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domingo, 11 de março de 2012

Nunca houve filme de terror tão bom como "Os Inocentes" (1961)

por Chico Lopes

Uma constatação: entre todos os gêneros cinematográficos, talvez sejam os filmes de terror os que oferecem maior quantidade de produções ruins ou de lixo abaixo do desprezível. E, no entanto, esses filmes são produzidos com abundância, as locadoras estão cheias deles (assemelham-se em tudo, até nos títulos, como que indiferenciados pela apelação) e o público (sobretudo o adolescente) continua consumindo-os. Bons enredos, bons atores, boas direções, boa fotografia, nada disso está mais em questão: trata-se de uma espécie de vício, a repetição é cega, compulsiva, e os addicts pouco se importam com isso, mais interessados em conferir sustos e mortes sádicas. De vez em quando, produções como “O sexto sentido” (The sixth sense, 1999) e “Os outros” (The others, 2001) se destacam, e são sempre lembradas como modelos de sugestão e qualidade a seguir, mas as ideias mais felizes são diluídas e recicladas descaradamente em filmes que parecem ter um potencial interessante até certa altura e de repente despencam no total descrédito dos clichês mais abusivos. A publicidade intensa acaba favorecendo os mais... digamos, originais. Vamos vê-los na esperança de uma redenção, de uma direção excepcional, inteligente. Mas a originalidade é apenas uma distinção ligeiramente acima da média geral (que é muito baixa) e, na verdade, originalidade e comércio deslavado se casam muito mal: as concessões que têm que ser feitas a um público imbecilizado fazem sempre com que o comércio vença.

"Os outros" (2001)

Filmes de terror (especialmente americanos) são fenômenos mais para a área da sociologia e da psicologia que da cinefilia, de algum tempo para cá. Eu gosto do gênero, para minha infelicidade, e vejo muita coisa, sempre acreditando que de cada vez possa me surpreender com qualidade debaixo de um título menos conhecido. Qual! Quebro a cara sem parar, e, no entanto, sigo vendo (gosto do senso se atmosfera que se instala, para ser arruinado daí a pouco). Acabo vendo só para constatar variantes em torno do mesmo tema: bandos de jovens adolescentes que vão a um acampamento ou se perdem numa estrada vicinal etc e se deparam com os Jasons da vida ou com cabanas onde demônios guardam seus mais terríveis segredos em livros cabalísticos que, claro, alguém vai decifrar para os personagens e para o público e contém ameaças horrendas. Os jovens vão morrendo um após outro (e é impossível lamentar as mortes, pela total cretinice dos tipos) e sempre resta um último para esticar a coisa e reservar um susto que já não assusta mais ninguém.
Filmes desse tipo parecem exorcizar medos adolescentes obsessivos, e por isso talvez sejam tão obsessivamente ruins e repetitivos – a neurose obsessiva que satisfazem precisa do mecanismo de repetição, sua mecânica é cega. Rendem-se à superstição e ao moralismo mais rígido e autoritário totalmente, como se um adolescente fosse uma criatura destinada ao desastre a menos que os pais, os mais velhos, professores, vizinhos respeitáveis, os mestres e feiticeiros com suas advertências extremamente conservadoras – “não se envolva com isso que o perigo é terrível” – o oriente. Naturalmente, o conselho só faz aguçar a curiosidade pela “coisa errada” e está pronto outro enredo de filme vagabundo. Esses filmes perpetuam tabus – desafiá-los acaba sendo ruim demais para os xeretas e desobedientes. Parecem servir à perfeição para, através do mistério, exercer irracionalidade e opressão sem questionamentos. O passado, a tradição, as regras que não devem ser ultrapassadas, têm neles um papel decisivo. Tudo que vendem é uma espécie de submissão assustada ao obscurantismo salvaguardado pelo medo – “viu só no que deu você ter me desobedecido?”, clama o adulto careta.
O modelo americano pegou no mundo todo – de repente, depara-se com filmes assim procedendo da Noruega, da Rússia e de outros cantos menos previsíveis, e os eternos adolescentes cretinos estão lá, a postos para uma excursão desastrada pelo terreno do Mal onde não deveriam penetrar. A onda de terror japonês fez entrar na coisa crianças esquisitas, mortos e fantasmas menos previsíveis, em produções que até teriam sua poesia se aproveitassem aquelas ideias em outras direções que não a do mais rasteiro e ofensivo clichê. Mas portas se entreabrindo, rangentes, noites de tempestade quando o clímax do drama se instala, gente correndo de mascarados com facas ou outras armas nas mãos, misteriosos farfalhares de mato em torno de acampamentos e olhos de monstros não vistos seguindo os incautos, isso nunca se acaba...

