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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

“Todos lo saben”/“Everybody knows” (Asghar Farhadi, 2018): melodrama revirado

Asghar Farhadi, artífice de duas obras premiadas com Oscars de Melhor Filme Estrangeiro entre em 2012 e 2017 – A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) e O Apartamento (Forushande, 2016) –, redireciona a objetiva do Irã a um vilarejo enfronhado na Espanha, reino cuja luz dourada inesperadamente escamoteia arraigados preconceitos. 
Farhadi nunca consegue ser tão eficiente distante de sua terra natal quanto o é entre os seus. Seus filmes oscarizados – o primeiro, uma obra-prima – são bastante mais bem resolvidos que O Passado, filme realizado entre ambas, com o qual ele migra do Irã à França, debruçando-se longa e arrastadamente sobre um casal multiétnico composto por uma francesa (Bérénice Bejo) e um iraniano (Tahar Rahim), que a abandona e aos filhos para retornar à sua terra. 
A trama de O Passado equilibra-se de modo pouco estável entre o drama familiar e a trama policialesca – mistura equilibrada de forma modelar no extraordinário A Separação, e igualmente bem dosada em O Apartamento¸quiçá porque, nessas duas obras, os dramas individuais embebem-se na seara coletiva, já que o meio social é o responsável por forjar os silêncios e os cerceamentos. 
Todos lo saben, sem ser uma obra-prima, vai por este caminho mais sólido. Mergulha fundo numa família tradicional espanhola, lançando luzes sobre as suas fissuras. Eu ouso pensar que, nesta obra, o objeto central é o gênero melodramático: que ao mesmo tempo serve de molde à intriga narrada pela obra e é revirado e ironizado, já que é visto de fora, pela câmera migrante do diretor. 
Dificilmente poderíamos dizer que a cinematografia ocidental é uma estrangeira para Farhadi. A Separação é, pelo equilíbrio no trabalho entre o suspense e a surpresa que realiza, pelo timing preciso de thriller que tem, bastante tributário da obra de Hitchcock. Igualmente, a presença, em suas obras, da nata dos artistas estrangeiros, denota que o diretor tem trânsito fluído pela cinematografia mainstream
Em Todos lo saben, dividem a cena três grandes: Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín: um triângulo amoroso, percebido logo de saída pelo espectador – o melodrama é feito de maceradas convenções, que eliminam da narrativa quaisquer porosidades. 
A trama divide-se em três atos, a exemplo do que se dá nos clássicos do gênero melodramático: 
1- Laura, personagem de Penélope Cruz, chega ao vilarejo espanhol, vinda da Argentina, com os dois filhos, para o casamento da irmã. O marido argentino queda-se doente em casa, a filha constrói a ponte entre a família e as duas nacionalidades, por meio de uma chamada de vídeo ao pai. Para além da apresentação do núcleo familiar que se consegue daí, observa-se que a presença da câmera, o myse-en-abyme, é uma constante neste melodrama, o qual, sem negar as convenções do gênero, coloca-as diante de um espelho. Já no vilarejo, a terceira ponta do triângulo ingressa na obra: Bardem/Paco, namorado de juventude de Laura. 
2- Constroem-se as tensões: a saída de motocicleta da luminosa filha de Laura, com o seu namoradinho espanhol (repetição da história de Laura e Paco); o drama da irmã mais jovem, deixada com a filha pelo marido que vai tentar a sorte noutro país; a química inquestionável entre Laura e Paco. Casa-se a irmã, enquanto, na torre da igreja cujo sino fora anos antes consertado graças à doação de Laura e do marido, pombas desarvoradas chocam-se contra o vidro, e o namoradinho da menina lhe dá detalhes do affair pregresso entre Laura e Paco. A multidão ruidosa, observada numa subjetiva pelos olhos do pequeno filho de Laura e Alejandro (Darín), ganha contornos de turba descontrolada. Tempestade, queda de energia. O nó dramático chega ao ponto culminante. Farhadi, que é bom manejador do suspense, multiplica as veredas com inquestionável ironia, para que o público se perca por elas no intuito de desvendar um crime que ainda não se deu, todavia, é prenunciado desde antes da abertura da obra, já em seu cartaz. 
