou em loja de departamento, em casas de família. Nunca privou com garotas de sua idade. Seu rosto parecia talhado às grandes tragédias: às vicissitudes amorosas, à solidão, à fome, ao silêncio. Daí sua Dama das Camélias (1936), suas Annas Kareninas (além da versão de 1935, ela rodou uma silenciosa: Love, de 27), sua Anna Christie (1930). E Queen Christina (1933), Romance (1930) – a rainha e a prima-dona, rainha em microcosmo. Sua única “ingênua” stricto sensu foi, até onde me lembro, a Marianne de The Divine Lady (1928), ironicamente seu único filme perdido, e mesmo nele, a mística que não se encontra no conteúdo revela-se no título. 
Em A Dama Misteriosa, a prima-dona se junta à movie queen. Atrelam-se implicitamente os caracteres da diva de ópera e da diva do cinema. Há autorreferência a rodo nessa obra, além de um humor ferino subjazendo à básica historinha de amor entre a espiã (arrependida) e o soldado. Garbo, com aquela face superlativa que a natureza e a Max Factor lhe deram, desenha a personagem com sutileza desusada – ressaltada pelo poder do filme pancromático –, revelando, na mesma medida, a passionalidade preponderante do papel, e a graça metalinguística que jaz no subtexto da obra. 
Ela é primeiramente tomada num camarote de ópera. Ela observa a prima-dona; o galã a vê. Nós a vemos pela reflexão dos olhos dele: aquele ser sublime, imponente, intangível. Isso o perde – e a nós, míseros iludidos, incapazes de perceber a encenação que se superpõe à essência daquela mulher. Mas disso, da encenação, nós (ele e o espectador) apenas nos daremos conta mais tarde. A graça dessa sequência é que a personagem está a representar tomando o palco como espelho. A prima-dona que se dilacera em cena é Tosca, da ópera homônima (de 1900, de Puccini, libreto de Illica e Giacosa) igualmente autorreferencial.
Parênteses: embirrei com o gênero operístico durante muito tempo (burrice minha, nem preciso dizer) pelo over dos enredos, como se tudo precisasse obrigatoriamente seguir a cartilha realista para que valesse alguma coisa. Mas acontece também que Puccini era, como seus libretistas, contemporâneo da busca do teatro pelo realismo cênico. Vem daí, possivelmente, seu desejo, nesta ópera, de colar a personagem à ação, narrando a história da prima-dona - personagem de natural grandiloquência - que se vê obrigada a se entregar a um rico e influente pulha para ter em troca a liberdade do amado, pego em atos políticos contestáveis. 
Tania (Greta Garbo) observa o encontro entre Tosca e o barão Scarpia, chefe de polícia romano. No palco, a diva, contrita, canta possivelmente a celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore (Vivi de arte, vivi de amor), ária se tornará leitmotiv do filme – escolha sui generis, uma vez que, sublinhemos, estamos falando de um filme rodado ainda durante a voga do cinema silencioso. Há aí uma flagrante tomada de posição da MGM em favor do filme silencioso, em detrimento do falado – The Jazz Singer, da Warner, lançado havia poucos meses, virava a indústria do cinema de ponta cabeça. 
A música, elemento-chave da ópera, se tornará, no filme, imagem. Vissi d’arte reaparece primeiro na casa de Tania, tocada pelas mãos do jovem militar já semienredado pela espiã. Ela a canta: “Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a ninguém/(...) Sempre com fé/ Adornei com flores os altares/ Dei joias ao manto de Nossa Senhora”, etc. etc. Impossível que o público da época, tão contemporâneo a esse sucesso de Puccini, não percebesse a referência, ainda que implícita, silenciosa. Possivelmente, mesmo as orquestras das salas de exibição reproduziam musicalmente o tema, nos momentos cabíveis. A versão de The Mysterious Lady recentemente lançada nos EUA (num box imperdível, com Flesh and the Devil e The Temptress) infelizmente não o percebeu – sua trilha original não remete em nenhum momento à ária, ou à Tosca de modo geral. 
O uso que o filme faz da canção é, claro, sardônico. Tania vivia de fazer mal aos outros. Mas a mise-en-scène criada pela mulher ardilosa prepondera. A câmera alia-se a ela, e então veremos um prodígio de fotografia – o cinema silencioso atingia as culminâncias da técnica ironicamente em seus estertores – narrar, paulatinamente, a evolução do caso amoroso: jogos de luzes e sombras sobre o casal, na mansão de Tania, enquanto ele está ao piano e ela canta; delicadeza de fábula à sequência de ambos no campo: as flores, o riacho, a cascata, as árvores, suavemente apreendidos, contribuem na consecução do quadro pitoresco. O que o filme busca é bem isso: o pitoresco da paisagem e as cambiâncias sedutoras do cinza para construir-se explicitamente como ficção. 
Uma vez na Rússia, os dois personagens continuarão a fingir – desta vez, estando Karl já cônscio do verdadeiro papel de Tania. Quando ele penetra no covil dos agentes russos e se vê novamente diante da mulher responsável por sua degradação (a cena do rebaixamento do militar é igualmente notável), decide denunciar-se em público. Ela intervém. No intertítulo, lê-se: “Nós temos um público perigoso, músico./ Devemos desempenhar bem.” 
O reencontro do casal faz emergirem umas necessárias convenções do cinema dos anos 20. Tania percebe que ama o militar, que sempre o amou. Após um último – inesquecível – número de Vissi d’arte, reverberado pela diva muda, o casal roubará, com quiproquós dignos da Tosca (com direito mesmo a um assassinato, cometido pelas mãos da moça), certos documentos que redimirão Karl. E, ironia final com a malograda prima-dona de Puccini: na película, os pombinhos ameaçados viverão felizes para sempre...

domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

domingo, 30 de setembro de 2012

“Ninotchka” (1939). Ou: como fazer uma bolchevique render-se à Cidade-Luz.

O aniversário de 107 anos do nascimento de Greta Garbo, comemorado em 18 de setembro, pedia uma celebração à altura. Urgia rever algo da eterna “Divina”, da dama solitária, etérea, inatingível. “Ninotchka”, só poderia ser “Ninotchka”! Que filme mais condizente com um festejo de aniversário, mais high-spirited, mais esvoaçante do que o conto da bolchevique convertida às plumas e paetês do capitalismo pelas mãos do francês bon vivant Leon? Garbo está tão brilhante nesta comédia de Lengyel, Reisch, Brackett, Wilder e Lubitsch, encontra-se tanto nela, que pouco nos damos conta de que este é o filme no qual ela menos foi Garbo...
em "Mata Hari"
O que não se deu por acaso. O fim da década de 1930 via a saturação dos tipos criados por Hollywood a partir de meados de 1910. Pelo espaço de 10 anos a atriz experimentara sucesso inaudito pelas variantes de vamp que levou à cena: a Mata Hari (do filme homônimo de 32), a Felicitas (de “Flesh and the Devil”, 1927), a tentadora Elena (de The Temptress, 1926), a misteriosa Tânia Fedorova (de “The Mysterios Lady”, 1928). Mulheres perigosas, porque distantes léguas da criatura passiva tida naquele tempo como modelo de esposa ideal. Mulheres que misturavam androginia, liberalidade e romantismo num grau demasiado temerário para a sociedade machista onde viviam; daí a pagarem por suas escolhas desviantes com a morte ou a solidão. 
Os desenlaces dos filmes de Garbo apresentam quase que unicamente o desfile de entes infelizes. Pobre bailarina Crusinskaya, que em tão breve período descobre o amor e a perda (“Grande Hotel”, 1932). E Camille, que sucumbe após ser obrigada a deixar seu querido Armand (“A Dama das Camélias”, 1936)? E a Rainha Cristina (do filme de 1933), que abdica da coroa para imediatamente depois descobrir que o amado morrera em combate? E Elena, pobre ébria a vagar pelos botequins da vida, sem perceber que o homem que lhe dá esmola é seu grande amor, e a confundir o mendigo com Jesus Cristo!? A máxima hollywoodiana do happy ending sistematicamente poupou Greta Garbo. 