ADAPTANDO HENRY JAMES

Acho, na verdade, que nunca vi melhor filme de terror que o clássico “Os inocentes” (The Innocents, 1961), de Jack Clayton, tanto que ele é modelo indireto para “Os outros” e é sempre citado como o clássico que todo diretor de terror respeitável precisa ver. Ainda que depois vá fazer, seguindo os ditames de produtores ávidos por dinheiro e modas entre adolescentes, mais uma porcaria a ser despejada nas locadoras. É ótimo citar fontes prestigiosas, mas ninguém quer perder dinheiro, ora...
Eis a situação do filme, produção inglesa de 1961: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo – resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer. O casalzinho de crianças órfãs, lindíssimo, verdadeiramente angelical (Martin Stephens é Miles e Pamela Franklin é Flora), pode estar sendo vítima de possessão por um casal já morto, o estranho criado Peter Quint e a preceptora anterior, Miss Jessel.
Na novela original (muito conhecida no Brasil), “A volta do parafuso”, Henry James não deu nome à sua personagem. No filme ela tem – é Miss Giddens. E é interpretada por Deborah Kerr em estado de graça – não vi na carreira dela um papel em que seu tipo se ajustasse tão perfeitamente e em que ela fosse uma atriz tão visceral e convincente. O tio é vivido, só no início, por Michael Redgrave (fala-se que era para ser Cary Grant, mas ele achou o papel pequeno demais). Aparece apenas para jogar charme sobre a suscetível Miss Giddens, visivelmente uma solteirona reprimida para quem um homem daqueles, chique e mundano, seria um partido extraordinariamente desejável. Na verdade, ela só aceita a missão com sua estranha exigência porque sucumbiu ao charme do solteirão hedonista e espera tornar-se uma heroína aos olhos dele, cuidando das crianças e não o importunando. A primeira coisa que ouvimos dele é “a senhorita tem imaginação?”, ao que ela responde excitadamente que sim.
Tem mesmo, para sua desgraça. E, aliás, há, em torno da novela de James (de que fiz uma das traduções no Brasil, pela Editora Landmark, SP, em 2004), toda uma mística e uma incansável polêmica, porque James escrevia com tanta sutileza, em tantas camadas psicológicas dignas de desconfiança, que muita gente simplesmente acha que não havia fantasmas em Bly, que tudo era imaginação da preceptora. É preferível que o ângulo psicanalítico não seja enfatizado demais, no entanto, porque essa mistura de literatura e análise freudiana restringe muito o alcance da história. Embora a preceptora, uma figura vitoriana de mulher casta, reprimida, dotada de imaginação romântica como uma heroína de Charlotte Bronte, que “introjetou” todos os valores da época através de um pai sem dúvida repressor, seja um prato cheio para os Juquinhas que veem o dedo da sexualidade em tudo. E James, que foi um escritor sobretudo alusivo, semeie sugestões perversas (talvez involuntárias, reflexos de sua própria repressão) por toda a narrativa. Mas ele confessou que só quis fazer uma história de fantasmas, não mais.
Bem, o prodígio do filme é que ele adapta James melhor que qualquer outro filme já realizado (pelo menos dos que vi, embora confesse não ter visto “Tarde demais” (The Heiress, 1949), adaptado de “Washington Square”, dirigido por Wyler e com desempenho muito elogiado de Olivia de Havilland). É impressionante como, para um espectador que tenha passado primeiro pela leitura da novela, tudo estará lá: a atmosfera, o cenário escolhido (o lago é uma perfeição), a Bly imaginada por James, os fantasmas (Miss Jessel e Peter Quint são pavorosos, até porque mais sugeridos do que vistos claramente), a casa, seus cômodos imensos, escadarias e ornamentos vitorianos, a impecável Meg Jenkins como Mrs. Grose, uma criada analfabeta e dona de grande calor humano. A fotografia de Freddie Francis é um primor. Francis foi quem fez a fotografia de “O homem-elefante”, de David Lynch, por exemplo. É um artista consumado do preto e branco e, tivesse o filme sido feito a cores, teria perdido violentamente em nuances preciosas.
“Os inocentes” parece ser dessas poucas operações miraculosas que de vez em quando o Cinema faz com a Literatura, propiciando um par de dançarinos que nunca tropeçam um no outro, ajustam-se muito bem e saem valsando divinamente. Henry James, se tivesse vivido tanto para ver o cinema dos anos 60, não teria um só reparo a fazer. Nisso talvez haja dedo de um grande escritor, Truman Capote, que, junto com John Mortimer, usando diálogos de uma versão teatral do texto escrita por William Archibald, adicionou doses de sua conhecida malícia ao trabalho (e, em certos pontos, creio eu, exagerou um pouco). Mas o respeito à obra literária é mantido escrupulosamente e, sem fugir à fidelidade, o filme toma pequenas liberdades criativas (como a lágrima de Miss Jessel sobre uma escrivaninha) que só acrescentam. São liberdades a partir de possibilidades bastante verossímeis que estão na narrativa original.

