Mostrando postagens com marcador Anna Karenina. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Anna Karenina. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Reflexões de fim de ano sobre uma arte-indústria um tanto insatisfatória

A partir de hoje este blog passará a publicar textos de crítica cinematográfica do escritor - meu amigo - Chico Lopes, coisa que muito me honra, já que sou fã assumida desse olhar crítico que ele volta aos objetos que analisa. Seja bem-vindo, Chico!


por Chico Lopes


Neste fim de ano, amigos me mandam listas de seus filmes favoritos de 2011. Reinam aqueles títulos que os leitores já sabem quais, “A árvore da vida”, “Melancolia”, “A pele que habito”, “Cópia fiel”, “Cisne negro” etc. Não faço desse tipo de lista e me sinto meio marginalizado por não ser dado à prática, porque parece que todo mundo tem as suas. Vi muitos filmes, profissionalmente e às vezes com expectativas apaixonadas, como sempre, neste 2011. Mas nada me cutucou tão profundamente quanto fui cutucado nos anos 80 por coisas como “Blade Runner” e “Veludo azul” e nos 90 por outras tantas. Minha impressão é a de que o último grande filme que vi é mesmo de 2001, “Cidade dos sonhos”, de Lynch.
Mesmo Almodóvar me parece uma coisa já meio esgotada, em “A pele que habito”, filme de interesse (porque nada do que ele faz é desinteressante), mas com o raso (nunca me convenceu como ator, é mais um galã que outra coisa) Antonio Banderas como protagonista. Helena Anaya e Marisa Paredes, as mulheres do filme, são muito mais interessantes como atrizes e seus papéis mais sugestivos. A história é envolvente, mas termina com um furo de roteiro besta. É apenas razoável, o filme, e não merecia tantas loas como vem merecendo. Achei “A árvore da vida” uma transposição da banalidade dos filmes de família americanos, aqueles dramas que às vezes são bons e às vezes nos parecem demasiado insossos e sentimentaloides, para uma escala cósmica. Banalidade cósmica, portanto - e Malick é um sujeito presunçoso, um sub-Kubrick. “Cópia fiel” me fez ficar cansado dos filmes muito “falados” típicos do cinema rodado na França. Não suportei ver Juliette Binoche, sempre linda, e seu marido (ou não) estudioso de arte, falando sem parar. Estou cansado das afetações empoladas e áridas do “cinema de arte”, pensei. Não é bem assim, na verdade. “Melancolia”, por exemplo, pegou-me com força.
Mas a mediania chata domina. Estou com 59 anos e só mesmo quando atacado de auto-complacência extrema, me permito curtir fantasias adolescentes. Filmes cheios de “magia” e efeitos digitais, com ação frenética, me deixam menos empolgado que sonolento. A explicação: tédio. Enredos bizarros, personagens bonzinhos de um lado e malvados de outro, lutas intermináveis, cenários pasmosos, dragões, resgates espetaculares etc parecem bailar no vazio. É preciso perder todo e qualquer senso crítico para achar isso realmente mágico e envolvente. Magia calculada demais deixa de ser magia. E há algo no cinema da era digital que, paradoxalmente, sugere mais irrealidade escapista que poesia, caindo na monotonia do exagero. E como os atores andam ruins! Se os filmes são adolescentes, então, pega-se gente que talvez um dia aprenda a representar, mas, por enquanto, pura lástima...
Estarei ficando velho e blasé demais?, me pergunto. Isso me remete ao passado do cinema.


