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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

“A luz entre oceanos” (2016): sopro trágico ao drama familiar

Outro subtítulo possível para este artigo seria: aula magna de melodrama. “A luz entre oceanos” (The light between oceans), obra dirigida e roteirizada por Derek Cianfrance a partir de romance de M. L. Stedman, realiza à excelência o gênero nascido na França pós-revolucionária. 
O núcleo central da história é ocupado pelo lúgubre Tom Sherbourne (Michael Fassbender) e a luminosa Isabel Graysmark (Alicia Vikander). Tom é um lobo solitário que servira a Primeira Grande Guerra, donde voltara com marcas fundas, nunca totalmente explicadas ao espectador, mas intuídas, considerando-se a violência inaudita dos campos de conflito. 
Suponhamos que este blog é um romance folhetinesco, no qual os capítulos têm que por bem se ligarem uns aos outros para alimentar-se a conivência com o público, e pensemos em Tom como um irmão do fazedor de bonecas que Hobart Bosworth desempenha em Behind the door: homens cujas almas foram laceradas no front
Entretanto, uma diferença fundamental subsiste entre eles. Tom é herói melodramático estrito, a aceitar – qual Jesus Cristo – passivamente os desígnios do destino. Quando Isabel cruza o seu caminho, toma-a em casamento. A princípio a moça o leva pela mão. Depois ele lhe dirá que o entorpecimento adquirido ao longo de anos de violência o havia feito supor-se infenso à felicidade. O casal ruma a uma ilha remota e desabitada no Oeste australiano, onde ele se empregara como faroleiro antes das núpcias. 
O sentido simbólico da função não se deixa escamotear. Sobre os faroleiros, diz o Evangelho de Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz.” O homem sombrio usava a luz que possuía para iluminar os caminhos alheios; suprema abnegação. A missão, que lhe dá uma breve paga de felicidade, é, no entanto, minada pelos abortos consecutivos da esposa. Até que um dia aporta na praia o barquinho onde está a pequena Lucy, acompanhada pelo pai morto. 
O gênero melodramático não trabalha com surpresas: dali por diante sabemos que o casal tomará a menina como filha, malgrado a família que ela quiçá houvesse deixado atrás de si. Sabemos igualmente que a decisão intempestiva se desdobrará num futuro encontro entre a mãe biológica e a filha, e na crise de consciência do herói, obrigado, pelas convenções do gênero (espelhadas nas convenções milenares da Igreja), a caminhar sobre seus passos pregressos, devolvendo a filha à mãe verdadeira, mesmo que isso incorresse na destruição de sua família, e num novo – e desta vez incontornável – dilaceramento seu. 
“A luz entre oceanos” depura o gênero, ao multiplicar a catarse do público. Por meio de uma dessas coincidências comuns ao melodrama, Tom encontra – ao levar sua filha à pia batismal – uma típica heroína trágica (Rachel Weisz), a lamentar, enlutada e desgrenhada, sobre a lápide da filha cujo corpo ela nunca pôde enterrar. Descobrirá ali a mãe da menina que ele tomara por filha, e carregando consigo, dali por diante, o fardo da descoberta, novamente mergulha na escuridão para iluminar as duas malfadadas mães. 
“A luz entre Oceanos” prova que a distância entre a tragédia e o melodrama repousa sobretudo no tema. A tragédia volta-se aos assuntos do Estado, o melodrama, ao núcleo familiar. Tragédia popular, tem, como o gênero no qual se espelhou, como ponto de chegada a catarse: a expiação das paixões do público por meio da contemplação dos sofrimentos do herói. A diferença com relação ao gênero erudito do qual o melodrama bebe é que, enquanto na tragédia o público contempla o sofrimento de alguém maior que ele, no melodrama ele contempla o sofrimento de um igual, o que potencializa a sua identificação com a personagem. 

Tom é o bode expiatório bíblico, papel que no Velho Testamento cabia ao animal escolhido ao sacrifício pelo povo hebraico e israelense, o qual o Novo Testamento tomou como a prefiguração do auto-sacrifício de Jesus Cristo. Impotente diante do sofrimento da esposa que acabara de perder o segundo filho, aceita as súplicas dela e acolhe como sua a criança alheia. Defrontado com a verdade, se titubeia entre a felicidade de seu lar e a obrigação moral, é a esta que finalmente se inclina. 
Esses contornos gerais da ética melodramática servem de preâmbulo para uma constatação e um questionamento. 