O SUSTO COMO ARTE


Não pude ver o filme quando passou pelos cinemas em seu tempo porque era menino ainda, não tinha 14 anos (que era a censura da época), mas pessoas que o viram, na minha cidade natal, comentaram comigo, dizendo que uma aparição de Peter Quint lhes deu um susto tão violento que passaram uma semana sem dormir direito. Um amigo desenvolveu fobia a janelas, porque “Os inocentes”, naturalmente, não foge à gramática do gênero: tem muitas janelas com cortinas esvoaçando ao vento, e é numa janela que Quint enfia sua cara horrenda, sugerindo coisas que a gente só pode imaginar para a preceptora (ele jamais fala coisa alguma; é muito mais uma influência pairando na mansão de Bly do que um fantasma; e de Miss Jessel, sua companheira, só de vez em quando ouvimos a voz tristíssima e o pranto).
A razão pela qual um filme desses, tão pouco explícito em seu terror, parece mais assustador que qualquer outro, é digna de reflexão. Acredito que é porque o filme tomou o susto como uma forma de arte, como uma forma superior de compreensão da alma humana e suas desolações. Há nele uma espécie de solidão pungente, um abismo de classes (bem, se trata da esnobe Inglaterra) e uma dose de sofrimento moral e afetivo (tanto nos fantasmas quanto nas crianças) que acaba por nos impressionar, em revisões. Evidente que Quint e Miss Jessel tinham uma relação escabrosa, sado-masoquista, da qual ficamos sabendo pelas alusões cautelosas e envergonhadas da criada Mrs. Grose. O casal de órfãos, com sua beleza e vulnerabilidade, é de fazer pena, pela solidão, pelo egoísmo do tio, e a gente os imagina tão sozinhos em suas brincadeiras que não tinham por que recusar a influência dos mortos que haviam conhecido em vida (na verdade, é como se Quint e Miss Jessel simplesmente houvessem continuado a brincar com eles, na condição de espectros). O momento em que o garoto Miles declama um poema (que é abertamente um convite a que o espectro venha vê-lo) é de uma enorme beleza. Flora dançando no quiosque junto ao lago, invocando a presença de Miss Jessel, que surge do outro lado, pouco vista, mas terrível em seu luto e sua desolação, é outra cena de uma beleza extraordinária. Lição: filme de terror pode ser grande arte (o que hoje em dia parece impraticável).
“Os inocentes” também tem outra lição: é um filme de ruídos conscientemente muito elaborados, começando pelo início quando, em tela totalmente negra, ouve-se pássaros cantando, e vão surgindo as mãos crispadas da preceptora. E, numa voz infantil de menina, ouvimos uma musiquinha doce que, no entanto, está recheada de desolação e sexualidade de tal modo que entendemos que ela sintetiza a relação de Quint e Miss Jessel. Foi composta por Georges Auric, autor da bela trilha sonora do filme, e tem letra de Paul Dehn (aí está, pra quem quiser conhecer o filme):

We lay my love and I beneath the weeping willow.
But now alone I lie and weep beside the tree.

