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domingo, 28 de abril de 2019

Secret in their eyes/Olhos da Justiça (2015) e a cultura do medo

A relação de afeto que tenho com o cinema por vezes se superpõe ao meu lugar de analista. Por exemplo: demorei quatro anos para conseguir assistir à versão norte-americana de "El secreto de sus ojos" (2009), filme que tem para mim uma importância simbólica, já que me descortinou o cinema argentino; e que tanto amo ao ponto de tê-lo abordado aqui duas vezes, exceção absoluta no que toca ao blog
Uma versão de um filme invariavelmente carrega o ônus do original. Se ela recupera uma obra-prima, torna-se de saída uma empreitada temerária, dado o risco de não conseguir ombreá-la. É o caso aqui. Guillermo Francella (o deliciosamente irônico Pablo Sandoval da obra original) já antecipara que a versão se tratava de obra anódina. Longe de ser ruim – trata-se de uma produção decente, com um elenco estelar, dez vezes mais cara que a original ($19.500 milhões contra os $2.000 milhões) –, a obra padece daquilo que em inglês se classifica como: “to miss the point”. 
Exemplo mais cabal disso é a subutilização daquilo que é mote do thriller de Campanella: os olhos que se traem; num só tempo referência literal aos amantes malogrados, que lidam de diferentes modos com a desilusão amorosa, e metáfora do olho da câmera, que oferece ao espectador uma janela para o mundo – janela ambivalente, trucada, feita de retalhos, conforme a insistente escritura e reescritura da história, realizada por Benjamín no fio da obra, não deixam mentir; quando não, o olho fetichista da câmera, a transformar o visto em objeto de culto. 
Os contornos do thriller são decalcados segundo a obra original (a versão dá os créditos do roteiro a Juan José Campanella, o roteirista/diretor do filme original, e ao autor da obra literária da qual este filme foi depreendido, Eduardo Sacheri): há um caso sórdido de estupro seguido de morte, que assombra os envolvidos por um carrada de anos. Eliminada a metáfora do olhar, com todas as suas ricas imbricações, a versão norte-americana oferece-se como um thriller comezinho. O corpo da obra de Campanella jaz, assim, sem alma – por isso é acertado o título em português, “Olhos da Justiça”, em detrimento da tradução literal do título da obra em espanhol, utilizada na versão norte-americana. 
Todavia, mais produtivo que elencar os defeitos da versão seria, penso eu, entendê-la no contexto em que foi feita, a que questões ela responde e que artifícios utiliza para tal. 
A obra é dirigida por Billy Ray, que é diretor bissexto, mas escritor de carreira mais extensa, responsável pelos roteiros de thrillers de cepas diversas: da obra baseada em fatos reais “Capitão Phillips” (Paul Greengrass, 2013), à distopia adolescente “Jogos Vorazes”, ao suspense psicológico “Plano de voo” (Robert Schwentke, 2005). 
Ray constrói um roteiro funcional, apoiado intensamente no páthos – abre-se pouco espaço para os respiros cômicos que são a alma de “El secreto de sus ojos”, esta obra em que o riso e a dor sublimemente se misturam. 
Uma modificação fundamental na trama, responsável por sua incontornável melancolia, é a introdução da vítima no núcleo central do protagonista. A Liliana Coloto de Campanella é uma personagem fantasmática, olhada pelo filtro de Benjamín, criado, por sua vez, a partir da narração idílica de Ricardo Morales, o marido desolado da vítima. A ficcionalização e o distanciamento transformam Liliana na substância etérea na qual Benjamín projetará Irene, o seu amor recalcado. Irene e Liliana se misturam, assim como se misturam, na montagem, os olhos do criminoso e do homem apaixonado – toda a dimensão fetichizante do olhar e do olho da câmera presentes nesta construção. 
“Olhos de Justiça” despe-se das metáforas em prol da literalização mais sórdida. O homem estranho que perde a esposa, no thriller de Campanella, torna-se Jessica Cobb (Julia Roberts), a policial colega do protagonista Ray Kasten (Chiwetel Ejiofor), e a esposa recém-casada é transformada na virginal filha de Jessica, estuprada nas vésperas de partir para a universidade. 
 Situada numa “América” imediatamente posterior aos ataques terroristas de 2001, “Olhos de Justiça” suplanta a ditadura argentina pela ameaça árabe. Compõe, portanto, a seara de filmes rodados desde antes do episódio, calcados no terrorismo, a exemplo de “Nova Iorque Sitiada” (Edward Zwick, 1998). O "outro" é desde sempre olhado pelos States como inimigo. Malgrado o distanciamento temporal do “11 de Setembro”, a obra de Billy Ray não consegue lançar ao episódio uma visada perspectiva, seguindo a atribuir a culpa do crime estritamente aos árabes. 