A PERDA DA INGENUIDADE

Converso com regularidade com um amigo que, quando se trata de filmes de passado, ao começar a descobrir tudo que andava saindo em DVD, ficou, tal como eu, empolgado. “Vamos ver agora cinema de verdade”, dissemos meio que em uníssono, acreditando piamente que nada foi melhor do que o cinema dos anos 30, 40 e 50 em Hollywood, com uma pequena concessão para os anos 60 e 70. Bem, tivemos sustos e mais sustos com produções horríveis ou dignas de esquecimento que nossas memórias indulgentes envolviam naquela aura de coisa maravilhosa e intocável, quase mística (também, eram apenas a mais vaga lembrança), e fomos vendo que certas estrelas e astros não sabiam representar e certos diretores eram uma empulhação e certos roteiros eram risíveis. Claro que certas coisas eram mesmo muito boas, e tanto melhor, mas já eram exceções também, pois a Nostalgia engana muito: o “filme antigo” parece vir sempre carimbado por um prestígio automático e não é assim. Basta vê-lo com os olhos de presente, que já não são mais ingênuos (mudamos muito, ora, e como não mudar?), e tudo fica relativo ou meio patético.
Todo saudosista de cinema é assim, de certo modo – quer que a qualidade de certas lembranças se perpetue menos pela qualidade indiscutível dos filmes que lhes deram origem do que por alguma razão pessoal, de fortes raízes emotivas. Saudosismo e complacência andam de mãos dadas: pelo fato de nos trazerem belas lembranças ou nos despertarem suspiros por um mundo que nunca foi daquele jeito e nem poderia ser, perdoamos filmes maus ou medíocres, ainda mais quando revivem o rosto de uma atriz amada ou uma trilha-sonora particularmente venerada. Mas, basta um pouco de lucidez e a embriaguez se desfaz. A operação de cálculo comercial, com sua chantagem emocional, seu melodrama caça-níquel, logo transparece. Ninguém que se puser a rever “Amores clandestinos”, por exemplo, poderá deixar de ver, depois de anos e anos de cinema, que Sandra Dee era bonitinha e má atriz, Troy Donahue era um ator ridículo, e que aquilo era um dramalhão comercial de Delmer Daves embalado pela música – extremamente popular naquele fim de anos 50 no Brasil – do compositor Max Steiner, autor de tantas trilhas famosas para Hollywood. Pior ainda, no filme, era o casal dos pais dos jovens lindinhos, Richard Egan e Dorothy McGuire. As bancas andam cheias de DVDs desse tipo, afora musicais esquecidos e outros itens embolorados.
Thomas Mann dizia, em “Morte em Veneza”, que “o anseio é produto de um conhecimento falho”. Verdade: basta que se as conheça precisamente, e as coisas perdem facilmente seu ar fantástico e encantador. No caso da Nostalgia no cinema, o anseio é derivado de visões parciais, fragmentadas, de deslumbramentos não claramente compreendidos quando aconteceram, e os filmes são mesmo assim – as emoções que produzem não podem ser dissociadas de estados de espírito datados, coisas que sentimos em certas épocas e que são irrecuperáveis. A ingenuidade morre, e de modo irreversível.
Com os olhos abertos e a carga infalível da experiência, fazemos a viagem retrospectiva ao adquirir o DVD este ou aquele, e não é mais aquilo de modo algum. Outro dia, encontrei numa banca um senhor de seus 60 e tantos anos que me jurava que havia determinada cena num faroeste de James Stewart, dos dirigidos por Anthony Mann, que ele venerava e que ele o comprara por isso. Daí viu que o filme não tinha tal cena, e ficou irritado, mas era possível que houvesse se confundido, que o filme fosse outro, e títulos na cabeça de espectadores comuns, bem como atores (nem se fale de diretores) se perdem e confundem. Tais confusões são comuns, e ainda mais porque a Nostalgia é um apelo especialmente para pessoas que já começam a fenecer e ver os dados da memória se embaralharem. No caso dele, não queria, teimoso, renunciar ao seu ponto de vista. O filme tinha que ter aquela cena, ponto final, e ela devia ter sido cortada na edição do DVD – não era ele que estava errado de modo algum. Também reclamou que o filme não era tão bom como lembrava, mas, quando lhe perguntei quando o tinha visto, disse que lá com uns vagos 15 anos. “O senhor mudou muito desde então, não é mesmo?”, disse, brincando. Pareceu perplexo. Não havia pensado nisso – que entre sua visão de adolescente e sua visão atual, de sexagenário, haveria no mínimo um abismo a levar em conta. Nada permanece intacto, nós mudamos, mas como é difícil para certas pessoas admitir essa coisa tão óbvia, no terreno das emoções! Imaginamos sempre que certos tesouros têm o dom da eternidade, não os percebemos condicionados ao tempo como são. Deliramos, mas ai de quem duvidar da validade do nosso delírio...
Fiz duas dessas viagens, recentemente, a dois mitos de cinema que aprendi a amar muito depois dos tempos em que já eram artigos fanados: Marlene Dietrich e Vivien Leigh. Nasci em 1952 e comecei a ver filmes ainda garoto, no início dos anos 60, e, na época, Marlene Dietrich e Vivien Leigh eram nomes célebres de gerações bem passadas. Faziam ainda cinema, mas como autênticas grandes damas envelhecidas e respeitáveis em produções esparsas, e de Leigh ainda vi, sem entender nada, o filme em que ela era uma senhora madura e decadente convivendo com Warren Beatty bem jovem em “Em Roma, na primavera”. Quando vi Marlene pela primeira vez, foi em alguma reprise do “Testemunha de acusação”, filme em que já estava madura, não era mais a estrela ímpar dos anos 30 (mas, dirigida por Billy Wilder, tinha uma boa interpretação).
Dei azar: peguei para ver “Marrocos”, o mítico “Marrocos” de 1930 com que Marlene pisou em Hollywood, dirigida por Joseph Von Sternberg, que já a tinha lançado no sucesso internacional de “O anjo azul”. Se não houvesse ficado tão irritado com a tremenda afetação e o ritmo morto da produção, talvez houvesse dado grandes risadas, tal o ridículo da história e das interpretações. O filme é de um tempo em que o cinema falado era ainda uma novidade e os diálogos têm entre si intervalos em que os atores ficam olhando uns para os outros por tempo longo demais, não há ritmo ágil e as réplicas não surgem com a enxutez com que nos acostumamos, são preenchidos com um langor abestalhado, porque vazio de significado. Bons atores talvez houvessem superado isso, mas Marlene não se preocupava em ser uma atriz, era uma estrela, uma escrava de “atitudes” e figurinos, e Von Sternberg abusou dessa sua condição de manequim peixe-morto e insolente por muito tempo.
Ela faz uma cantora, Amy Jolly, que chega a Marrocos com um passado obscuro, sobre o qual se pode especular, e se apaixona por um soldado da Legião Estrangeira que a aplaude num show de um cabaré decadente. Tudo é mero pretexto para Von Sternberg exercitar sua paixão pela fotografia (de Lee Garmes) e é de uma frivolidade estúpida, com Gary Cooper jovem, bonito e boçal parecendo mais objeto sexual do que Marlene, visto que é adorado por todas as mulheres que circulam pelo filme. Marlene, o que faz? Andrógina, vestida de paletó e gravata, dá um beijo numa mulher do público, tira uma rosa que estava com esta e a joga para o legionário Cooper. Por isso, o filme é considerado o máximo em ousadia, e acho que ninguém nem prestou atenção ao resto. Que, por exemplo, a paixão que ela tem pelo legionário é um primor de masoquismo e submissão, e no final ela até tira seus sapatos de salto para segui-lo, junto com mulheres árabes que seguem seus bravos guerreiros machões, pelo deserto. Se ele vai prestar atenção ou não a ela, parece pouco importar: é o supremo sedutor cafajeste, o homem, o dono da jogada, e a ela cabe se submeter com total cegueira e idolatria, é “apenas uma mulher”, ora. Tudo isso é assistido por um pintor milionário (Adolphe Menjou) que não tem aparentemente o que fazer e passeia pelo mundo e está em Marrocos não se sabe por que, e se apaixonou tanto por ela (ou teria sido por Cooper?) que incentiva todas essas atitudes, com a generosidade absurda do corno mais manso e inverossímil que já existiu na tela. O filme é lixo glamouroso, como a maior parte do que Marlene fez com Von Sternberg, e, a meu ver, há uma condescendência grande demais com esse tipo de produto até hoje. Marlene, com aquela beleza, claro que era objeto de culto, mas parecia encarar sua carreira de atriz como um apêndice de sua condição de estrela e nada mais.