Por isso, “Ninotchka” marca uma ruptura na carreira da atriz. Por ser a primeira comédia de uma filmografia que remontava a 1924 e porque marca a redefinição da persona que a tornara notória e que deixara de apetecer o público. Sorte de Garbo – e nossa – foi que tal redefinição tenha se dado por meio de veículo tão primoroso. “Ninotchka” é uma obra-prima de comédia, brilhantemente escrita, desempenhada e dirigida. 
Quem conduz a batuta aqui é Ernst Lubitsch, alemão que nasceu artisticamente junto com o longa metragem, em meados dos anos de 1910. Foi um dos grandes artífices da sétima arte; homem de timing perfeito para o que quer que fosse: a comédia sofisticada silenciosa (“Lady Windermere’s Fan”, 1925); o musical (“Alvorada do Amor”, 1929, apresentação do eterno par romântico Jeanette MacDonald/Maurice Chevalier); a screwball comedy (“To be or not to be”, de 1942 e “A loja da esquina”, de 1940 são duas obras-primas do gênero)... 
Lubitsch, Garbo e Melvyn Douglas
No que concerne a “Ninotchka”, Lubitsch soma o trabalho de direção ao de escrita do roteiro. Segundo Mark Vieira, soluções fundamentais à história foram criadas pela pena do diretor. Soluções cinematográficas, que claramente faziam emergir o Lubitsch touch, como as cenas em que figura o chapeuzinho tipicamente parisiense, a relação de Ninotchka com o adorno servindo de metáfora à sua paulatina aceitação dos modos de vida da Cidade-Luz. Mark Vieira ainda sublinha a importância de Lubitsch no sentido de ajudar sua protagonista a encontrar o caminho da personagem – Garbo estaria insegura e amedrontada por retornar à cena numa personagem tão diversa daquelas que costumava interpretar. 
Notória por personificar mulheres cada vez mais distantes, Garbo via-se arrastada a terra. “Garbo laughs”: a expressão que surgira antes do roteiro, no departamento de marketing da MGM, deixava claro o intuito de dessacralizar a persona da “Divina”. O roteiro primoroso segue fiel o intuito, efetuando a humanização da diva por meio de um delicioso exercício metalinguístico, que todo o tempo questiona e rasga a roupagem que o star system atrelara à atriz. 
Garbo é Ninotchka, enviada especial da Rússia comunista à luminosa Paris de um tempo nostalgicamente referido no prólogo como “aqueles dias maravilhosos em que uma sirene era uma morena e não um alarme – e se um francês apagava a luz, não era por conta de alguma ameaça aérea!”. O tempo histórico da rodagem da película era, efetivamente, bem mais conturbado: em 1939, Hitler já havia anexado a Áustria, declarado Guerra aos Aliados e assinado um tratado de não-agressão com a Rússia. O filme caminha entre a história e a fantasia: saíra da máquina de fazer sonhos que, no entanto, durante a guerra aceitava cada vez mais discutir a realidade. Por isso, Ninotchka é num só tempo a bolchevique pragmática que viaja à Paris incumbida de vender as joias outrora pertencentes à Rússia czarista, e a borralheira tornada cinderela depois que a cidade a enfeitiça. 
A reconstrução da imagem de Garbo se dá desde o primeiro plano em que ela aparece. Ninotchka aporta numa estação de trem de Paris: Garbo está sem maquiagem. Aparece despida do mistério que, em filmes anteriores, lhe emprestavam o figurino, a maquiagem e a fumaça das locomotivas. Surpresos pelo fato de o enviado especial ser uma mulher, os três russos que a esperavam na estação recebem dela a resposta: “Don’t make an issue of my womanhood.” Está aí um exemplo de como funciona esta máquina de ditos certeiros que é o filme. 
Lubitsch e companhia criaram para Garbo uma personagem bastante coesa. Ela é uma tipificação anedótica da Rússia vermelha, dirão os críticos. Certamente, mas, o que é a comédia se não a restrição dos indivíduos aos tipos sociais? O que vale é que o filme diverte imenso, e Greta está tão absolutamente hilária que quem o vir se lastimará por ela ter abandonado a carreira tão cedo, dedicando-se tão pouco a este gênero. A pragmática Ninotchka, exemplar de uma Rússia que pouco tempo antes dera adeus a convenções como o casamento, repudiando o lastro burguês dele e de seus congêneres, como o amor romântico, toma a relação homem-mulher como uma atração de cunho biológico. Surpreendente é que diálogos como o abaixo tenham passado incólumes pela censura da época (Mark Vieira argumenta como isso se deu no imperdível Greta Garbo: a cinematic legacy, minha bíblia da atriz): 

Ninotchka: Love is a romantic designation for a most ordinary biological... or shall we say “chemical” process. A lot of nonsense is talked and written about it. 
Leon: I see. What do you use instead? 
Ninotchka: I acknowledge the existence of a natural impulse common to all. 
Leon: What can I possibly do to encourage such an impulse in you? 
Ninotchka: You don't have to do a thing. Chemically, we are already quite sympathetic.
Leon: You are the most incredible creature I’ve ever met. Ninotchka. 
Ninotchka: You repeat yourself. 
Leon: Yes, I’d like to say it 1,000 times. You must forgive me if I seem a little old-fashioned. After all, I’m just a poor bourgeois. 
Ninotchka: It's never too late to change. I used to belong to the petite bourgeoisie myself.

Aliás, as declarações de amor de Ninotchka a Leon são das minhas all time favourites... 