Embora beire o inverossímil, a trama procura se explicar em detalhes: o estuprador é um árabe informante da polícia, frequentador da mesquita que é célula de uma organização terrorista; acobertado por um policial da organização de Ray Kasten – o qual queima provas no intuito de eliminar suspeitas sobre o estuprador, em nome de uma causa maior: a libertação dos EUA da “ameaça árabe” (hélas...). Estamos aqui, como se vê, mais próximos de “Duro de Matar” e tramas policialescas dicotômicas do tipo do que de “El secreto de sus ojos”. 
Sem ter conseguido se tornar um blockbuster, “Olhos de Justiça” reproduz o modus operandi de thrillers do tipo. Tem dificuldade, no entanto, de criar o par romântico que é parte da sustentação do gênero. A eliminação da metáfora do olhar denota um problema estrutural da trama, que é a completa falta de química entre Ray Kasten e Claire Sloane (Nicole Kidman). Há uma insistência verbal num amor que perpassa uma década, mas o público não enxerga qualquer faísca. Por isso, quem sabe, o filme não se fecha na promessa de um enlace entre ambos, como a obra original, mas sim numa despedida - Clair novamente retornando à casa e ao marido seguro, embora não o ame. Porém, lamentavelmente não faz diferença ao público; o casal não convence. 
A obra é toda banhada por uma melancolia imensa, que não abre espaço para qualquer sopro de luz. Uma ótima Julia Roberts – de longe quem se sai melhor no drama – sofre uma incontornável culpa por ter imposto à filha a ida ao evento do escritório no qual a menina acaba por conhecer o rapaz que viria a persegui-la, a estuprá-la e a matá-la. Flashbacks nos mostram a jovem cheia de vida, a anunciar à mãe incrédula que ela “acabara de encontrar alguém”; a nutrir com a mãe uma relação umbilical que beira a patologia. Se a polícia é corrupta, a única chance de punição passa pela violência, imposta pelas próprias mãos desta mater dolorosa – patenteada, na trama, por uma surpreendente sequência final que se passa longe das vistas do público. 
A que questões prementes dos Estados Unidos "Olhos da Justiça" responde? Ao seguir voltando olhos suspeitosos aos árabes – o eterno “outro” –, ao articular as questões a partir da dicotomia lar seguro/ rua perigosa, este thriller reinsere na pauta a cultura do medo, aderindo, à maneira de "Nascimento da Nação" (Griffith, 1915), aos cânones do melodrama clássico, âmbito do “Home is where the heart is”* (que, aliás, é tema de um ótimo livro sobre o melodrama no cinema norte-americano). A “casa” sendo, neste contexto, entendida como o lar de Jessica Cobb – quando não o seu ventre... –, o único espaço de proteção de sua filha; e, num sentido lato, tomada como metáfora dos Estados Unidos, em sua luta recorrente para se ver livre daquele que é diferente, classificado de saída como o “outro” invasor. Dois anos antes de Trump, “Olhos da Justiça” prenuncia-o. 

*"Home is where the heart is”, studies in melodrama and the woman’s film. Edited by Christine Gledhill. London: BFI Publishing, 1987.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O feminino nas telas: “Lady Macbeth” (2016) e “O estranho que nós amamos” (2017)

O blog hoje trata de um tema candente desde que notórias figuras de Hollywood (a exemplo de Meryl Streep) clamaram pela igualdade entre os sexos, no que toca ao protagonismo das fitas. Um levantamento por alto demonstra o papel no mais das vezes de coadjuvante desempenhado pelas mulheres nas telas, a figurarem como musas de protagonistas machões (daí à busca, para compor os castings, de fêmeas com as caras e os corpos requeridos pelos editais de moda, logo, jovens e magras). As perguntas acéfalas que jornalistas tecem às atrizes nos tapetes vermelhos apenas vêm a corroborar o papel de figura decorativa atribuído ao “belo sexo” – epíteto tão mofado quanto duradouro. A indústria do cinema apenas repercute o estereótipo – como microcosmo social, reproduz nos filmes os jogos de poder em voga na sociedade.
Daí à relevância de “Lady Macbeth” (William Oldroyd) e “O estranho que nós amamos” ("The Beguiled", Sofia Coppola), filmes de altissonante presença feminina. De protagonismo inequívoco feminino, questionamo-nos? O segundo mais que o primeiro, talvez.