A constatação – óbvia – é sobre como bons atores conseguem dar credibilidade a uma história. Michael Fassbender, Alicia Vikander e Rachel Weisz estão deslumbrantes como o trio sacudido pelas mãos do destino. Fassbender é dos poucos atores que resistem ao primeiríssimo plano. Seu rosto é paisagem que as brisas ligeiras ondeiam e a tempestade encrespa. Olhá-lo amoldar uma personagem – qualquer personagem – é tão deleitante e misterioso como ver a ação dos fenômenos naturais sobre as coisas. 
Vikander, ótima desde ao menos O Amante da Rainha (2012), adiciona ao seu frescor costumeiro um sofrimento pungente. E Weisz é Hécuba a chorar a perda da filha, é Medeia a clamar por vingança – ao perder a filha ela perdera também o marido, alemão que escolhera a Austrália por pátria, e que devido à Guerra fora perseguido pelos habitantes da cidade, num furor que, conforme vimos em Behind the door, derivara das Nações aos indivíduos. Ambas são mães, plenamente desculpáveis pelo público que com elas chora. História tão rasgada, desempenhada com tanta sinceridade, coloca o melodrama no status que ele sempre almejou: o de grande arte, apesar das suas raízes populares. 
Por fim, o questionamento: qual a função de um filme como esse nos dias de hoje? Para além da bela factura fílmica, sobretudo a fotografia grandiosa, a utilizar os elementos naturais como reflexos dos sentimentos humanos, qual a função de um filme que segue a risca a ótica melodramática; a ética cristã? Tal função pode, talvez, ser atrelada à relevância indelével que o gênero atribui ao núcleo familiar enquanto espaço primeiro de conformação do indivíduo, visando-se à criação de uma sociedade pautada pela integridade – malgrado os sacrifícios individuais que a integridade obriga.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

