Mostrando postagens com marcador Lambert Wilson. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Lambert Wilson. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 27 de junho de 2017

O cinema francês contemporâneo no Brasil: Vista d’olhos no Festival Varilux

Acompanhei de modo algo aleatório a mostra anual do cinema comercial francês, entre as entradas e saídas de arquivos, aqui e no Rio, e a redação de artigos e de relatório de pesquisa. Teço a seguir alguns comentários sobre as produções que vi, bastante motivada pelo artigo de Carlos Mattos "Franceses perdidos no tempo e no espaço", que fez eco ao resultado de meu balanço mental sobre as quatro produções que vi: Tal mãe, tal filha; O Reencontro; Tour de France Frantz
Como só vi quatro filmes dentre a dúzia e meia apresentada, esse meu texto obviamente não tem a pretensão de fechar uma interpretação da Mostra ou do cinema francês contemporâneo. De todo modo, o que essa pequena amostragem anuncia é corroborado pelas conclusões que tirei do visionamento algo extenso da produção cinematográfica francesa, que empreendi enquanto eu vivi alguns meses por ali, entre fins de 2012 e princípios de 2013. A decantada “excelência” do cinema francês ficou pra história – no realismo poético dos anos 30 ou na Nouvelle vague, como bem lembra Mattos. Hoje o que se vê é a reprodução à la francesa da standartização oriunda dos Estados Unidos (a qual penetra com a mesma eficácia no Brasil). 
Essa impressão me foi muito forte vendo especialmente Tal mãe, tal filha (Telle mère, telle fille, 2017). As duas peças principais da comédia romântica de Noémi Saglio são Juliette Binoche e Camille Cottin, a mãe riponga e filha certinha que engravidam concomitantemente. A estrutura da comédia romântica norte-americana alinhava o enredo que caminha perigosamente no fio da navalha, mas acaba, ao fim e ao cabo, aderindo ao status quo, como soe ao gênero. O filme traz à baila uma questão razoavelmente bem resolvida na França, a legalidade universal do aborto às gestações de até três meses. Mãe e filha decidem a questão com pragmatismo diante do obstetra – “Eu vou continuar com a gravidez, ela vai interrompê-la.”, diz a menina ao médico. 
Binoche e Cottin são duas perfeitas contrapartes, ambas muito à vontade nos papéis. Todavia, no cinema apenas rimos eu e dois outros gatos pingados: a moral cristã é ainda fortíssima em nosso seio, e agora novamente amonta no seio francês. A personagem de Binoche desistirá do aborto e terminará a história nos braços do marido, o lindo Lambert Wilson, por sinal, o pai da personagem de Camille Cottin. O filme é gracioso, mas fecha numa mensagem edulcorada que deixa algumas lições amargas: que os panfletos contrários ao casamento homossexual, à adoção de crianças por pais do mesmo sexo e ao aborto, usualmente entregues pelas ruas de Paris por grupos de extrema direita, vêm finalmente germinando (que o diga a quase vitória de Le Pen nas últimas eleições presidenciais). Cinematograficamente, o filme prova o descompasso entre o tema e a forma. O aborto é um tema outsider à comédia romântica, lugar da encenação de consensos sociais. O único filme do tipo que conseguiu se safar bem da tarefa espinhosa foi, ao que eu me lembre, Juno (Jason Reitman, 2007). No mais, adere-se à moralidade a mais convencional, como faz esse filme, ainda que com alguma originalidade e graça. 
O Festival Varilux apresenta no Brasil uma mostra do cinema comercial francês e, neste âmbito, não vende gato por lebre. Transparece-se, pelas produções apresentadas, que a viabilização comercial do cinema depende de sua aderência à estéticas/gêneros já consolidados, ou seja, à reprodução do já visto em detrimento das surpresas. O Reencontro (Sage Femme, de Martin Provost, 2017) se sai melhor nesta empreitada. Embora não deixe de lado chavões do gênero – a parteira amarga, porque mal-amada, que vê seu mundo ruir quando a clínica na qual trabalha fecha as portas e a ex-mulher do pai retorna à sua vida às beiras da morte; o perdão; o desaparecimento final da ex-madrasta como catarse ascéptica –, sustenta-se melhor pela química entre Catherine Frot (a parteira) e Catherine Deneuve (a mulher que inconscientemente leva o pai da, então, menina, ao suicídio). 