Leon: Ninotchka... do you like me just a little bit? 
Ninotchka: Your general appearance is not distasteful. 
Leon: Thank you. 
Ninotchka: The whites of your eyes are clear. Your cornea is excellent. 
Leon: Your cornea is terrific; 

ou 

Ninotchka: As basic material, you may not be bad. But you are the unfortunate product of a doomed culture. I feel very sorry for you; 

ou 

Ninotchka: And what do you do for mankind? 
Leon: For mankind? 
Ninotchka: Yes. 
Leon: Not so much for mankind. But for womankind, my record isn’t quite so bleak.
Ninotchka: You are something we do not have in Russia. 
Leon: Thank you. Glad you told me. 
Ninotchka: That’s why I believe in the future of my country. 

O roteiro genial é sublinhado por uma obra-prima de interpretação. Com sua voz profunda, seu sotaque estrangeiro e seu cabedal de vamps, Garbo torna único um papel que, malgrado a tipificação, é originalíssimo. Impossível vermos “Ninotchka” sem colocá-lo em contraponto com tudo o que ela fizera antes. O próprio roteiro não deixa: “Go to bed, little father. We want to be alone.”, diz Ninotchka ao velho mordomo de Leon, claramente dialogando com a expressão que até então a definia em Hollywood. 
“Ninotchka” faz mofa do comunismo, mas não poupa o capitalismo. A jovem irrita-se com a injustiça social presentificada pelo carregador de malas da estação. “Injustiça? Depende da gorjeta.”, o moço replica. “Repilo O Capital como repilo a poeira.”, diz o papaizinho mordomo de Leon. “Mas você não está interessado na igualdade? Você é um reacionário!”, Leon lhe diz. “Tudo bem que não sou pago faz dois meses. Mas ter de dividir com o senhor as economias de minha vida inteira já é demais.”, responde o velho... Por outro lado, essa definição que Leon dá para o rádio cairia como uma luva ainda hoje como explicação da sanha de consumo capitalista: “Rádio é uma caixinha que você compra no plano de instalação, e antes de ligá-lo descobre que há um novo modelo no mercado.”... 
Aliás, a personagem impagável de Garbo só funciona porque tem um leading man à altura. Melvyn Douglas já contracenara com ela no ótimo “As you desire me” (1932) e ainda seria seu galã no malfadado “The two faced woman” (1942), filme com que ela se despede das telas. Aqui ele é o parisiense arquetípico, que Maurice Chevalier tão bem apresentara anos antes: galanteador, charmoso. Este perfeito exemplar da luminosa sociedade capitalista acabará por encantar a bolchevique obstinada, claro. No entanto, embora eu prefira a Garbo borralheira da primeira parte do filme, não consigo negar seu charme quando ela se deixa impregnar do romantismo daquela sociedade “brilhante e condenada” – como tão bem a define Leon. 
Porém, mesmo os chavões românticos são envoltos pelo roteiro numa aura de eternidade: observem-se a reação de Ninotchka quando recebe as flores e o leite de cabra que Leon lhe mandara, sabendo já naquele momento que deveria deixá-lo; o fuzilamento simbólico da bolchevique em honra das “massas”; ou toda a sequência em que Ninotchka e os companheiros, já em Moscou, decantam nostálgicos sua temporada parisiense. 
“Ninotchka” é, efetivamente, um ótimo modo de se celebrar Greta Garbo. Porque, pensando bem, o filme nem rompe tanto assim com a imagem que consolidara no écran esta mulher que, mesmo terrena, soube como continuar divina.

domingo, 20 de dezembro de 2009

"Walking in the Winter Wonderland"