Caminhemos a passo. “Lady Macbeth” é uma produção inglesa que adapta Lady Macbeth de Mtsensk, escrito Nikolai Leskov em 1865 (romance que é, por sua vez, vazado ao gênero operístico por Dmitri Shostakovich, denominada a ópera Lady Macbeth do distrito de Mtsensk, em 1934). O enredo é trasladado da Rússia natal aos prados ingleses – panorama de amplitudes largas, ventos fortes e tons terrosos que servem de expressão à alma resoluta e turbada da protagonista. Esta contemporânea Lady Macbeth traz em si, como a protagonista de Leskov e Shostakovich, o signo da desmesura que se transforma em tirania de que é dotado a personagem primordial, saída da pena de Shakespeare.
O encaminhamento dado à ação merece uma reflexão mais ponderada. Porque o enxerto da história, da Rússia czarista a uma Inglaterra possivelmente vitoriana (poucos dados contextuais nos são oferecidos) acontece de modo algo questionável. No romance está em jogo o cerceamento feminino imposto por uma sociedade patriarcal inserida num regime extremamente excludente, de abismo social profundo. Não tive contato com o texto de Leskov, mas a montagem operística – exibida em première noutro contexto tenso, o regime stalinista – traz com força os meandros sociais para o cerne do drama. Exibida numa época ainda áurea do Teatro Municipal de São Paulo, em meados do ano passado, por uma companhia e um regente russos, ficou clara a conotação política da obra: Shostakovich faz a crítica social impregnar-se na técnica, transformando a sua ópera num pastiche da grande ópera ocidental (pagou caro por seguir a trilha da música de vaudeville e da dissonância anárquica, porque foi logo rotulado por Stalin de inimigo da nação, apenas se redimindo anos mais tarde, ao escrever sua 5ª Sinfonia, de rasgado patriotismo).
O filme de William Oldroyd perde força ao diluir o contexto histórico. Cria-se de saída uma atmosfera agoniante, de aprisionamento e silêncio. Acompanhamos o percurso de Katherine desde o matrimônio, num templo opressivo que serve de metáfora ao lugar social ocupado pelo marido nobre. Impedida de sair de casa, vigiada pelo marido, sogro e empregada e sem ver o seu casamento consumado, a jovem transforma-se numa neurótica que nada deve às pacientes de Freud, a corar frente aos trabalhadores braçais que labutam para o esposo, invejando em silêncio a liberalidade carnal com que eles tratam a sua empregada. Minha narrativa é muito oriunda da inferência, já que o roteiro (de Alice Birch) pouco explicita – e mesmo excelente, a atriz protagonista (a recém saída da adolescência Florence Pugh é, como arvorou a crítica, mesmo um deslumbramento) não dá conta de preencher os seus furos.
Tique incontornável da cinematografia contemporânea, a vagueza planta aqui má semente, já que acaba por esfarelar o sentido crítico da obra original – plenamente aproveitado por sua versão operística. Katherine finalmente encontra a realização sexual nos braços de um daqueles reles (no sentido moral, bem entendido) operários, rolando a ladeira do desvario desde a plenitude. A leitura matizada que dela a princípio faz a câmera (afinal, a mulher é fruto da exploração não só de sua classe social – já que nascera pobre e fora “comprada” pelo marido, tal e qual estrita mercadoria como de seu gênero, historicamente vilipendiado) descamba, a partir de meados do filme, numa denuncia de viés consideravelmente moralista dos crimes que ela passa a cometer, como se eles tivessem caráter unicamente passional.
O desdém ao contexto histórico resvala para a incompreensão das relações de poder em jogo então. Mortos o sogro e o marido, chega à trama, como um deus ex machina, um garotinho negro trazido pela mão da avó – filho bastardo que o marido assumira em surdina, provavelmente oriundo da relação que ele tivera com uma escrava. O conhecimento da execrável dominação do elemento negro pelo elemento branco torna incompreensível a relação que se estabelece entre a patroinha, a criança e a avó; em que a mulher negra exerce sobre a branca uma manipulação inexplicável historicamente, a menos que recuperemos leituras enviesadas da história, a exemplo daquela feita por Griffith em “Nascimento de uma nação” (1915) – que de modo pusilânime inverte a chave do preconceito, transformando negros em dominadores e brancos em dominados.
Este conhecimento contextual é elemento que comparece com força em “O estranho que nós amamos”, versão de Sofia Coppola à obra rodada por Clint Eastwood em 1971 (que não vi, portanto deixo de lado, aqui). Como o mencionado “Nascimento de uma nação”, o filme se desenrola durante a Guerra de Secessão. A conflagração é trazida para o cerne do filme, embora se passe para além dos portões do internato administrado por Miss Martha (Nicole Kidman), no Sul dos Estados Unidos. Coppola lê com sensibilidade (o roteiro é seu, baseado naquele rodado por Eastwood) a introdução do elemento masculino – viril e belicoso – entre sete mulheres que o advento da guerra abandonara ao Deus dará.
