quinta-feira, 31 de março de 2016

O artista e o tempo: “A Paixão de JL” (2015)

Está em cartaz gratuitamente no Espaço Itaú de cinema, em São Paulo, esta obra-prima de documentário, dirigido e roteirizado por Carlos Nader. “A Paixão de JL” mergulha na arte de José Leonilson, artista plástico cearense radicado em São Paulo que perdemos em 1993 para a AIDS. Esta perda, o diretor faz-nos sentir com contundência, ao entremear a obra de Leonilson à sua vida, e à História do Brasil e do mundo na década de 90. 
A banda sonora traz a voz do próprio artista, que a partir de 1990 decidiu registrar num gravador os seus sonhos, temores e espantos frente a si próprio e ao mundo. O cunho confessional – malgrado ser o diário um gênero narrativo que visa um público, mesmo implícito – potencializa-se ainda mais pela natureza do registro: a voz firme de Leonilson, que vez por outra se embebe de emoção ou rareia, deixando-nos antever seu inescapável destino. 
O documentário é um alumbramento e eu escrevo ainda muito mexida – não esperem, portanto, uma leitura tecnicista do gênero ou da obra. 
Nader é extremamente feliz ao trabalhar com a ambivalência presença-ausência. Morto em 1993, Leonilson aparece vivo por meio de sua obra, presença perene, embora seu corpo empírico há tempos tenha desaparecido. Sua voz ajuda a construir a presença incontornável de sua obra altamente confessional, que Nader conhece como poucos. 
A voz e a arte fazem emergir uma individualidade que o mal do século transformara em estatística. Homossexual, Leonilson convive de perto com o temor de ser contaminado. A busca do amor, que ele exacerba em depoimentos de grande lirismo, irá logo conviver com a descoberta da doença e a luta inglória por se agarrar à vida que se extinguia. Retornando de uma noite no hospital, onde ouvira que a medicina não poderia fazer nada por si, o artista afirma: agora só me resta a arte. A arte, aquela coisa delicada, sublime, que bate de frente com a rispidez do mundo - ele constata noutro momento, enquanto se acercam episódios hediondos como o bombardeamento de Bagdad. 
À voz e às obras, Nader costura o noticiário jornalístico da época: a queda do muro de Berlim; Collor a pedir a derrubada dos marajás; a tomada das ruas pelos caras-pintadas; a destruição de Bagdad. Este perpassar de roldão da História, por meio desta voz tão presente, reinsere Leonilson e sua arte no mundo de hoje – porque ela tem esta característica da arte maior, que é a universalidade. Num tecido alvo bordado com suavidade, lê-se: 

no bombs 
no castles on sand 
no drums 
it's on me 

Não às bombas, aos castelos de areia, aos tambores. Depende de mim. 