Muitos anos antes de aprender que o clima natalino quase palpável não passava de uma mistificação do mercado para induzir os consumidores a gastar dinheiro, o Natal era a minha época favorita. Agora que estou um pouquinho mais velha e sábia (e cética...), noto espantada que aquela sensação antiga ainda continua a mesma. Ainda continuo indo ao Shopping Iguatemi, não mais para pegar na mão os flocos de neve de mentira jogados de meia em meia hora do alto do estabelecimento (até porque faz 15 anos que o shopping parou de ensaboar os clientes com aquela mistura de água e sabão em pó), mas para ver a tradicional arrumação de Natal, abanar a mão para o Papai Noel (não posso mais me sentar no colo dele) e comprar enfeitinhos nas Lojas Americanas ao som da Simone cantando "Então é Natal...". A conclusão a que chego (não menos espantada) é que, embora algumas coisas sejam piegas, são elas que dão sentido para nossas vidas... O Macaulay Culkin entregando a pombinha da amizade para sua amiga bizarra que trata as pombas do parque no "Esqueceram de mim" (1992) me emociona até às lágrimas desde que eu era criança. Não menos que o solitário Senhor Matuschek da "Loja da Esquina" (1940) quando ele entrega aos seus funcionários a tão esperada bonificação e leva o rapazinho pobre que recém contratara para uma "verdadeira" ceia natalina. Pouco importa que esses e tantos outros personagens saiam de galochas e sobretudo sob a neve, enquanto eu os vejo com o ventilador ligado num calor que passa dos 30 graus. Isso decididamente não tem importância, porque me pego cantando "Winter Wonderland" e "White Christmas" dezenas de vezes por dia nessa época do ano, mesmo que estejamos no meio do verão e o pé de acerola daqui de casa esteja todo verde e vermelho. Essas canções e filmes têm gosto de infância, lembram-me de quando eu esperava o Papai Noel acordada, por isso sou tão grata por Hollywood ter perpetuado a "magia do Natal". A indústria do cinema pode ser até ser piegas, mas ela me faz muito feliz...
Quero transmitir um pouco desse clima a todos os amigos blogueiros que fiz por aqui. A todos, um grande abraço - tão grande quanto este que a Audrey está dando no Papai Noel. E ao som de "Winter Wonderland" cantado pela queridíssima DoDo.

domingo, 22 de novembro de 2009

Greta Garbo e Alla Nazimova: duas vamps cinematográficas dos anos 20 e o estabelecimento do modelo de representação naturalista


Aconteceu nessa semana uma coisa bem especial: apresentei meu primeiro trabalho acadêmico a respeito da recepção do cinema no Brasil, assunto que estudarei no doutorado. Mais uma vez se efetivou aquele casamento entre trabalho e diversão sobre o qual falei ao comentar sobre o livro de Antônio Ferro e o filme "Alvorada do Amor"...
A ideia foi suscitada logo no primeiro mês de uma disciplina de pós que fiz como ouvinte no semestre passado, disciplina que se tornou a desculpa perfeita para que eu fugisse de minha dissertação ainda por terminar e mergulhasse na produção bibliográfica sobre o cinema e nas fontes primárias que o discutiram, dos anos de 1920.
A personagem da femme fatale começou a me perseguir logo que comecei a estudar uma peça teatral esquecida de Coelho Netto - "Pelo Amor!" (1897), um dos meus objetos de estudo do mestrado - ou melhor, logo que acabei de ver "A fool there was" (1915) e notei que o tipo desempenhado por Theda Bara muito se aproximava da Samla de Coelho Netto. A produção filmográfica dos anos de 1910 e 1920, que recebeu tantas influências do cinema, passou a me interessar sobremaneira: passei por Bébé Daniels, Gloria Swanson, Alla Nazimova e especialmente Greta Garbo, que conheci mais profundamente por meio do incrível site alemão Garboforever, o melhor que já vi, num só tempo enciclopédico e apaixonado. Acabei o mestrado saturada de Coelho Netto e almejando estudar como as personagens e características do teatro deslizaram para o cinema, eu também desejando deslizar para ele. E aí tive a oportunidade única de cursar uma disciplina sobre cinema na área de literatura - essas oportunidades só costumam aparecer quando a gente já cumpriu todos os créditos em cursos que nem de longe nos despertaram tanto interesse... - e pensar de modo mais sistemático na relação entre teatro e cinema e na personagem que me havia vampirizado.
Isso me levou a um livro de Ismail Xavier chamado O olhar e a cena, que, por sua vez, me pôs a pensar no contraponto entre duas vamps das telas. O estudioso toma Griffith e Hitchcock para demonstrar a efetivação de algo que os cineastas buscaram durante a primeira metade do século XX - a adoção da decupagem clássica e da representação naturalista em busca do que ele denomina uma "autonomia da cena". Isso fez com que ambos - e tantos outros diretores - se debruçassem em gêneros literários e teatrais como o melodrama, no qual não há nenhuma intervenção digamos, "externa" na obra (por exemplo, a intervenção de narradores intrusos), o que dá a ela um efeito de realidade muito maior. É, portanto, um cinema que esconde os mecanismos de criação da obra artística - sobre eles Hollywood principiaria a falar nos anos 30, na "Rua 42" (42nd Street) e em "Footlight Parade" (ambos de 1933) e em tantas outras películas que desvelam os bastidores teatrais ou cinematográficos.
Eu sabia alguma coisa sobre o quanto a interpretação sutil de Greta Garbo havia causado impacto entre o público e a crítica de meados de 1920. Sabia também que Alla Nazimova abriu falência depois de financiar "Salome", montagem vanguardista do drama homônimo de Oscar Wilde. Então, decidi averiguar até que ponto as montagens dos filmes tiveram alguma relação com a recepção deles nos Estados Unidos e especialmente no Brasil. O resultado da busca foi tão empolgante quanto minha viagem pelos microfilmes e páginas digitalizadas de jornais e revistas antigos.
sessão "Cinematografia" do jornal carioca A Noite, 1928.