Vivien Leigh, que era essa coisa rara – uma estrela lindíssima e uma atriz de alto talento – é outra história. Há algo de verdadeiramente trágico na vida dessa mulher, cuja beleza nos arrepia mesmo quando os filmes são melodramas absurdamente rançosos como “A ponte de Waterloo”, em que faz uma bailarina que, por passar fome na guerra, acreditando que o seu homem (Robert Taylor) morreu em combate (segundo o que lê num jornal que dá as baixas militares), vira prostituta, e um dia, quando ele volta, acha-se tão indigna dele que se joga sob caminhões bélicos. Era um desperdício colocá-la em filmes assim, mas Vivien era mesmo de um talento miraculoso e sobrevivia até a esse lixo sentimental todo. Teve uma carreira cinematográfica confusa devido à sua obsessão pelo teatro e por Laurence Olivier e fez filmes duvidosos em que só ela acabava valendo. É o caso de sua “Ana Karenina”, dirigido por Julien Duvivier em 1948, que só vi agora, depois de conhecer a mitológica feita por Greta Garbo em 1935 e uma mais recente (1997) feita pela atriz Sophie Marceau. A heroína de Tolstoi é perfeita para Vivien, mas o filme é muito morto e adapta o escritor de modo convencional, reverente e apagado. A versão existente no mercado, ao menos a que me chegou às mãos, está péssima em som e imagem, uma mutilação da fotografia de Henri Alekan. É, aliás, outro dos riscos desse mercado de DVDs clássicos que se instalou nas bancas: desconfiar da qualidade é preciso, porque todos vêm lacrados e não raro guardam defeitos revoltantes.