quinta-feira, 24 de março de 2016

“O Filho de Saul” (2015): resistência à desumanização

Prometi, no artigo passado, me ater ao conjunto dos filmes estrangeiros concorrentes ao Oscar 2016. Os últimos desdobramentos políticos e sociais me obrigam a redefinir o fio da análise, concentrando-me no vencedor. 
Recebeu – merecidamente – o prêmio este ano uma obra cujo valor transcende o cinematográfico, e que procura estabelecer conosco, os brasileiros, um diálogo para o qual não devemos ousar virar as costas. 
"O Filho de Saul" (László Nemes, 2015) já esteve sob os holofotes no ano passado, quando ganhou o grand prix de Cannes, portanto seu enredo é possivelmente conhecido do público. Acompanha-se, ali, o dia-a-dia de um campo de extermínio nazista, nos estertores da guerra – momento em que recrudescia a “solução final”, ou seja, a destruição de qualquer traço do povo judeu, por meio da gasagem, da incineração dos corpos e da liquidação das cinzas. Os parafusos da engrenagem nazista eram, por mais hediondo que isso possa parecer, os próprios internos dos campos, responsáveis por encaminhar seus semelhantes ao fim que dali a pouco eles próprios teriam. 
 A narração é subjetiva: a câmera toma a cena a partir do protagonista Saul (Géza Röhrig), um membro do Sonderkommando, grupo ao qual cabia a função. E lê aquele sonho dantesco como ele o faz: a partir dos fragmentos que evocam a incompreensão do horror que se passava no entorno. Incompreensão que exacerba os limites dos campos para adentrar os tribunais de Nuremberg, ou o julgamento de Eichmann: como é possível o massacre de milhares de pessoas por dia, às barbas das populações que habitavam o entorno daquelas construções? A realidade chega a ser posta em dúvida devido à sua paradoxal inverossimilhança. O aparentemente impossível, no entanto, aconteceu. 
Saul tateia no escuro, vilipendiado por agressões que ele não sabe bem donde partem ou porque, naquele ambiente que perdeu todo traço de humanidade. Em meio aos restos mortais da última gasagem, a meio do caminho entre a sanidade e a loucura, o homem encontra o corpo de um garoto que adota por filho. O périplo ficcional de Saul em busca de um rabino que enterre o menino numa cerimônia judaica é perpassado por referências históricas concernentes à realidade dos campos: a hierarquia que surgia entre os prisioneiros, o esforço deles de registrar ao desvelamento da posteridade aquele cenário apocalíptico (em Images malgré tout, Didi-Huberman debruça-se sobre as fotografias concernentes aos momentos anteriores e posteriores da "solução final", tiradas por membros do Sonderkommando de certo campo de extermínio, e dali retiradas por certo membro da resistência polonesa). 
A busca insólita do protagonista ganha foros de parábola bíblica, explicada brilhantemente por Ilana Feldman num artigo que eu recomendo aos leitores. Por meio do funeral, Saul nega ao menino desconhecido o apagamento a que o nazismo procurava submeter o seu povo. A denominação do protagonista salienta o cunho profético da história: Saul é o líder guerreiro responsável pela fundação da nação israelita, tornando-se o primeiro rei de Israel. O filme de László Nemes confere não apenas subjetividade ao prisioneiro a que os nazistas excluíram do rol da humanidade, elevando-o ao status de pai fundador de uma civilização. 
O desfecho da história é condizente com o abismo erigido pelo filme, reflexo daquele construído pela História. Não é possível qualquer sopro de esperança, qualquer redenção catártica, quando o homem se recusa à sua principal premissa, a de ser humano. 

Três anos atrás, quando as primeiras centenas de milhares de manifestantes ocuparam as ruas do norte ao sul do Brasil, numa tomada repentina de consciência política, procurei ler o evento à luz de Metrópolis e M., um par de filmes argutos de Fritz Lang que eu havia acabado de ver (ver o artigo). Endossei em parte o olhar temeroso que o autor volta às massas organizadas; o quão propensas elas estariam a ser cegamente enredadas, e o totalitarismo que poderia se originar dali. Não muitos anos depois dessas duas obras, os pesadelos ali explicitados materializariam-se no terror nazista, que agora ressurge com agudeza em “Os Filhos de Saul”. 
Dez anos depois da 2ª Grande Guerra, quando a escritura da história do Holocausto principiava a ganhar contornos, Alain Resnais rodou “Noite e Neblina” (1955). Não para embalsamar o passado e transformá-lo em item de museu, mas sim para torná-lo de novo presente, no espaço do filme, enfatizando quão tênue é o limite entre a civilização e a barbárie. O questionamento ali colocado pelo narrador – “Quem de nós ficará de vigília para nos advertir sobre a chegada de novos carrascos?” – é primordial ainda hoje. Nesse tempo em que a nossa pátria cordial está mergulhada em lutas intestinas que atingem perigosamente as raias da insânia, é nossa obrigação olharmos para as lições deixadas pela História. É fundamental lutarmos pela vitória da luz sobre as trevas, da democracia sobre o totalitarismo, e pelo desmascaramento dos tiranos travestidos de super-heróis.