Neles descobri que a Greta Garbo foi uma das atrizes sobre as quais os periódicos brasileiros mais falaram nos anos de 1927 e 1928. Não faltaram elogios à naturalidade da atriz, que parecia estar realmente vivendo os papéis que representava. Publicavam entrevistas supostamente feitas com ela - duvido que o fossem, pois naquele momento suas fugas dos jornalistas já eram célebres - nas quais ela afirmava que "Para que se possa realmente impressionar uma assistência, é necessário que todos os seus passos e movimentos sejam feitos com naturalidade, como se estivéssemos na vida real. (...) A única maneira de se poder sentir um beijo ao ser fotografado é se esquecer tudo e todos que nos avisinham e pensar-se que se está realmente, amando a pessoa que nos beija.". Na formulação, Miss Garbo rompe com a linha divisória que separa personagem e atriz, fazendo emergir aquilo que Walter Benjamin fala sobre a importância do ator representar-se a si mesmo. Esse foi um dos primeiros passos da construção da persona da atriz - fundamental naquela época de estabelecimento do star system, em que homens e mulheres que se dedicavam ao cinema tinham suas figuras moldadas para atraírem a atenção do público. "Flesh and the devil" (entre nós denominado "O Diabo e a Carne") tornou Greta Garbo uma das estrelas mais brilhantes da constelação hollywoodiana. As tórridas cenas apaixonadas que dividiu com John Gilbert - consideradas, não por acaso, deflagradoras de um relacionamento amoroso entre ambos - motivou reações exacerbadas pelo "realismo" que engendraram. Os ecos dos inúmeros beijos que trocaram foram sentidos no Brasil mais de um ano antes do filme ser apresentado por aqui, daí os fotogramas (alguns coloridos) da fita publicados nas revistas especializadas
A Scena Muda, 20 de outubro de 1927

e as inúmeras notas publicadas sobre ela e seu elenco: algumas risíveis, como a remissão do jornal A Noite a certa pesquisa feita com moças, monitoradas enquanto assistiam às cenas quentes do filme. O resultado já é apontado no título da notícia: "Alegrem-se as morenas!", pois eram as mais sensíveis ao conteúdo erótico do filme. Quem se lembrar daquelas cenas em primeiros planos do casal vai entender a reação das meninas - sabe-se da força que tem o primeiro plano para carregar o espectador para dentro da tela, tornando-o participante de um menage a trois, como diz o Hitch ao dissertar sobre o legendário beijo entre Ingrid e Cary Grant em "Interlúdio" (Notorious, 1946). Aliás, o enredo melodramático do filme não raro faz com que os periódicos estabeleçam um intercâmbio entre ficção e realidade: "O romance d’esses dous astros [Greta Garbo e John Gilbert] está se tornando um verdadeiro filme no qual o diretor Maurice Stiller pretendeu tomar parte principal e... ficou com a pior.", diz a revista A Scena Muda. A revista constata, num tom picante, que a terceira ponta do triângulo amoroso era o diretor sueco que deu a Miss Garbo o primeiro papel importante de sua carreira. A leitura da recepção do filme nos anos 20 demonstra como o gênero melodramático, aliado à decupagem clássica e à naturalidade em cena foi responsável pelo estabelecimento de Greta Garbo como uma das grandes atrizes do século XX, admirada até hoje por uma legião de garbomaniacs de todo o mundo, que a seguem com uma devoção que beira a idolatria. Não é um acaso, aliás, que meu post sobre a última fotografia da atriz seja de longe o mais lido deste blog.