“Macbeth” (2015): a potência do sussuro

“Macbeth” ganha uma nova versão cinematográfica – a sexta, se nos fiarmos no IMDB –, conduzida pela batuta de Justin Kurzel e tendo como protagonistas Michael Fassbender e Marion Cotillard. 
Shakespeare, parece, nunca será uma má ideia. Sob o sol seguem desfilando pulsantes as torpezas que o bardo pôs diante das plateias populares que o aplaudiam, quatrocentos anos atrás. As trapaças, a ambição, o ódio, a violência. O autor é eterno porque o mal é eterno – eterno e sedutor, sob a luz da rampa como na tela do cinema. 
Amparado pela dupla excelente de atores que encabeça o elenco, este “Macbeth” torna-se obra memorável, mesmo que certas escolhas do diretor sejam discutíveis. Pulsa viva na tela, trazendo à baila os meandros da tirania, que ainda estende com força seus tentáculos, no Oriente e no Ocidente. Para isso, abdica do texto literal de Shakespeare em prol de soluções cinematográficas eficazes. 
Não se pretende, aqui, tecer a crítica sobre os elementos que afastam o filme da obra de Shakespeare. O interesse do “Macbeth” cinematográfico repousa, ao contrário, no que ele abdica do original. Um esforço curioso para os interessados na obra do autor é olhar o filme em diálogo com a ótima encenação da peça em cartaz no SESC da Vila Mariana, em São Paulo. 
A encenação paulistana – de Ron Daniels – dá com propriedade destaque ao elemento primordial do teatro, que é a palavra. Por mais que a ação fosse fundamental ao teatro de Shakespeare, ela era restrita ao espaço exíguo do palco do Globe Theatre, às encenações convencionais dos duelos de espada e a uma cenografia simbólica. 
Era a palavra que fazia o espírito do público voar em direção aos lugares imaginados pelo dramaturgo. Ron Daniels traz para a cena uma enxuteza nos elementos cenográficos que dirige ouvidos e olhos do público ao que é dito. 
E o que é dito reverbera. A ambição e a loucura de Lord e Lady Macbeth correm caudalosamente, como um rio que vem de emborcar o aguaceiro de uma tempestade. Brilham como a poesia, da qual a gente sorve mais as imagens e o ritmo do que a realidade poetizada. Daí a darmos de ombros para as alterações abruptas do estado de espírito de Lady Macbeth, cujas razões da voracidade primeira e da insânia final nos escapam. Porque Thiago Lacerda e Giulia Gam – o lorde e a lady paulistanos – têm o domínio da palavra, vibram-na bem, eles nos convencem plenamente. 
Já o cinema nos solicita por outras vias. Enquanto o teatro nos inquire com o dedo em riste, o cinema vem nos falar ao pé do ouvido. Porque os atores não têm o público diante de si, não precisam se impor pela voz para se fazerem ouvir pela última fileira da plateia. Marion Cotillard dá-nos, sussurrante, a lição. Sua Lady Macbeth convence porque ela é coerente com a substância do cinema: suave, rainha descida do trono da realeza até o chão-a-chão da humanidade. Tão real e – por isso mesmo – tão pouco shakespeareana. 
Tenho para mim que Shakespeare só sobrevive diante da objetiva cinematográfica quando ele deixa de ser Shakespeare. Especialmente o trágico, que tem como protagonista a hoje tão desacreditada “inexorabilidade do destino”. Quantas adaptações cinematográficas do bardo reputadas “fiéis” ao texto original não sobrevivem à prova do bocejo? À medida que as personagens cinematográficas se aproximam de nós e nos invadem, fazendo com que nos tornemos parte delas, elas nos obrigam a lhes demandar os porquês dos gestos que cometem. 
A versão de Kurzel, roteirizada por Jacob Koskoff, Michael Lesslie e Todd Louiso, retiram “Macbeth” do terreno do mito e inserem-no na realidade mesquinha de uma Escócia medieval muito próxima do nosso tempo. As bruxas horrendas do original, partidárias visíveis do demônio, dão lugar a fêmeas muito humanas. Quatro, da velha à criança de colo, representantes de todas as estações da vida, provas incontestes de que o mal está em toda parte, procria e se disfarça: o belo é o feio, o feio é o belo, já dizia Shakespeare. 
Do mesmo modo, o lorde e a lady, a quem a infâmia transforma em rei e rainha. As bruxas que surgem inopinadamente, no campo de batalha e no patíbulo, não são senão reflexos das almas dos protagonistas. O mal está dentro de cada um, basta adubá-lo. Ao pé do altar, lady Macbeth clama a Deus que a transforme, de mulher delicada, num guerreiro belicoso. O fardo da escolha será carregado pelo tempo que lhe resta de vida. 
Marion Cotillard, pequena e suave, dá muito bem relevo a esta dimensão da personagem, trazendo-a constantemente a lutar contra a sua feminilidade, vestindo a alma da carapaça do macho lutador. Seus solilóquios são mergulhados numa beleza triste, misturando-se, às palavras, os primeiros planos do rosto da atriz, no qual se imprime o torvelinho que lhe vai pelo espírito. 
Michael Fassbender é uma preciosa contraparte para Cotillard. Da inversão primeira dos papéis, em que a mulher imporá ao seu homem que rumo tomar, até os píncaros da tirania, com fortes laivos de loucura – toda esta gama de sentimentos é expressa com precisão pelo ator. 
O fraco do filme são seus elementos mais propriamente “espetaculares”, obrigação devida a essa nossa época tão afeita às pirotecnias do 3D. 
As cenas de batalha – os conflitos grafados naquele slow motion oriundo de “Matriz” – são de um estetismo vazio. E certas supressões são incompreensíveis: a metáfora da floresta que se move poderia ter sido mais bem explorada. 
Mas quem se incomoda com essas ninharias quando tem diante de si Cotillard e Fassbender, dois dos maiores artistas do nosso tempo? Seus duelos afetivos e intelectuais são de um brilhantismo ao qual estamos desacostumados, pobres diabos que somos, fadados a um cinema cheio de som e fúria significando nada... 
A dupla traz aos protagonistas uma dimensão importante de “Macbeth”: a paixão – na total acepção da palavra – que os move. Do delírio amoroso, à cólera, ao martírio, à irracionalidade, toda esta vasta gama de sentimentos está bem expressa neste “Macbeth”, ótima escolha para as almas adultas que ainda procuram algum conforto estético nas salas de cinema.