RECICLAGENS E RAPINAS

Acredito que, com os VHS e DVDs, tendo acesso a todo o passado cinematográfico, fomos aprendendo todos, cinéfilos ou críticos, a amar um cinema que não foi em absoluto o da nossa geração, nosso tempo, que nos chegou embalado no prestígio de eras recobertas por boa quantidade de “nobreza de antiquário” ou bolor. Os brilharecos do passado nos ofuscaram. Aumentaram a nossa cultura cinematográfica, mas também nos tornaram mais indulgentes e acomodados e às vezes até mesmo cegos. Os anos 60 foram violentamente desmistificadores, e os 70 fizeram também de suas misérias com os mitos românticos e os heroísmos e as hipocrisias do passado hollywoodiano, mas, quase como numa reação compensadora, meio que ressentida e vingativa, os 80 foram muito reverentes na reciclagem das velhas formas de fazer cinema, e aí a Nostalgia se instalou comodamente – foram revividos os policiais noir (“Corpos ardentes”, “Chinatown”), as aventuras de seriado (“Indiana Jones”) e toda a limitação dos filmes de gênero com o artificialismo das poses e estereótipos clássicos – o que pareceu atingir o ápice com o “néon-realismo” de Francis Ford Coppola em “Do fundo do coração”. De repente, referindo-se ao Cinema, exibindo-se repletos de citações e preciosismos saudosistas, os filmes ficavam como que eximidos de crítica, e o que houve foi, sob muitos aspectos, um passo para trás. Os 90, mais violentos, paródicos e cínicos, foram apenas reforçando defeitos de uma indústria cada vez mais predadora e cada vez menos preocupada com disfarçar sua cupidez e falta de qualidade, e aí já nem mais importava a reciclagem dos mitos e velhas formas. Desde então, os buracos terríveis da indústria só fizeram aumentar e o vale-tudo, contanto que dando lucro, começou a ficar insano.
Pauline Kael, a maior crítica de cinema que os EUA já tiveram, deixou de fazer crítica nos anos 80, não aguentava mais. Não sei o que pensaria, se viva estivesse, e ainda ativa. Como teria reagido a coisas como Adam Sandler, Mike Myers, Steven Seagal, Vin Diesel etc etc etc? O que é que estaria achando bom, hoje em dia?
Em todo caso, é dela o livro que recomendo para os que quiserem entender os mecanismos da indústria e como o cinema, mesmo o melhor cinema nostálgico, foi parar no cemitério da televisão ou se degenerou na mão de produtores cujo máximo interesse é o lucro óbvio e que fazem tudo para que o público fique à sua mercê. Com todo o aparato publicitário que está à sua disposição, esmagador, a verdade é que vencem a batalha, porque a publicidade é a grande sedutora de nossa época e quem acha que o público em geral está disposto a ser crítico se engana redondamente. Uma coisa empurrada à força, formulaica, pobre, estúpida, como a maioria dos filmes no momento é, pode ser um grande sucesso ou será um sucesso médio, mas ignorada não será. A estupidez dita as regras, o comércio descarado encontra receptividade no público e vai prosseguindo, que ninguém se iluda. Kael viu isso no fundamental “Criando Kane”, que saiu no Brasil pela Record. Todos nós precisamos ler e reler este livro.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da celuloide para a televisão e as ondas do rádio: Hollywood estende os tentáculos



"— Sabe de uma coisa?
— O quê?
Eu te amo.
— Eu sei.
— Beije-me como só você sabe.
Danado."

Planejei um começo todo diferente para esse post, mas, depois de ter acabado de ver "Annie" (1982), uma das coisas mais cativantes e inspiradas que já vi, sinto-me obrigada a mudá-lo. Mas como isso aqui não é uma tese (ainda bem), então não preciso me desculpar e posso logo continuar, por meio dessas linhas, a divertir-me com a carente e exuberante Miss Hanningan enquanto ela abre seu coração desdenhado para o galã de uma rádio-novela, recebendo emocionada as palavras que ele dirige à heroína.
Na verdade, este desvio não me leva para muito longe da estrada principal. Mesmo assim, retomemos o nosso rumo anterior. Mais tarde Miss Hannigan retornará.
...

No feriado carnavalesco, enquanto dava boas risadas vendo o trio Julie Andrews/ Mary Poppins e Eliza Dollittle cantando em uníssono o Supercalifragilisticexpialidocious no "The Julie Andrews Hour" (programa televisivo produzido pela ATV e distribuído pela ITC Entertainment entre 1972 e 1973), dei-me conta de como os domínios de Hollywood iam muito além das salas de projeção de dentro e fora dos Estados Unidos.