3- No terceiro ato se esquadrinha o sofrimento de Laura e do marido – que àquela altura já se juntava à família espanhola – frente ao sequestro da menina. Cobra-se um resgate que os pais falidos não podem pagar. Paco, antigo funcionário dos pais de Laura, pobre e vilipendiado, que ascende socialmente depois de ter comprado as terras da antiga namorada, ouve dela a incontornável confissão da paternidade da menina sequestrada. Moralmente imbricado na ação, caberá a si o desenlace do conflito, que o obriga a abrir mão dos bens que conquistara. 
Contado assim, Todos lo saben soa um thriller previsível, já que subsumido na estrutura convencional do melodrama. A paternidade da menina é fato notório de todos, já diz o título; mesmo o público logo se dá conta do fato. 
A força do filme está, a meu ver, no olhar a contrapelo que ele lança ao gênero, minando-o a partir de sua base. 
Por exemplo, no âmbito da casa. Gênero burguês, o melodrama elege a propriedade (privada) e a família nuclear como o espaço da segurança, cercando-o por muros que explicitamente dividem o interno do externo. O vilão vem de fora, e ora insinua-se dentro do núcleo familiar, contaminando-o, ora carrega dali o herói. 
Todos lo saben adota a ambivalência, que é, no entanto, invertida. À medida que se esquadrinha a casa, a câmera faz emergir ódios vicerais. Paco é a todo o momento considerado “o estrangeiro” por aquela família tradicional; presença incômoda por sua ascensão social ocorrida após a aquisição da porção da propriedade familiar que cabia a Laura. E o mal brota, ali, não de fora, mas de dentro, cria do preconceito virulento nutrido pelo patriarca. 
Outra característica fundamental do gênero melodramático olhada com visada irônica por Farhadi é o cristianismo. Darín é Alejandro, o cristão carola que doa o dinheiro para a reforma do sino da igreja – personagem inglória, que ele desempenha com a sua costumeira agudeza. Na casa dos sogros, é ele quem puxa um anacrônico louvor à mesa, antes do café da manhã. A Paco, afirma que Deus o salvou ao ter adotado para si a filha do outro. E ao fim e ao cabo, prefere o silêncio a ter de revelar a verdade à filha. 
No plano fílmico, o silêncio ensurdecedor emerge no filme do casamento, que a família vê ad nauseam no intuito de encontrar algum indício do criminoso. Blow Up (1966), a obra-prima de Antonioni, é o mais cabal modelo de filme em que a câmera exerce o papel delator – thriller surpreendente, em que a câmera fotográfica ganha foros de câmera cinematográfica, em que os closes, manipulados pela revelação perspicaz, fazem emergir a verdade. Já em Todos lo saben, o notório conhecimento coletivo que dá título à obra surge aos olhos do mundo como escamoteamento. Nada se depreende daquelas imagens do casamento, que se desenrolam aos olhos do público enquanto a ficção feliz de uma família proba. 
Já a mencionada hipocrisia encoberta pelo manto da religião encontra outra bela imagem quando a matriarca da família narra ao pai a verdade sobre o sequestro, sob os jatos d’água do caminhão da prefeitura, que de uma mesma feita lava a ambos e ao cruzeiro, à guisa de perdão. Como se vê, embora a menina retorne, o final feliz típico do melodrama é, aqui, colocado entre aspas. O manto translúcido de água, que silencia e obnubila os velhos, ao final da obra, serve de metáfora ao barro putrefato dos preconceitos que corre subterrâneo no seio dessas famílias tradicionais pretensamente solares, emergindo a qualquer possibilidade de surgimento do novo, a qualquer ameaça de abalo do status quo, e engolindo tudo por onde passa, com a sua viscosidade inescapável.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

“Hannah” (2017): à beira do abismo

Um plano fechado de uma mulher idosa a testar a garganta à exaustão, como a querer botar para fora as entranhas. O rosto rubro vagarosamente readquire as cores naturais, enquanto, offscreen, ruídos análogos preenchem a cena, refletidos pelos seus olhos – pelos seus olhos e pelo seu rosto crispado, sustentados diante de nós, espectadores, com uma insistência que beira a soberba. O plano se abre, situando a protagonista em meio ao som ambiente e, enfim, ao grupo de teatro junto do qual ela realiza sucessivos exercícios que, embora aparentemente nonsense, parecem reverberar o desassossego que lhe vai na alma. 