A Scena Muda, 15 de março de 1928

O mais claro contraponto a ela talvez seja outra grande atriz das primeiras décadas do século, a russa Alla Nazimova, sobre a qual meu amigo Ricardo escreveu um post fascinante, repleto de informações bibliográficas e de uma arguta análise sobre suas películas mais controversas, "A Dama das Camélias" (1921) e "Salomé" (1923). Ricardo faz apontamentos interessantes e que merecem ser lidos sobre a montagem vanguardista do drama de Wilde - eu lamento não tê-las lido antes, pois me ajudariam muito na escrita do trabalho de final da disciplina. Os cenários art nouveau, estética que tanto influenciou Wilde e o ilustrador do volume de "Salomé", Aubrey Beardsley, casam-se perfeitamente com a atmosfera do drama. O desempenho do elenco é lento e teatral.
A Scena Muda, 10 de março de 1927

Nada da naturalidade de Garbo, o que há aqui é um erotismo nervoso e fatalista muito semelhante àquele que se nota no drama simbolista de Oscar Wilde, no qual a lua misteriosa parece influir nos caracteres, moldando suas ações. A lua é elemento fundamental tanto no drama quanto na ilustração dele e no filme. Ao fim da postagem há uma edição da película feita por mim, na qual isso pode ser notado.

"The woman in the moon", ilustração de Aubey Beardsley para "Salome" (edição de 1907)

A montagem tão influenciada pelo simbolismo teatral e a estética art nouveau era novidade na cinematografia da época. Por meio de long shots, ela toma um distanciamento do público e cobra dele uma leitura muito mais analítica - não o convida a compartilhar a ação e a dissolver-se nela, e sim a entender os mecanismos que a criaram. Isso, suponho, tenha levado a crítica - ao menos a brasileira - a olhar o filme de modo ressabiado. Uma das poucas resenhas que encontrei sobre ele demonstram a incompreensão da crítica, que se perdeu em detalhes como a idade avançada de Alla Nazimova para interpretar o papel de Salomé (a mesma crítica que não fazia nenhuma reserva aos papéis de crianças interpretadas por uma Mary Pickford já madura) e terminou por achar o filme "estranho" e lhe atribuir uma notinha bem baixa.
O semestre passado foi um dos mais proveitosos da minha vida acadêmica. Quantas coisas eu aprendi ao longo dele! Agora sei, por exemplo, porque o vampiro bonitão de "Crepúsculo" arranca suspiro das mocinhas de todo o mundo, fazendo com que muitas queiram estabelecer um relacionamento amoroso com alguém desta espécie - conforme conta minha tia, secretária de uma escola de Ensino Fundamental. Se muita coisa dos anos 20 envelheceu, uma continua novíssima: a forma de montagem e o gênero cinematográfico melodramático, que arrebatam o público para dentro da tela e o fazem enxergar o mundo como um grande filme ...



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O artigo contendo a pesquisa completa acabou de ser publicado na revista Todas as Musas. Aqueles que quiserem acessá-lo, por favor, cliquem aqui. (3/2/11)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Beijos a la Garbo

Tudo começou com a Cris dizendo que estava juntando as cenas de beijo da Greta Garbo para fazer uma homenagem, já que a Greta faria aniversário dia 18 deste mês. Aí me lembrei da sequência final de "Cinema Paradiso", em que o homem amargo volta a ser menino vendo todas as cenas de beijo censuradas pelo padre da cidadezinha onde morava: herança do velho projetista que ensinou o rapazinho a amar o cinema. Então, decidi fazer uma paródia da antológica sequência usando uns beijos que a Miss Garbo dá em homens, adolescentes, mulheres e crianças. Toda a liberalidade daqueles "Good old days", apanhada com tanta graça por Cole Porter em "Anything goes" - "In olden days a glimpse os stocking/ Was looked on as something shocking,/ But now, God knows/ Anything goes" - merecia uma música igualmente animada. Escolhi a alegrinha "Kiss me", que não chega aos pés daquele alegríssimo tempo, mas dá uma ideia dele...
Na sequência, há o beijo que a Leonora Moreno de "Torrent" (primeiro papel hollywoodiano da atriz, em 1926) dá no namorado de infância, o qual tinha acabado de fugir da festa de seu casamento para passar a lua-de-mel com a ex-namorada; o beijo puro que a femme fatale de "The temptress" troca com a personagem de Ricardo Moreno (1926); o beijo proibido que a mulher casada (e que já tinha um amante) dá no rapazote de "The Kiss" (1929), sob os olhos do marido que acabava de chegar; o beijo tremendamente erótico que Marguerite Gautier dá em Armand no "A dama das camélias" (1936); o beijo russo (!) que a objetiva Ninotchka dá no conde Léon no filme homônimo (1939); o beijo homossexual que a rainha Cristina dá em sua protegida no "Rainha Cristina" (1934); o beijão que Felicitas (também casada...) dá em Leo no "Flesh and the Devil (1926); o beijo maternal da emancipada Arden Stuart em "The single standard" (1929); o beijo que a vítima de guerra desmemoriada de "As you desire me" (1932) troca com a personagem de Melvin Douglas (um dos seus mais frequentes galãs); o legendário beijo-de-boca-entreaberta que uma Felicitas dominadora dá num Leo sucumbido em "Flesh and the devil"; os beijos ambíguos que a Katrin de "The painted veil" (1934) dá na irmã mais nova, a qual estava deixando a casa depois de se casar com um brutamontes; outro beijo trocado entre os protagonistas de "Torrent"; o beijo final trocado entre a personagem de Greta e a de Clark Gable em "Susan Lenox, her fall and rise", um dos poucos filmes em que a atriz fica com o mocinho no final. Aí está minha homenagem meio brincalhona a essa atriz que é uma das minhas preferidas.
Abaixo, coloquei a maravilhosa sequência final do "Cinema Paradiso" (1988), a cena mais linda que eu já vi, com aquela música (de Ennio Morricone) que me nocauteia logo no primeiro acorde.




