Vez por outra o cinema comercial de Hollywood dá sinais de que ainda tem algo a dizer. Como agora, neste filme cujas rédeas todas são de Alfonso Cuarón (responsável pelo roteiro, direção, corte final e produção da obra), que faz um trabalho difícil de definir d’outro modo que não como brilhante.
Esta minha leitura de sua obra por certo que a tomará a partir do lugar de onde ela saiu. Numa terra de anódinos blockbusters, talhados para arrastar multidões aos cinemas – e daí, obedientes de expedientes pouco inspirados, como o moralismo, a pancadaria e o riso fácil –, “Gravidade” é uma flor de cepa rara. Vá vê-lo, quem ainda não foi – ele felizmente está enchendo salas há semanas.
Cuarón abre mão do elenco numeroso e de efeitos especiais altissonantes para se concentrar nas histórias de duas personagens que passam por uma situação-limite: a cientista incumbida de atualizar o sistema operacional da estação espacial americana e o piloto responsável pela missão. Lixo cósmico oriundo da destruição de outras estações lança o casal à deriva na imensidão do espaço. Ambos precisam retornar à nave para reentrar o planeta Terra.
A simplicidade do enredo mal prepara o público para o que ele está prestes a ver. A Veja comparou o filme a “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), tratando-o como a definição por excelência de “cinema”. Difícil não concordar. “Gravidade” constrói em potência o espaço para o mergulho do espectador na tela – algo favorecido pelo 3D, certamente, mas sobretudo pelo manejo notável de câmera e pela decupagem que o diretor impõe ao objeto fílmico.
Basta uma cena – quase no início – para que percebamos a proeza. Ryan Stone (Sandra Bullock) despreende-se da asa da estação e mergulha no infinito. Num plano-sequência, a câmera principia a captar seus rodopios, à distância; aproxima-se paulatinamente para focalizar seu rosto em giro, a Terra refletida no vidro do capacete; cola ao seu rosto e, transformando-se nos olhos da astronauta, enxerga o mundo a girar; para, por fim, despregar-se dela e, de novo, tomá-la da distância. Uma câmera objetiva indireta (o olhar “objetivo” da câmera) que por um momento se torna objetiva direta (o olhar da personagem), para logo readquirir sua função de olhar onisciente da realidade: por meio dela, o espectador atinge, num só tempo, consciência do espaço inóspito e da mulher desesperada.
Mas Cuarón vai além. A singularidade deste trabalho obriga-nos a destacá-lo do campo terra-a-terra palmilhado pelo blockbuster hollywoodiano para que, com ele, ascendamos ao terreno da metafísica – considerando, claro, que o cinema também é uma religião. Penso no quanto a escolha que o diretor faz do espaço da ação não esteve impregnada de um desejo de compreender a gênese do cinema. Eu exagero, talvez. Mas não poderíamos considerar que essa liberdade de pássaro que o artista dá à sua câmera conota aquele papel primordial do cinema, de desatrelar-se do tempo e do espaço para, então, fundar uma nova realidade? Tal ruptura com o tempo é explicitada pela alternância aleatória entre dia e noite experimentada pela Terra – vista pelos protagonistas a partir da distância que transforma o planeta em espetáculo. “Você precisa admitir que é bonito” – Stone ouve do piloto Kowalsky (George Clooney) enquanto ambos, na liberdade do espaço, lutam para readquirir os liames.
No que toca aos protagonistas, cumpre entregarmos ao Sr. Cuarón uma medalha de honra ao mérito pela firmeza com que dirige a dupla de estrelas – sobretudo Sandra Bullock, em quem o filme especialmente se concentra. Eu, que acompanho Sandra desde os tempos de “Velocidade Máxima” (1994), jamais a imaginei uma atriz tão deslumbrante. Sandrinha (já disse que a acompanho há um bocado de tempo...), a girl next door de “Enquanto você dormia” (1995), a policial de coração mole de “Miss Simpatia” (2000), uma deusa?
Bullock precisa agradecer ao seu diretor por lhe forjar uma nova imagem. Forjar, mesmo: de cabelos curtos, roupas mínimas e corpo firme, a atriz ganha foros de estatuária. A câmera ainda coopera. Duas belíssimas sequências bastam para explicitá-lo: quando, ao reentrar na nave, ela se despe do traje especial, a semigravidade do ambiente cooperando para que ela componha uma imagem uterina; e quando, na sequência final, um contra-plongée sintetiza a grandiosidade que o diretor desejou imprimir para a personagem.
Tais sequências são, além de tudo, simbólicas: da geração de Ryan Stone, no útero da nave, ao seu nascimento pela água e, enfim, aos primeiros passos titubeantes pela Mãe-Terra, esboçam-se os contornos da mulher a quem a experiência extrema fez renascer. Renascimento da personagem e da persona da atriz. As poucas palavras que Sandra Bullock diz neste filme permitem-nos conhecê-la mais do que quaisquer de seus papéis anteriores jamais nos permitiram. Sinto deveras que ela já tenha recebido o Oscar de Melhor Atriz. Espero, porém, que isso não a impeça de ser dignamente homenageada por este seu trabalho espantoso.