Mostrando postagens com marcador Anna Magnani. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Anna Magnani. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

“Eu sou Ingrid Bergman” (Stig Björkman, 2015)

Lendo as sinopses de filmes pregadas no mural de um cinema paulistano, deparo-me com este título, o – segundo o ranking de uma determinada revista – melhor em cartaz em São Paulo. Um longa-metragem passa, então, em fast motion pela minha cabeça. 
Eu sou Ingrid Bergman. 
Certas coisas estão impregnadas de memória afetiva. Dez, doze anos atrás, esbarrei em Ingrid Bergman num filme de Hitchcock, e ela definiu o meu destino. Dali por diante eu precisava conhecer toda a sua obra: e de roldão conheci Hitchcock, Rossellini, George Cukor, Anna Magnani e uma porção não desprezível do céu estrelado onde a divindade da Sétima Arte repousa. 
O filme em questão nem é o que de melhor fez Hitchcock. Trata-se de “Quando fala o coração” (1944), um melodrama com laivos de psicanálise e muito mel – violinos insistentes torturando o tema amoroso enquanto os olhares da Dra. Constance Petersen se cruzam com os de John Ballantyne, seu suposto colega de trabalho acusado, não muito tempo mais tarde, do assassinato do psicanalista-chefe da casa. “Vou te curar e, se isso acontecer, permanecer contigo” – diz a psicanalista apaixonada. 
 Meloso, mas Miss Bergman já está toda aí, com os óculos de grau que deformam a aparência estelar que a Hollywood clássica lhe buscava imprimir, com a assertividade da mulher profissional que não se deixaria tanger pelos homens ou pelas circunstâncias. Foi isso, talvez, que fez os nossos caminhos se cruzarem. 
O enredo do documentário tece-se a partir da primeira pessoa – dos diários que Ingrid manteve durante toda a vida, quiçá desde que começou a escrever. É lido no original sueco por Alicia Vikander – ótima jovem atriz que o Oscar acabou de notar – e corroborado pelas vozes de Pia, Isabella, Ingrid Rossellini e Roberto Rossellini, os quatro filhos da atriz. É curioso ver um Roberto Rossellini belo e bonachão, mistura de Ingrid e Roberto, homem que construiu a vida distante das câmeras: nem a genética, nem o nome de batismo já de saída célebre, parecem tê-lo feito se envolver mais do que esparsamente com o cinema. 
Com os filhos Roberto e Isabella
A mais conhecida do quarteto é Isabella Rossellini, que herdou o rosto da mãe – a semelhança é mesmo assustadora – e os cabelos do pai. E o talento de ambos, que, notado unanimemente na ocasião do lançamento de “Veludo Azul” (David Lynch, 1986), continua a ser exercido, nos campos da atuação cinematográfica e teatral, e da produção. Tem a sede da mãe, ao que parece, já que envereda agora pelas searas do experimentalismo. 
O quarteto invoca a mãe de modo muito semelhante ao que fizera no DVD de The Hollywood Collection dedicado a ela. A Ingrid ausente, envolvida invariavelmente com o trabalho, a ver os filhos apenas nas férias, recupera-se na Ingrid fantasmática, a se desdobrar na tela num sem-fim de filmes de família, rodados desde que a jovem atriz era uma promessa ainda não concretizada, na pequena Suécia natal. 
Em "Anastácia" (1956)
O filme é doce, aparando as arestas de uma vida turbulenta de modo como nem mesmo a própria Ingrid Bergman procurou fazer em sua autobiografia, onde ela narra sem pecha sua necessidade de sistematicamente deixar os filhos para ir atrás do trabalho e dos amores. É como se, passado tanto tempo desde a sua morte, após o que Cannes lhe erigiu um portentoso memorial comemorativo aos seus 100 anos, Ingrid tenha sido transmutada, mesmo na memória dos filhos, de mulher a mito. Não acredito que ela o quisesse – sempre disposta que estava a descer do pedestal e se desgrenhar, sujar-se das cinzas do vulcão e viver plenamente a carreira e a vida, sem que os liames comezinhos da sociedade a prendessem. 
O documentário sustenta-se como o esforço das quatro crianças de emendarem os pedaços de vida da mãe aos seus. A Ingrid Bergman divertida e carinhosa emerge dos depoimentos e das imagens: a abraçar os filhos, a brincar com eles. A vida é transformada em espetáculo por meio das imagens silenciosas que mostram uma Ingrid desempenhando a contento um papel para o qual ela era talhada apenas ocasionalmente – como se fora contratada para um saltitante musical-família da MGM, após o qual ela precisava de trabalho sério. Felizmente. 
Em "À Meia Luz", 1944
Nenhuma atriz, como ela, passeou com tanta segurança pela Hollywood Clássica e pelas novas ondas italiana e francesa. Negando os rótulos, foi mulher de vida airada quando sua imagem de mocinha já estava consolidada (em “O Médico e o Monstro”, Victor Fleming, 1941); meteu-se com o Neorealismo Italiano e com Rossellini (em “Stromboli”, 1950) quando era a atriz mais celebrada nos Estados Unidos; no exílio obrigatório de quase dez anos, pela “imoralidade que cometera”, trabalhou com Jean Renoir e acabou por ganhar um Oscar, capitulação cabal de Hollywood... Gostava de um desafio – sua filmografia é um belo passaporte para um apaixonado por cinema adentrar pela cinematografia dos anos de 1930-1980. 
O documentário passeia por estas veredas todas, mas concentra-se na imagem da mãe. A Ingrid Bergman que eu amo é mais ardida que essa: como a Alicia Huberman de “Interlúdio” (Hitchcock, 1946), é meio a ébria, meio a prostituta, meio a santa, meio a apaixonada. A esta Ingrid eu devo a minha fascinação pela sétima arte.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Arte; porque a vida não basta. A Carruagem de Ouro” (1952)