Singing "Oh willow waly" by the tree that weeps with me.
Singing "Oh willow waly" till my lover return to me.

We lay my love and I beneath the weeping willow.
A broken heart have I. Oh willow I die, oh willow I die
.

Afora esta cançoneta doce e sinistra, insistente, retomada em vários momentos dramáticos e tocada numa caixinha de música, os sons (de pombos destroncados, gritos, sussurros, ventania, ruídos ainda mais furtivos e imprecisos) em torno de Bly fazem com que o filme ganhe uma eloquência envolvente, que pode matar de susto algum incauto que se deixe levar profundamente por ele (isso sim é terror: alusões, matérias-primas obscuras para a imaginação, a paranoia e o desespero).
Outros achados: o quarto de brinquedos do filme parece uma ideia reaproveitada por Ridley Scott muitos anos depois em “Blade Runner” (1992) e há algo do posterior “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986) no inseto que sai da boca de um querubim no jardim, assustando a preceptora. Também as tomadas de voos de pombos levam diretamente a lembranças de “Blade Runner”. A influência de “Os inocentes” se espalhou por outros gêneros. É de fato terror, e terror da mais pura espécie – elegante e peçonhento. Quanto a essa influência, no entanto, lembrar que ela teve frutos um pouco bastardos, como o filme “Os que chegam com a noite”, de Michael Winner, realizado em 1972. Winner, cineasta muito inferior ao diretor Jack Clayton, especula sobre a relação entre Quint e Miss Jessel falando do que teria acontecido antes de suas mortes, tendo Marlon Brando e Stephanie Beecham no papel do casal. O filme é de uma fase em que a carreira de Brando estava em total decadência e não faz falta nenhuma.
O fundamental, mais que ver uma vez, é ter “Os inocentes” para vê-lo e revê-lo muitas vezes, por cinefilia. O DVD está no mercado pela distribuidora Oregon, sem extras, mas com uma cópia muito bonita, com todo o esplendor do preto e branco de Freddie Francis.


sexta-feira, 26 de março de 2010

O grande Gatsby (1974): revisitando "The good old days"



"O Grande Gatsby" (1925) entrou em minha vida primeiro pela pena de Scott Fitzgerald, há uns bons 10 anos.
Entrou e não saiu mais - curioso como alguns livros que a gente lê passa a fazer parte de nossas vidas. Li-o num verão na praia - o ambiente e a história se misturaram, e eu já não era a estudante de Letras passando as férias com a família no litoral paulista, mas uma personagem daquele romance feito de festanças e charleston, amor e ressentimento, e de uma luz verde que brilhava insessantemente através da baía de East Egg (de novo a luz verde...), convidando o mocinho romântico à ilusão. Naqueles dias de leitura, eu tinha certeza de que, se forçasse as vistas, enxergaria numa daquelas ilhotas de Itanhaém a mesma luz verde que enredou Gatsby, obrigando-o a se fixar do outro lado da baía da mocinha que ele amava.
A prosa de Fitzgerald tornou-se pra mim ainda mais fascinante com o tempo. Clara Bow, a adorável e espevitada IT girl, ajudou-me a conhecer Daisy Buchanan, pródiga em beleza, sex-appeal e leviandade. Ambas são marcas do tempo, daquela época em que os carros iam ficando cada vez mais velozes, as mulheres mais liberadas e o Deus Todo Poderoso ia sendo substituído cada vez mais frequentemente por simulacros terrenos (pelo "Money, money, money" do "Cabaret", ou então, pelo moderníssimo outdoor com os olhos que tudo veem, de "O Grande Gatsby").

"The Great Gatsby" (1974)

Mas, em "O Grande Gatsby", a existência capitalista dos ricos trazia em seu fundo elementos invisíveis à superfície. Admiro em Scott Fitzgerald como ele consegue descamar seus heróis ao longo de suas histórias. A intangível "feiticeira ruiva" do conto homônimo, que dá razão à vidinha burguesa de Merlin Grainger, não passava de uma bailarina escandalosa; o metódico e centralizador Monroe de "Último Magnata" era, afinal, um romântico, enredado por uma mulher comum por ver nela a esposa amada que morrera; mais romântico ainda era Gatsby, o ex-soldado e, agora, arrivista social, que construíra nome e fortuna para entregá-los numa bandeja à fútil Daisy, cuja paixão por ele depois descobriremos não passar de um flerte (o flirt, tão na moda naqueles good old days).