The Julie Andrews Hour 1: Julie canta com as personagens que criou

Sabe-se que, a partir dos anos 50, com a rápida penetração do televisor nos lares dos norte-americanos, a indústria do cinema começou a perder terreno. Porém, ela acabou reconquistando o equilíbrio. Para isso, contribuíram os programas televisivas conduzidos por movie stars como a já mencionada Julie, Doris Day (The Doris Day Show, CBS, 1968-1973), Jack Benny (The Jack Benny Program, CBS, 1950-1964), Lucille Ball (I love Lucy, CBS, 1951-1957). Até mesmo o diretor Alfred Hitchcock foi o "anfitrião" dos norte-americanos no Alfred Hitchcock Presents - série de suspense que, a contar pelo episódio a que assisti alguns meses atrás (The Avalon Emeralds, 1959), parece ter sido fascinante. Esses artistas, consumidos com avidez pelo público desde que passaram a ser comercializados em revistas especializadas (o que ocorreu em 1911 com a Motion Picture Story Magazine), tinham suficiente credibilidade para conquistarem os olhares dos adeptos da nova mídia.

Essas pérolas começaram a ser redescobertas com o advento do Digital Video e do DVD - que são, junto com a internet, duas das grandes invenções do século XX. Sem esses aparatos seria praticamente impossível que o público comum tivesse acesso à Julie Andrews dizendo, numa cômica acidez, que Twiggy desempenhou no cinema o papel que ela - Julie - criara no teatro em "The Boy Friend": coisa com a qual "eu logicamente estou acostumada", diz Julie. É no mesmo tom que Julie Andrews "reclama" da bilheteria de "Star!" (1968), um fascinante e desdenhado filme seu: "Se alguns de vocês conhecem esse número de 'A Estrela' - e, a contar pelo retorno de bilheteria, suponho que poucos conheçam...", continua ela. Se as caixinhas desses shows não fossem lançadas às centenas nos Estados Unidos, eu não veria a Ginger Rogers dançando com Jack Benny um pot pourri dos números musicais que dividira com Fred Astaire ao longo de 10 filmes, tampouco teria podido imaginar uma relação entre tal número e o pot pourri das mesmas canções compartilhado por Massina e Mastroianni em "Ginger e Fred" (1986). Tampouco teria visto Gene Kelly e Fred Astaire cantando, num dueto, a história de suas vidas (cinematográficas) noutra relíquia que descobri por acaso numa loja da cidade, "Gene Kelly: an American in Passadena". Aliás, a intertextualidade com o cinema já começa no título do show, alusão a "An American in Paris" (1951) - "Sinfonia de Paris" no Brasil, filme que arrebanhou 6 estatuetas do Oscar em 1952.

Frank Sinatra foge de Betty Garret em "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1950).

As séries televisivas comandadas por astros e estrelas de Hollywood bastante frequentemente (para não dizer sempre) estendiam às casas das pessoas a persona artística deles. Quase nunca havia questionamento e, se havia, isso invariavelmente era feito por meio de uma piscadela de olhos, à maneira das revistas cinematográficas que reproduziam as fofocas criadas pelos estúdios. Julie Andrews não pôde levar para a frente das câmeras as personagens que tornara célebres no cinema, diziam os estúdios. Então, lá está Miss Andrews dizendo isso para milhões de norte-americanos enquanto os faz conhecer sua versão de Eliza. Do mesmo modo, Frank Sinatra, o rapazote que temia as mocinhas em películas como "Marujos do Amor" ("Anchors Aweigh", 1945), "A Bela Ditadora" ("Take me out to the ball game", 1949) e "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1949), conta a Gene Kelly (que, nesses filmes era o rapaz que atraía a mulherada) finalmente ter conseguido virar o jogo.

Gene Kelly e Frank Sinatra em Gene Kelly: An American in Passadena (1978),


show em que ambos revisitam musicalmente os musicais em que trabalharam juntos.

E como Frank virara o jogo, afinal, todos sabiam que ele se casara com a belíssima Ava Gardner, a mulher passional e intensa de "Show Boat" (1951) e de "A condessa descalça" ("The barefoot condessa", 1954).