O filme abre-se entre os bosques verdejantes e o pórtico imponente da casa na qual em breve adentrará o soldado ianque Mc Burney, que, ferido, abandonara o batalhão junto do qual lutava, inimigo dos sulistas. O filme não se furta a construir desde o início a tensão, pela trilha sonora que lê a contrapelo aquele ambiente idílico. A violência inerente às old plantations do Sul emerge desse choque entre música e imagem. O soldado inimigo que passa a privar da companhia das mulheres é o primeiro homem em muito tempo em meio a mulheres carentes de companhia, o Norte progressista no Sul reacionário, o desertor entre os patriotas, o invasor. 
Esta multiplicidade de sentidos é explorada com perspicácia pelo filme, que se fecha numa imagem de sororidade feminina que nem por isso procura dar respostas únicas às tensões. Se há aqui igualmente a vagueza, ela é abraçada de modo muito mais consequente que em “Lady Macbeth”. Se a penumbra persiste na cena final transformada em tableau – a exemplo do que se dá no primeiro filme – ao menos persiste, aqui, um olhar ao gênero feminino que foge à perpetuação de preconceitos arraigados.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Balanço do Oscar 2017


Este balanço do Oscar 2017 será, ainda uma vez, elíptico – como sempre, não consegui ver todos os indicados. Quem acompanha aqui os posts anuais sobre o assunto sabe que eles são invariavelmente antecedidos por preâmbulos explicativos sobre a não objetividade da premiação, ou o caráter endógeno de Hollywood – que inventou uma categoria para premiar os filmes estrangeiros justamente para separá-los da produção norte-americana. Raros, raríssimos artistas estrangeiros, falando suas línguas maternas, conseguiram arrebatar os cobiçados prêmios de Melhor Ator e Atriz, por exemplo – Roberto Benini ao que eu me lembre é a exceção, mas a xaropada dos campos de concentração que é A Vida é Bela (1998) só tem de exógena a língua, empregando até a medula a estética mainstream americana. 

Daí ao prêmio de melhor atriz ir às mãos de Emma Stone – que, sendo uma ótima jovem atriz, está a anos luz da esplendorosa Isabelle Huppert. Ridículo é compará-las, absurdo é colocá-las em pário de igualdade na disputa por um prêmio (como fora anos atrás a disputa entre Enmanuelle Riva e Jennifer Lawrence). A derrota da madura atriz francesa sobre a moçoila estadunidense – num caso como no outro – simboliza, de modo mais geral, a infantilização da sociedade norte-americana (e, por extensão, da nossa, nós que a consumimos tão entusiasticamente), e, num contexto cinematográfico, a morte da cinefilia. A vitória altissonante de La La Land – apesar do rolo insólito atinente ao prêmio de Melhor Filme – deixa isso claro: em terra que dá as costas à história, repudiando o passado por velho, a novidade banal ganha foros de conquista extraordinária. 
Considerando as diretrizes do Oscar, extraordinário é quando acontecem no evento coisas disruptivas, a exemplo do equívoco de se entregar o prêmio principal da noite ao filme errado. Em tempo real, milhões de espectadores ao redor do mundo viram a vida imitar a arte. Spoiler: ao final de La La Land, o bem-sucedido jazzista vê seu grande amor d’outrora, agora uma atriz renomada, sair de seu “clube” hipster nos braços de outro. Dado o lamentoso presente consumado, ele prefere refugiar-se na fantasia, refazendo mentalmente o percurso de ambos, do primeiro encontro à reviravolta do destino, de modo a perpetuar a união do par romântico, nem que seja apenas no plano imaginativo. A imposição stricto sensu da clássica “magia” de Hollywood fecha a película. O sonho dourado cala a realidade. 
Quando foi anunciado o recorde de indicações a La La Land, perguntei-me se, num tempo de alçamento ao poder do ultraconservador Trump, valia a pena perpetuar-se esta versão algodão-doce da vida. Eu não sou seu negro, ótimo documentário indicado à premiação da categoria, lança luzes sobre o histórico apagamento dos afro-americanos da cinematografia pátria – espelhamento da segregação racial em voga até os anos 70. O filme trabalha com os diários de James Baldwin, escritor negro amigo de Martin Luther King, Medgar Evers e Malcom X – três mártires da causa da igualdade. A violência do preconceito é materializada, no filme, por dois heróis tipicamente americanos, a girl next door Doris Day e o machão John Wayne. 
