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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Podridão entre quatro paredes: Álbum de família (2013)

Uma versão contemporânea das "DRs" infindas protagonizadas por Liz Taylor em “Gata em teto de zinco quente” (Richard Brooks, 1958) e “Quem tem medo de Virginia Woolf” (Mike Nichols, 1966) ainda pode ser desfrutada pelos espectadores nas grandes redes exibidoras. “Álbum de família” mergulha fundo nessa fonte donde porejam as águas do cinema e do teatro. O roteiro de Tracy Letts é profundamente teatral. Embora o cenário diga muito, as palavras têm primazia, brotam aos borbotões de um modo que parte considerável da crítica está considerando irrealista, over the top
Porque não espero que o cinema esteja fundamentalmente colado à realidade, gostei um bocado do filme. Amparado no roteiro de Letts, John Wells coloca em cena um variado mostruário de personagens silenciosamente agônicas, cujas dores irrompem todas durante um opressivo verão num condado longínquo dos Estados Unidos. A matriarca da família, Meryl Streep, puxa o desfile de astros que tomam parte da empreitada: Julia Roberts, Chris Cooper, Ewan MacGregor, Sam Shepard, Dermot Mulroney, Juliette Lewis, Abigail Breslin... A briga de egos que é usualmente oriunda de empreitadas do tipo serve, aqui, ao tema do filme: o embate, que é seu cerne, faz transcender para o plano ficcional quaisquer possíveis rivalidades, nutrindo-o, ao invés de prejudicá-lo. 
É um filme feito ao talhe do Oscar. Sua principal fraqueza talvez seja seu desejo de fazer cada artista demonstrar quão alto ele pode se elevar dramaticamente. Pretensão tão visível acaba fazendo emergir a artificialidade do conjunto. A necessidade de dar voz a tantas e tão diversas personagens torna o roteiro mais artificioso que profundo. 
Seu cerne é o desaparecimento e posterior suicídio de um escritor amargurado. O encontro da família e a lavagem de roupa suja que se sucede deixa patente o porquê da atitude estremada do homem. Basicamente, sua esposa é uma megera de grosso calibre, cuja metralhadora giratória não poupa ninguém. Sua verborragia soma-se aos seus atos e temos, então, uma vilã cuja mesquinhez e inominável crueldade a pareia com a fase de ouro do nosso Félix. É uma personagem de pantomima que vale sobretudo pela atuação magistral de Meryl Streep, noutro grande momento de sua carreira. 
Secunda-a Julia Roberts, no papel da filha mais velha que outrora fugira ao jugo da mãe e, de volta ao condado de Osage, vê fervilhar a rebeldia da filha adolescente (Abigail Breslin, ótima) e as últimas fagulhas de seu relacionamento com o pai da menina (Ewan MacGregor, idem). O roteiro é mais grandiloquente que assertivo na tessitura da relação do casal. O rebuscamento lexical gira no vazio, neste e noutros momentos da trama. No entanto, a visceralidade das atuações faz-nos perdoar a falha e atentar para o teatro individual, executado com homogênea qualidade. 
A única nesga de brisa que sopra do ambiente opressor é protagonizada pelo dueto Julianne Nicholson e Benedict Cumberbatch, primos cujo afeto, cumplicidade e paixão são paulatinamente desvelados ao público, pouco antes do horrendo segredo familiar que os apartará: não há espaço para a felicidade sob a aridez do teto da matrona de Streep. Cumberbatch está especialmente brilhante. Seu dilema é infantil, mas ele o veste com delicadeza e angústia aterradoras. Eu nunca o havia visto. Aposto na sua indicação ao Oscar de ator coadjuvante. 
Julia Roberts secunda Meryl Streep com brio. Está tão bem quanto esteve em “Erin Brockovich”, e, sem maquiagem e com um vestuário pouco charmoso, mostra quão grande atriz pode ser. Figurino e fotografia são igualmente dignos de nota: a poeira e a canícula que tudo envolvem falam tanto quanto as personagens. Neles e nas atuações estão os grandes trunfos de “August: Osage County” (o título em inglês prepara melhor o público para a aridez que o espera), filme que, sem ser uma obra-prima, merece o encontro com o público.
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Enquanto procurava imagens que ilustrassem o post, descobri que o filme foi originalmente uma peça de teatro vencedora do Tony e do Pullitzer (2008).