Hannah apresenta-se ao público entre gritos de ficção e giros em falso, evocando num só tempo o papel catártico/ profilático que desempenha a arte, ao criar aparências do mundo, e a essência da qual a personagem, enquanto ser de ficção, é feita: como o palíndromo de que se constrói o seu nome, cabe a si rodar em círculos, voltar-se sobre seus próprios passos. 
A narrativa (dirigida por Andrea Pallaoro, autor do roteiro com Orlando Tirado) é protagonizada pela imensa Charlotte Rampling, a provar que não há limites a uma atriz. Por conta dela, damos de ombros para a ocasional falta de timing e para o excessivo erratismo da obra. A narrativa subjetiva, elíptica como o esforço da mulher de esconder – do mundo e de si mesma – o segredo em torno de seu marido recentemente aprisionado, sustenta-se graças à maestria desta atriz. Aberto às mais ínfimas nuances, o seu rosto materializa, tal e qual paisagem, o poder da arte de inventar mundos. Admirá-lo é admirar a essência do próprio cinema. 
O suspense que o filme cria no que toca ao crime cometido pelo marido, que me aborreceu à primeira vista (autores vêm continuamente lançando mão da alinearidade e das lacunas, num esforço de salvar enredos frágeis), foi crescendo dentro de mim depois que saí do cinema. A subjetiva indireta que organiza a narrativa salva o roteiro da inanição. Ao olhar o mundo por meio dos olhos da personagem, a câmera coloca num primeiro plano as suas sensações, enxergando com lente de aumento, junto com Hannah, o plot que a faz girar em falso. 
A história se costura entre as idas e vindas desta senhora, das aulas de teatro à casa dos patrões, onde trabalha como doméstica. Em sua casa de classe média, as primeiras interações com o marido prenunciam os desdobramentos da história: o silêncio, o companheirismo obrigatório. No outro dia, ambos se aprumam, ele despede-se do cão da família, ela o deixa na delegacia. Volta para casa, para o cão que espera o dono em vão. Tenta sem sucesso contato com o filho e o neto. Segue ao trabalho, onde os jovens patrões e o garoto cego são uma espécie de família substituta, tratando-a, os patrões, com uma distanciada politesse (a história se passa na Bélgica, e Rampling fala francês à perfeição). Ali, como em tudo, o calor humano é comedido. 
Depreendemos o drama a partir dos interstícios. O filho não mais deseja ver os pais. Ficcionalizando ao marido um encontro amistoso que teria tido com rapaz, no dia do aniversário do neto, o pai diz que nunca perdoaria o filho. Mais tarde, Hannah encontra fotografias que ela olha e descarta com asco, na lixeira comum do prédio. O velho é provavelmente um pedófilo, mas o filme não se debruça sobre a questão; não se volta aos julgamentos morais, já que o que está à baila é o lugar de Hannah nesse seu mundo que se desmorona. 
Um achado cinematográfico é o trabalho com a luz, a bipartição do quadro entre a obscuridade e a clareza: o jardim florido da casa dos patrões, banhado pela luz matinal, e a escuridão do closet onde a personagem guarda as roupas recém-dobradas. A escuridão já havia, na mesa da cozinha, descido sobre a personagem e o seu marido, o qual, ato-contínuo, troca a lâmpada que queimara. Hannah está todo o tempo a flertar com as luzes e as trevas, nesta circularidade que lhe é consubstancial. 
É na arte que ela vislumbra alguma possibilidade de salvação. Porém, a história resvala para uma melancolia infinita. Se, entre os colegas das aulas de teatro, ela encena com o marido a separação – “Nada mais pode haver entre nós. Eis aqui a minha aliança” –, na vida real o divórcio de corpo e espírito é impossível: há a longa vida pregressa em comum, impossível de se sepultar; há o repúdio incontornável do filho. 
A arte não pode oferecer senão flashes momentâneos de luz. O enredo roda em torvelinho com a personagem, e imagem mais bela disso é a sua fuga desesperada da aula de teatro, pelas escadarias circulares do metrô, até a sua chegada à plataforma. O salto no abismo, esperado, porém sustado, com que o filme se fecha, acena para o eterno recomeço – da narrativa e do desespero da personagem. E acena, por fim, para o incontornável papel da arte, tábua de salvação (às vezes demasiado rasa) diante da gratuidade da vida.