Frank e Ava Gardner

Cinema e televisão, realidade e ficção, verdade e mentira intercambiavam-se facilmente na Hollywood clássica. Como não se podia precisar onde começava uma coisa e terminava a outra, o público tinha acesso a uma extensão do cinema onde quer que estivesse: no dentista, lendo uma revista cinematográfica; em casa, vendo um programa televisivo, ou até mesmo ouvindo um programa de rádio. E é aí que chamamos Miss Hanningan para ocupar novamente o primeiro plano.


Veio a calhar eu ter conhecido "Annie" ontem. O lindo musical dirigido por John Huston (diretor do Falção Maltês, creem?) jogou luzes sobre um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
Surpreendi-me ao descobri na internet as gravações de rádiofilmes radializados à população norte-americana dos anos 30 aos 50. No entanto, não tinha ideia do papel que eles desempenhavam na sociedade até que vi a senhora Hanningan de camisola, no conforto de seu quarto, abraçada ao rádio que transmitia um desses shows.


Embora as primeiras transmissões radiofônicas datem do ano de 1906 nos Estados Unidos e de 1922 no Brasil, o rádio verdadeiramente atingiu projeção comercial nos anos de 1930. No final desta década, duas séries faziam sucesso entre os norte-americanos, The Screen Guild Theater e Lux Radio Theater. Ambas apresentavam adaptações radiofônicas de filmes, as quais costumeiramente tinham como protagonistas os mesmos artistas que criaram os personagens nas telas (artistas que chegavam a ganhar $ 5.000 por aparição).
Lux Radio Theater deu início ao negócio em 1934, quando a empresa ainda estava localizada em Nova Iorque. O programa, transmitido até 35 pela NBC e até 54 pela CBS (a NBC reassumiu comando do mesmo de 54 a 55), era apresentado pelo diretor ficcional Douglass Garrick, personagem interpretado por John Anthony, e Peggy Winthrop, a garota Lux, interpretada por Doris Dagmar (descobri tudo isso na entrada da Wikipedia referente ao programa, entrada que me pareceu digna de credibilidade, já que me remeteu aos arquivos sonoros de dos programas da série de 1936 a 1955). O espetáculo era assistido por um público de estúdio. Além disso, havia uma sessão roteirizada em que Garrick conversava com os artistas principais - há uma fascinante charge disso em "Annie", quando Daddy Warbucks tenta desajeitadamente dar conta do script que lhe foi posto nas mãos e acaba, sem querer, endossando uma marca de pasta de dente... Cecil B. DeMille assumiu a apresentação do programa em 1936, pouco depois do show ter se movido para Hollywood, comandando-o até 1945. Nomes como Leslie Howard substituiram-no quando ele viajava.

Público em frente à "Hollywood's Lux Radio Playhouse", situada no n. 1615 da rua North Vine.
Fonte: http://otrarchive.blogspot.com/2009/07/lux-radio-theater.html

A certa altura o show passou a receber um público externo. Como mostra a fotografia, os lugares eram disputados...


The Screen Guild Theater foi ao ar de 1939 a 1952, inicialmente pela CBS, a partir de 1848 pela NBC e de 50 a 51 pela ABC. Na imagem abaixo, vemos Jack Benny, George Murphy, Joan Crawford e Reginald Gardiner apresentando o show de 8 de janeiro de 1939.

Fonte: http://www.joancrawfordbest.com/

Joan Crawford é figura carimbada nesses shows. Apenas para a Lux Radio ela apresentou, ao lado de Spencer Tracy, uma adaptação de "Anna Christie" (Greta Garbo, estrela do filme da MGM, nunca participou de nenhuma dessas adaptações), da "Casa de Boneca" e de "Mary of Scotland" (10/5/37) - apenas para citar algumas.
Cary Grant e Rosalind Russel repetiram sua parceria numa versão adaptada do impagável “His girl Friday” (em 30/9/1940, mesmo ano da película, aliás). Dividiram novamente o microfone em “Take a letter, darling”, adaptado do filme em que Rosalind dividiu a cena com Fred MacMurray (filme datado de 1942 e adaptação de 9/11/42). Também coube à atriz o papel da russa mais do que direta de "Ninotchka" (21/4/1940), eternizada na telona no desempenho magistral de Greta Garbo.
Lillian Gish encarou o microfone no suspense “Marry for Murder” (em 9/09/1943). Em 6/5/1946, Ginger Rogers foi nas rádios a “Bachelor Mother” que fizera nas telas (lindo filme, aliás). David Niven, seu galã no cinema, acompanhou-a na empreitada. Em 1 de outubro de 1939, a atriz juntou-se a Clark Gable em “Imperfect Lady”, além de ter sido protagonista numa história de suspense denominada "Vamp till dead" (11/1/1951), que estou morrendo de curiosidade de conhecer. Carole Lombard, a Miss Clark Gable, juntou-se a James Stewart naquele mesmo ano no romance “Tailored by Toni”, e se juntou a Fred MacMurray em 9/11/1942 para radializarem “True Confession” (14/4/41), adaptação da produção em que ambos dividiram a cena em 1937.