Scott Fitzgerald

Scott Fitzgerald era um romântico numa época de perda das ilusões (pela Grande Guerra, pelo capitalismo selvagem) e desejo frenético de se experimentar experiências fugazes. Gatsby é um retrato disso: os scrapbooks que faz de Daisy são prova de que ele desejava parar o tempo que corria cada vez mais furiosamente e tentava impedir que as pessoas cultivassem relacionamentos duradouros. Quer mais romantismo que o modo como ele enxerga Daisy - tão bonita e (moralmente) quebradiça quanto a flor que lhe dá o nome - que sempre vê à distância, filtrada pelo grande amor que tem por ela, o qual apaga seus inúmeros defeitos? Isso tudo construído numa prosa elegante e, em certo sentido, clássica, que ousa no conteúdo e não na forma.

Redescobri o escritor sensacional ao ver, no final da semana passada (o atraso do post é culpa da correria de início de semestre...), a versão cinematográfica do romance rodada em 1974 e estrelada por Mia Farrow e Robert Redford, a terceira de suas quatro versões (as outras são de 1926, 1949 e 2000).
É um belo filme: boa escolha de elenco, trilha sonora, locações, fantástica fotografia e figurino, tudo contribuindo para a reconstrução do high-life de Long Island tal qual Fitzgerald o via. Mia Farrow é uma formidável Daisy. Os trejeitos artificiais que faz quando a câmera a toma pela primeira vez - momentos antes d'ela ser apresentada a Nick Carraway, o narrador - apreendem bem a mocinha fútil que ela, no final das contas, se provará. A personagem representa um tipo que é em si artificial - uma boneca moldada para o deleite dos grã-finos, cujo maior atributo é enfeitar as reuniões e festas por eles organizadas. Daisy até demonstra alguma consciência ao rogar para que a filha seja suficientemente bela e tola para encarar a vida que a aguarda ("Garotas belas e tolas podem usar as roupas que elas escolherem", ela consola a filhinha). Porém, no final o que subsiste é seu papel de flapper na extravagante peça de teatro em que ela entrou desde que teve idade para flertar.
Gatsby se apaixona por uma ilusão e deseja tomá-la para si. Porque sabia bem que mulheres como Daisy não se casavam com homens pobres, constrói um império maior que o homem com o qual ela havia se casado. E dá festas e mais festas em sua mansão, esperando pela personagem principal, sempre convidada mas que nunca aparece (afinal, ricos tradicionais não se misturavam aos novos-ricos).

Gatsby e Daisy se veem pela primeira vez depois de muito tempo, e através de uma moldura circundada por flores. Novamente a ilusão se sobrepõe à realidade...

É sintomático, portanto, que o reencontro de ambos seja cercado por aquilo que os separou: dinheiro. Fantástico, aliás, como Fitzgerald escreve nesse momento uma poesia do dinheiro. Gatsby, numa ansiedade que trás de volta o jovem oficial que ele foi, embeleza o jardim de sua casa para receber a moça e faz cair sobre ela uma simbólica chuva de camisas importadas (como essa cena, que nem me lembro existir no livro, fica bonita no filme!): inunda-a com dinheiro.

No final, porém, o que permanece é uma consciência de classe bastante forte. Gatsby perde sua ambiguidade para se parecer bastante com Nick, o primo pobre de Daisy, narrador da história. Ao contrário dos ricaços, que têm uma caixa registradora no lugar do coração, o herói de Fitzgerald acaba assumindo a culpa de um crime cometido por Daisy, morrendo por ela (o que há de mais romântico?). A canção que fecha o filme é uma balada irônica dessas diferenças sociais: Ain't we got fun (Whiting, Kahn, Egan, 1921).

In the winter in the Summer
Don't we have fun
Times are bum and getting bummer
Still we have fun
There's nothing surer
The rich get rich and the poor get children
In the meantime, in between time
Ain't we got fun?

Porém, o narrador fica do lado do protagonista e é, de certa forma, aquele que o redime, afinal, é através de seus olhos que conhecemos o que há de pérfido na sociedade dos roaring twenties.