domingo, 17 de agosto de 2014

A diva vai à ópera: autorreferência em “A Dama Misteriosa” (1928), com Greta Garbo

Curioso esse The Mysterious Lady, segundo filme de Garbo dirigido por Fred Niblo (o primeiro, The Temptress, de 1926, é uma obra-prima). A história, numa primeira vista d’olhos parece não passar de “veículo” à exibição da atriz, mercadoria valiosa na época – os stars valiam, então, mais que as histórias; estas importando, sobretudo, enquanto meios de veiculação das imagens deles ao redor do globo. O plot: Karl (Conrad Nagel), jovem militar austríaco em ascensão, apaixona-se por uma bela jovem apenas para descobri-la uma espiã russa. 
A descoberta, tardia (ela enreda o rapaz para apoderar-se dos documentos secretos que estavam em posse dele), fá-lo ser degradado e preso, e patrioticamente desejar vingança. É, portanto, uma história de ranço belicoso, a porejar repúdio pelo incompreendido elemento estrangeiro, como tantas já rodadas (e que ainda o seriam) na América vinda da primeira Grande Guerra. 
Não é neste enredo mais epidérmico que encontraremos alento, mas sim na imagem etérea que ele constrói de Garbo, imagem para a qual concorrem, além da fotogenia da atriz (aliada a uma inteligência de expressão oriunda de um talento inato – a jovenzinha de vinte e dois anos exibe, aqui, a eternidade dos deuses, coisa que espantosamente fizera desde sua primeira produção, The Gosta Berling Saga, rodada quando ela tinha dezessete); a excelência dos novos processos de fotografia; e, finalmente, o subtexto, que dá carnadura à trama. 
Em Greta Garbo: a cinematic legacy (nunca é demais recomendá-lo aos admiradores da atriz, de fotografia e da Hollywood dos anos 20 e 30), Mark Vieira informa-nos que a obra beneficiou-se de uma então recente transição técnica da fotografia: a adoção do filme “panchromatic” (em substituição ao “ortho”) e das luzes “Mole”, que suavizavam e iluminavam as imagens. Sublinha-se, assim, o etéreo da persona criada por Garbo. 
Mas, The Mysterious Lady não seria um veículo tão apropriado à atriz não tratasse ele, também tematicamente, de retirá-la do rés do chão onde transitam os reles mortais, elevando-a a um intangível céu estrelado. 
Garbo (tímida e antissocial, segundo aqueles que a conheceram nos seus anos de MGM) nunca foi, em cena, a típica girl norte-americana. Nunca trabalhou em loja de departamento, em casas de família. Nunca privou com garotas de sua idade. Seu rosto parecia talhado às grandes tragédias: às vicissitudes amorosas, à solidão, à fome, ao silêncio. Daí sua Dama das Camélias (1936), suas Annas Kareninas (além da versão de 1935, ela rodou uma silenciosa: Love, de 27), sua Anna Christie (1930). E Queen Christina (1933), Romance (1930) – a rainha e a prima-dona, rainha em microcosmo. Sua única “ingênua” stricto sensu foi, até onde me lembro, a Marianne de The Divine Lady (1928), ironicamente seu único filme perdido, e mesmo nele, a mística que não se encontra no conteúdo revela-se no título. 
Em A Dama Misteriosa, a prima-dona se junta à movie queen. Atrelam-se implicitamente os caracteres da diva de ópera e da diva do cinema. Há autorreferência a rodo nessa obra, além de um humor ferino subjazendo à básica historinha de amor entre a espiã (arrependida) e o soldado. Garbo, com aquela face superlativa que a natureza e a Max Factor lhe deram, desenha a personagem com sutileza desusada – ressaltada pelo poder do filme pancromático –, revelando, na mesma medida, a passionalidade preponderante do papel, e a graça metalinguística que jaz no subtexto da obra. 