Carole Lombard chiquérrima nos estúdios da CBS. A atriz também tomou parte na radialização de "Mr. e Mrs. Smith", de Hitchcock (veiculado em 1941), "My Man Godfrey" (em 1938); "In name only" (em 1939) e "The moon is our home" (em 1941).
Fonte: http://carolelombard.org/november-contest-carole-lombard-old-time-radio-shows

Orson Wells - que, segundo consta, levou ao desespero os norte-americanos ao anunciar pelo rádio que os extraterrestres atacavam a Terra (na verdade, ele apenas radializava uma versão da “Guerra dos Mundos”) – divide com Lucille Ball e Hedda Hopper as honras da casa em 18/2/1940 quando apresenta “Dinner at eight”, versão do sucesso all star picture dirigido por George Cukor em 1933.

Orson Wells nos estúdios da CBS


James Stewart no estúdio da NBC em "The Six Shooter. The return of Stacy Gault" (1953)
Fonte: http://www.examiner.com/x-27356-OldTime-Radio-Examiner~y2009m11d8-Sometimes-blundering-sometimes-shooting-Oldtime-radio-listening-8-November

Até mesmo as produções eminentemente cinematográficas de Hitchcock foram disseminadas pelas ondas do rádio - foram adaptados “Spellbound” (8/3/1948) e “Notorious” (6/1/1949), por exemplo – neste último, Ingrid Bergman repete o papel que havia desempenhado na película de 1946. Aliás, foi por intermédio de Miss Bergman que descobri toda essa preciosidade na internet, por meio de um usuário do You Tube que anexou entre seus favoritos a versão radiofônica de "Anna Karenina" (4/10/1944), em que Bergman e Gregory Peck atuam em conjunto. Ingrid também levou ao rádio Paula Alquist e Ilsa Lund, em versões radiofônicas de "Gaslight" (1946) e "Casablanca" (26/4/1943). E agora interrompo a lista, que não tem nenhuma intenção de ser exaustiva, considerando-se que The Screen Guild Theater apresentou 527 episódios e o Lux Radio Theater, 926... (os links levarão os interessados para a parte deste material disponível na web).
Que incrível descoberta! Considerando meu entusiasmo ao pôr os ouvidos nesse material, imagino como não seria nos idos de 1930, 40 e 50, quando o público abria as portas de casa para receber seus ídolos da tela e podiam até levá-los para a cama, como fez Miss Hanningan. Se na sala escura do cinema os espectadores se dissolvem na tela de projeção, como não devia ser quando, no aconchego de seu lar, chegava-lhes aos ouvidos as vozes de seus artistas preferidos - vozes que lhes eram tão familiares. Que sensação de intimidade essas vozes não lhes transmitiam? As adaptações radiofônicas das produções cinematográficas eram mais breves que os originais - 10 minutos, 25 minutos, 1 hora. Mas, que efeito não deviam causar quando eram somadas à memória visual que o público tinha das películas! Que empolgante ter o apoio das vozes queridas dos artistas para trazer à tona as imagens dos filmes. E que divertido passatempo não devia ser comparar dois artistas no desempenho de um mesmo papel!

Lurene Tuttle e Rosalind Russell em "The Sisters", radializado noutro programa - Suspense (CBS, 1942-1962) em 1948.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Suspense_%28radio_program%29

Em 1950, Gloria Swanson e Jose Ferrer radializaram noutro programa de rádio, The Big Show, um tratamento de 10 minutos de uma de minhas screwball comedies favoritas, "Twentieth Century" (1934), em que John Barrymore e Carole Lombard dividem brilhantemente a cena. Gloria está tão deliciosa quando Carole no seu desempenho da atriz teatral Lily Garland, outra pobre Galateia nas mãos de um cruel Pigmalião... A adaptação de "Anna Karenina" estrelada por Bergman e Peck tem pouco mais de 29 minutos. A trama gira em torno da leitura, ao filho de Anna, de uma carta que ela escrevera ao conde Vronsky depois de começar a ser desdenhada por ele. A estratégia é engenhosa, pois os flashbacks da vida amorosa de ambos aproveitam muitas das linhas do roteiro original. Aqui podemos ver as diferenças entre as performances de Ingrid e Greta Garbo, duas grandes atrizes que, apesar de conterrâneas, nunca se bicaram muito. Greta Garbo é eloquente, grave. Ingrid é extremamente simples. Impossível escolher qual a melhor. Logo mais, vou me deleitar com a leitura que Rosalind Russell - outra de minhas atrizes favoritas - faz de "Ninotchka".
Em "Tailored by Toni", James Stewart, com aquela sua delicadeza inigualável, diz palavras doces a Carole Lombard. Quantas mulheres, além de Miss. Hanningan, não abraçaram e beijaram seus aparelhos de rádio ouvindo declarações de amor semelhantes?... Haveria melhor convite para levá-las ao cinema para que continuassem a cena de amor no escurinho da sala de projeção - tendo pertindo de si, não só as vozes, mas também os rostos dos galãs? Para isso, ali estava o apresentador do programa, que, solícito, indicava aos ouvintes quais filmes dos ídolos estavam em cartaz. Impossível o espectador ser mais enredado. Eu que o diga...