“Peru, inícios de século XVIII. Uma troupe de teatro mambembe italiana aporta na colônia espanhola em busca do enriquecimento. Esta é premissa da obra-prima do francês Jean Renoir, rodada na Itália, protagonizada por uma diva italiana mas falada em inglês – deslocamento temático desdobrado na estruturação da própria trama. 
“Carruagem de Ouro” é precioso por qualquer lugar que se lhe pegue: enquanto incursão de Anna Magnani no idioma de Shakespeare, enquanto apropriação da Commedia dell'Arte, enquanto encenação da aguda influência que a pintura do Renoir pai exerceu sobre o filho cineasta, enquanto exercício metalinguístico, enquanto exemplar do gênero cômico... 
Magnani encontra aqui terreno amplo para mostrar a superlativa artista que era. Obrigada a falar inglês, a vera italiana tinge a língua de um sotaque forte, que bem combina com a personagem que leva à cena – sempre a reclamar, pródiga na gesticulação, do idioma arrevesado que a obrigam a aprender para ganhar a América. Ela é Camilla na vida e Colombina na arte, Colombina na vida e Camilla na arte, neste interpenetrar que transforma a atriz na personagem e injeta na personagem a seiva da atriz. O corpo que ganha as vestes do tipo encenado é nu de roupas mas prenhe de espírito. Na impossibilidade de a atriz despir-se de sua carne e de sua alma, ela se cede um pouco ao novo “eu” que a habita, não sem deixar de pegar um pouco dele para si. 
Camilla é, assim como o arquétipo de Colombina, pobre, fogoza e matreira. Na cena, ajuda a namorado Arlequim a proteger sua patroa e o apaixonado desta das garras do pai da mocinha. Na vida, desdobra-se entre vários amantes que ela respeita e ama com fogo e amor análogos. E é, como o arquétipo que alimenta em cena, ardilosa na hora de administrar tantos amantes. Este entremear de arte e vida emerge na mise-en-scène de Renoir, no deslizamento da câmera do palco onde desenrola-se a peça para os bastidores nos quais Camilla luta para defender as joias recém-ganhas do Vice-Rei da sanha do oficial espanhol (companheiro com o qual ela fizera a travessia da Europa à América); ou na casa de Camilla, transformada em palco, com seus tortuosos caminhos e inúmeras portas por detrás das quais ensaiam cantores, atores, guardam-se figurinos e escondem-se amantes. 
O filme se inicia como se fosse teatro. A cada abrir de cortinas sucede-se um quadro onde o acontecimento tem lugar. O teatrinho onde a troupe se apresenta é miniatura da casa-palco de Camilla, onde todos permanecem usando seus figurinos de teatro. Se lá Camilla torna-se a grande senhora, ela assume seu novo papel ainda com algo do espírito de Colombina: fogoza e expansiva, doce e romântica; pródiga de atenções para com seus apaixonados (todos). 
Anna Magnani constrói com maestria a mulher múltipla, ela que o fora cabalmente, na arte e na vida. Vemo-la tingida de corpo e alma do Sol da Itália, bela e forte como uma donna daquelas paragens. “Mamma Roma”, a metáfora de seu chão. Libertária como sua personagem de “Roma, cidade aberta”, hilária como a sua Gioia do impagável “Risate de gioia”, a encarar cantando as pedras do caminho, já que seu elemento era a felicidade. Em “Carruagem de Ouro”, Anna, ao se multiplicar, torna-se intimamente Anna. É uma alegria vê-la. 
O riso apesar dos pesares. Renoir ilumina seu filme com a luz dos quadros de seu pai. Emoldura as cenas, à guisa de quadros. Cria versões moventes do tocador de flauta adorável que o pai agigantou numa tela, coloca-os a dar cambalhotas no palco da commedia. Transforma quadros em telões de teatro. Coloca Renoir a conviver com a Commedia dell'Arte e mergulha um e outro nas melodias de Vivaldi. A mescla dá nova vida à tradição, inserindo nela o cinema, arte ainda tão jovem. Acima de tudo, apresenta a arte não apenas como metáfora da vida, mas como sua germinadora. 
Influências tão várias fazem brotar uma obra cheia de originalidade, alegre como os acordes das “Quatro Estações” que a abrem e a semeiam. Ensolarada, mas também agridoce, como se quisesse lembrar que Verão e Inverno sucedem-se incontornáveis no curso dos tempos.