Ela é primeiramente tomada num camarote de ópera. Ela observa a prima-dona; o galã a vê. Nós a vemos pela reflexão dos olhos dele: aquele ser sublime, imponente, intangível. Isso o perde – e a nós, míseros iludidos, incapazes de perceber a encenação que se superpõe à essência daquela mulher. Mas disso, da encenação, nós (ele e o espectador) apenas nos daremos conta mais tarde. A graça dessa sequência é que a personagem está a representar tomando o palco como espelho. A prima-dona que se dilacera em cena é Tosca, da ópera homônima (de 1900, de Puccini, libreto de Illica e Giacosa) igualmente autorreferencial.
Parênteses: embirrei com o gênero operístico durante muito tempo (burrice minha, nem preciso dizer) pelo over dos enredos, como se tudo precisasse obrigatoriamente seguir a cartilha realista para que valesse alguma coisa. Mas acontece também que Puccini era, como seus libretistas, contemporâneo da busca do teatro pelo realismo cênico. Vem daí, possivelmente, seu desejo, nesta ópera, de colar a personagem à ação, narrando a história da prima-dona - personagem de natural grandiloquência - que se vê obrigada a se entregar a um rico e influente pulha para ter em troca a liberdade do amado, pego em atos políticos contestáveis. 
Tania (Greta Garbo) observa o encontro entre Tosca e o barão Scarpia, chefe de polícia romano. No palco, a diva, contrita, canta possivelmente a celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore (Vivi de arte, vivi de amor), ária se tornará leitmotiv do filme – escolha sui generis, uma vez que, sublinhemos, estamos falando de um filme rodado ainda durante a voga do cinema silencioso. Há aí uma flagrante tomada de posição da MGM em favor do filme silencioso, em detrimento do falado – The Jazz Singer, da Warner, lançado havia poucos meses, virava a indústria do cinema de ponta cabeça. 
A música, elemento-chave da ópera, se tornará, no filme, imagem. Vissi d’arte reaparece primeiro na casa de Tania, tocada pelas mãos do jovem militar já semienredado pela espiã. Ela a canta: “Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a ninguém/(...) Sempre com fé/ Adornei com flores os altares/ Dei joias ao manto de Nossa Senhora”, etc. etc. Impossível que o público da época, tão contemporâneo a esse sucesso de Puccini, não percebesse a referência, ainda que implícita, silenciosa. Possivelmente, mesmo as orquestras das salas de exibição reproduziam musicalmente o tema, nos momentos cabíveis. A versão de The Mysterious Lady recentemente lançada nos EUA (num box imperdível, com Flesh and the Devil e The Temptress) infelizmente não o percebeu – sua trilha original não remete em nenhum momento à ária, ou à Tosca de modo geral. 
O uso que o filme faz da canção é, claro, sardônico. Tania vivia de fazer mal aos outros. Mas a mise-en-scène criada pela mulher ardilosa prepondera. A câmera alia-se a ela, e então veremos um prodígio de fotografia – o cinema silencioso atingia as culminâncias da técnica ironicamente em seus estertores – narrar, paulatinamente, a evolução do caso amoroso: jogos de luzes e sombras sobre o casal, na mansão de Tania, enquanto ele está ao piano e ela canta; delicadeza de fábula à sequência de ambos no campo: as flores, o riacho, a cascata, as árvores, suavemente apreendidos, contribuem na consecução do quadro pitoresco. O que o filme busca é bem isso: o pitoresco da paisagem e as cambiâncias sedutoras do cinza para construir-se explicitamente como ficção. 
Uma vez na Rússia, os dois personagens continuarão a fingir – desta vez, estando Karl já cônscio do verdadeiro papel de Tania. Quando ele penetra no covil dos agentes russos e se vê novamente diante da mulher responsável por sua degradação (a cena do rebaixamento do militar é igualmente notável), decide denunciar-se em público. Ela intervém. No intertítulo, lê-se: “Nós temos um público perigoso, músico./ Devemos desempenhar bem.” 
O reencontro do casal faz emergirem umas necessárias convenções do cinema dos anos 20. Tania percebe que ama o militar, que sempre o amou. Após um último – inesquecível – número de Vissi d’arte, reverberado pela diva muda, o casal roubará, com quiproquós dignos da Tosca (com direito mesmo a um assassinato, cometido pelas mãos da moça), certos documentos que redimirão Karl. E, ironia final com a malograda prima-dona de Puccini: na película, os pombinhos ameaçados viverão felizes para sempre...