domingo, 7 de junho de 2009

A última fotografia de Greta Garbo (1990)


Aí está ela, aos 84 anos, flagrada antes da última visita que faria ao hospital, de onde não mais sairia. Greta Garbo, Garbo para seus inúmeros fãs – chamamento masculino que parecia tão bem caber à figura independente e forte da atriz. Ou então, simplesmente Greta, para esta brasileira que não cansa de ver seus filmes e trata tudo o que lhe é familiar com a mesma sem-cerimônia.
Greta é a atriz que mais me fascina. O motivo não é difícil de explicar: ela é a metáfora do cinema clássico, e eu sou irremediavelmente apaixonada por ele, como esse blog deixa patente.

A maestria com que Hollywood tomou a desajeitada mocinha sueca e transformou-a no epítome da sedução e do mistério é digna de nota, pois assim como o aparelho que usou para lhe corrigir os dentes e o lápis com que lhe aprofundou o olhar, a indústria do cinema moldou os gestos e atitudes da moça. Greta Gustaffson, a européia plebéia, transformou-se na “Divina Garbo”, que não queria nada além de “To be alone”. A imagem da mulher inatingível que Greta mantinha na imprensa, ao fugir das câmeras, viajar e hospedar-se sob pseudônimos e se recusar a dar entrevistas, encontrava seu eco nas personagens que desempenhava. Que o diga sua entrada em cena no belíssimo “Anna Karenina” (1935), circundada por um manto de névoa o qual transferia à musa a sua efemeridade. E são tantos outros os exemplos: a bailarina de “Grand Hotel” (1932), última personagem a ser apresentada ao público, solitária, melancólica e incompreensível – sintomaticamente, o “I want to be alone” é repetido algumas vezes por ela durante a película; ou Marguerite Gautier da obra prima “A dama das Camélias” (1936), cuidadosamente desvelada ao público enquanto está dentro do coche que a levará até o teatro e até o próximo pretendente.
Ao falar sobre “Ama-me esta noite”, referi-me a uma formulação lapidar de Walter Benjamin, para o qual o artista deve representar-se a si mesmo em cena. Aqui, eu complementaria que esse “eu” colocado defronte aos olhos do público é, antes de tudo, uma criação. Quem sabe como realmente era a menina Gustaffson? O que ficou foi Greta Garbo, a bela, esquiva, sedutora e andrógina Miss Garbo, que raramente era premiada com o amor de seus pares românticos ao final de seus filmes, e que, curiosamente (ou não), viveu, durante toda sua existência, uma vida amorosa complicada e dúbia.
Poder-se-ia dizer que nenhum de nós é senão criação do momento e lugar onde vivemos, mas há algo de sádico que circunda a criação de Greta Garbo e de tantos outros astros e estrelas fabricados pela indústria cinematográfica, especialmente aqueles encarregados de tipos exóticos. Sádico porque esse mundo de faz-de-conta, de sombras numa tela branca, é, paradoxalmente, mais real que o nosso dia-a-dia. Greta sentiu o peso do “eu” que lhe criaram. Esta grande atriz, de uma intensidade dramática impar, temia envelhecer e, assim, perder aquilo que mantinha em pé sua imagem de deusa, imagem sem a qual a Hollywood daqueles tempos supunha não poder viver. No entanto, infelizmente sua maturidade como atriz chegou juntamente com o desgaste do tipo que lhe foi criado, e ela se viu obrigada a abandonar as telas aos 36 anos. Greta viveu mais quase 50 anos, todos eles para negar o “eu” que seus filmes lhe imprimiram – essa fotografia é a prova disso.

A Greta Garbo criada por Hollywood