A destruição do índio pelo branco ganha, pelo cinema clássico, foros de saga de construção da nação. A “pureza branca” simbolizada por Doris Day anula outros matizes – a voz poderosa de Lena Horne soa na banda sonora do documentário, lembrando dos muitos papéis que o preconceito racial vetou a atriz de ter (o mais notório é o da comediante negra de Show Boat, filme que questionava justamente a lei que proibia o casamento inter-racial). 
É tempo de se questionarem as mitologias inventadas por Hollywood, e de se inventarem novas mitologias, que lancem luzes sobre esses tempos lúgubres que vivemos. O quiproquó referente à premiação final do Oscar serviu para ilustrar – à la La La Land – qual o resultado de se premiar a frivolidade saltitante. Tivemos chances de escutar a uma carrada de discursos do mais motivacional e nefasto teor do keep dreaming: sonhe, os sonhos se transformam em realidade se você lutar com força suficiente, etc. etc. A alva meritocracia neoliberal foi colhida em pleno voo, e ao seu discurso sucedeu-se um bem-vindo libelo em favor da igualdade. 
No âmbito artístico, sem ser uma obra-prima, Moonlight conta com sensibilidade a história de um menino negro nascido em meio ao tráfico em Atlanta – capital da Georgia, destruída durante a Guerra Civil: a mãe viciada, o bullying e o homossexualismo são a base de uma história que não trata em primeiro plano do preconceito racial, talvez porque ele seja a pedra angular daquela sociedade: a comunidade pobre/ negra habita os arredores da boca comandada por um chefe a quem Chiron toma como sucedâneo de pai. Sua aderência à vida do crime parece um caminho óbvio depois do reformatório, não tivesse o seu melhor amigo de colégio seguido o caminho contrário, encarando uma vida de legalidade – e o labor que ela significa, especialmente para alguém recém-saído da prisão. Quase todo subjetivo e elíptico, o filme evita a dicotomia e a moralização. Fá-lo com bastante precisão e raras vezes resvala à estetização. Seu mérito principal está em dar voz e subjetividade a uma personagem historicamente apagada da cinematografia do Norte – ou retratada, como o escravo “Pai Thomás” vituperado por James Baldwin, como mártir dócil. Baldwin gostaria um bocado deste filme. Se o Oscar raras vezes tange a esfera artística, este ano ele merece loas por ter decidido ser político. 
Com relação aos demais indicados, o mais bem-resolvido esteticamente é A Chegada. Lion seria uma obra-prima de melodrama não se arrastasse tanto na primeira parte (nem mesmo o pequeno e carismático Sunny Pawar impede, ali, a sua lassidão). A surpresa, para mim, foi Manchester à beira-mar, cuja montagem em síncopes sublinha a inabilidade da personagem principal com o seu entorno. E que personagem principal! Onde estava eu este tempo todo que nunca vira Casey Affleck? (O talento é de família). 
No mais, as injustiças costumeiras: Viola Davis, protagonista feminina de Um limite entre nós, foi mal colocada no rol das coadjuvantes. O prêmio era, aqui, de Nicole Kidman. O (ótimo) Dev Patel idem por Lion – neste sentido, Mahershala Ali, também de Moonlight, foi muito bem escolhido como vencedor. A estratégia de se reduzir a categoria do sujeito para viabilizar-se a sua premiação repete-se todo ano, e vez por outra dá resultado. No que toca aos filmes estrangeiros, nada vi dos indicados além do iraniano O Apartamento, o vencedor. Resta a ser revisto. A opção por Asghar Farhadi – diretor da, esta sim obra-prima, Separação – me pareceu preguiçosa. Na primeira visita, achei um bom filme, um pouco perdido, no entanto, em meio ao rol de temáticas que arrola: a metalinguagem, o machismo e conservadorismo daquela sociedade, o trauma. Não tem o pulso do Filho de Saul, Separação ou Ida, os premiados dos anos anteriores. 
Levando-se em conta as diretrizes do Oscar, este ano o resultado foi acima do esperado. Pelo tapete vermelho passaram as mais variadas nacionalidades e etnias. Entre indicados e vencedores, consagraram-se temáticas variadas: o lugar da mulher no interior de uma cultura machista, a inserção do negro na sociedade norte-americana, o homossexualismo... Abriram espaços para novos sonhos, multicolores. Dado o papel imperativo do Oscar, prêmio da mais influente cinematografia mundial, isto não é pouca coisa.