domingo, 7 de junho de 2009

A última fotografia de Greta Garbo (1990)


Aí está ela, aos 84 anos, flagrada antes da última visita que faria ao hospital, de onde não mais sairia. Greta Garbo, Garbo para seus inúmeros fãs – chamamento masculino que parecia tão bem caber à figura independente e forte da atriz. Ou então, simplesmente Greta, para esta brasileira que não cansa de ver seus filmes e trata tudo o que lhe é familiar com a mesma sem-cerimônia.
Greta é a atriz que mais me fascina. O motivo não é difícil de explicar: ela é a metáfora do cinema clássico, e eu sou irremediavelmente apaixonada por ele, como esse blog deixa patente.

A maestria com que Hollywood tomou a desajeitada mocinha sueca e transformou-a no epítome da sedução e do mistério é digna de nota, pois assim como o aparelho que usou para lhe corrigir os dentes e o lápis com que lhe aprofundou o olhar, a indústria do cinema moldou os gestos e atitudes da moça. Greta Gustaffson, a européia plebéia, transformou-se na “Divina Garbo”, que não queria nada além de “To be alone”. A imagem da mulher inatingível que Greta mantinha na imprensa, ao fugir das câmeras, viajar e hospedar-se sob pseudônimos e se recusar a dar entrevistas, encontrava seu eco nas personagens que desempenhava. Que o diga sua entrada em cena no belíssimo “Anna Karenina” (1935), circundada por um manto de névoa o qual transferia à musa a sua efemeridade. E são tantos outros os exemplos: a bailarina de “Grand Hotel” (1932), última personagem a ser apresentada ao público, solitária, melancólica e incompreensível – sintomaticamente, o “I want to be alone” é repetido algumas vezes por ela durante a película; ou Marguerite Gautier da obra prima “A dama das Camélias” (1936), cuidadosamente desvelada ao público enquanto está dentro do coche que a levará até o teatro e até o próximo pretendente.
Ao falar sobre “Ama-me esta noite”, referi-me a uma formulação lapidar de Walter Benjamin, para o qual o artista deve representar-se a si mesmo em cena. Aqui, eu complementaria que esse “eu” colocado defronte aos olhos do público é, antes de tudo, uma criação. Quem sabe como realmente era a menina Gustaffson? O que ficou foi Greta Garbo, a bela, esquiva, sedutora e andrógina Miss Garbo, que raramente era premiada com o amor de seus pares românticos ao final de seus filmes, e que, curiosamente (ou não), viveu, durante toda sua existência, uma vida amorosa complicada e dúbia.
Poder-se-ia dizer que nenhum de nós é senão criação do momento e lugar onde vivemos, mas há algo de sádico que circunda a criação de Greta Garbo e de tantos outros astros e estrelas fabricados pela indústria cinematográfica, especialmente aqueles encarregados de tipos exóticos. Sádico porque esse mundo de faz-de-conta, de sombras numa tela branca, é, paradoxalmente, mais real que o nosso dia-a-dia. Greta sentiu o peso do “eu” que lhe criaram. Esta grande atriz, de uma intensidade dramática impar, temia envelhecer e, assim, perder aquilo que mantinha em pé sua imagem de deusa, imagem sem a qual a Hollywood daqueles tempos supunha não poder viver. No entanto, infelizmente sua maturidade como atriz chegou juntamente com o desgaste do tipo que lhe foi criado, e ela se viu obrigada a abandonar as telas aos 36 anos. Greta viveu mais quase 50 anos, todos eles para negar o “eu” que seus filmes lhe imprimiram – essa fotografia é a prova disso.

A Greta Garbo criada por Hollywood