Ademais, Deneuve tem um significado simbólico nesta mostra que homenageia o cinquentenário de Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, de Jacques Demy, 1967) – esta sim, uma sublime releitura dos musicais hollywoodianos, tão crítica quanto mágica. Sua Béatriz é avó de sua Delphine – a garota romântica que deixa Rochefort para encontrar o amor e a fama em Paris. O trajeto aqui é diametralmente oposto: Béatriz volta a Paris depois de um interminável séjour europeu para encontrar um passado em ruínas e para ela própria ruir, ao cabo da história. Vista a partir deste contraponto simbólico, a situação do atual cinema francês é lúgubre. 
Tour de France (de Rachid Djaidani, 2016) e Frantz (de François Ozon, 2016) abraçam cada qual um gênero consolidado: o road movie, o primeiro, e a ficção histórica, o segundo. São ambos bem acabados, esteticamente honestos. Duas pregações sobre a humanidade que se sobrepõe às diferenças religiosas e geográficas, reflexos deste contexto de fechamento de fronteiras e pregação de ódios. O primeiro coloca em disputa simbólica pela voz e pelo espaço cinematográfico duas gerações, dois gêneros musicais: Gerard Depardieu e Sadek, a história viva do cinema francês (amante, no filme, do clássico cancioneiro francês) e o hip hop (e com ele, as novas mídias sociais, os novos públicos massivos). 
Desnecessário dizer quem leva a melhor – a crista da onda sobrepondo-se à tradição, pintadas uma e outra de modo dicotômico (a personagem de Depardieu como o reacionário nojento que abomina os árabes e a cultura das ruas; a de Sadek – mimese do próprio cantor, que decola na França – como a voz dos jovens, das ruas, das mídias). A representação da vitória final do jovem serve ao gosto contemporâneo – no palco de um megashow em que ele recebe a benção dos seus ídolos. É bem verdade que é política a pintura idealizada da personagem de Sadek – belíssima é a cena em que ele declama O Albatroz, de Charles Baudelaire, ao seu inopinado colega de viagem –, servindo como imposição ao público comum de um estilo musical ainda estigmatizado. Estigmatizado, mas consumido com avidez pelas parcelas jovens do público. Levá-lo ao cinema me parece, antes, um esforço de impô-lo ao público cinematográfico – aquele público que ainda prefere a sala escura aos dispositivos móveis ou à Netflix. Povo à beira do desaparecimento, como o reacionário desempenhado por Depardieu, espelho de Marine Le Pen. Ou, hélas, como o próprio Depardieu, já decrépito - embora divino. 
Frantz, por fim, é um filme interessante, mas estranho. Baseado frouxamente numa obra de Lubitsch (Broken Lullaby, de 1932) que eu não vi, mas, rodada no entre-guerras, provavelmente seguia a pegada antibelicista de O Grande Desfile (1925) e Adeus às armas (também de 1932), fabula sobre o encontro entre um soldado francês e a família do soldado alemão que ele matara no front. Quando comparado à obra original, altera-se aqui o foco: Lubitsch, alemão, ficciona sobre a morte de um conterrâneo, Ozon, de um oponente. Frantz gira em torno da necessidade de perdão do assassino imprevisto, igualmente vítima do conflito absurdo. O filme realiza uma leitura distanciada do passado à maneira como Ozon empreendeu anos antes, em Potiche (de 2010), no que tocava aos musicais de Demy. Mas a densidade do tema parece impedir, aqui, a fluidez do jogo. 
A mim, ao menos, soou incompreensível o tipo de leitura do passado, a oscilar o preto & branco e o colorido (a cor às vezes funciona como metáfora do falseamento da realidade, enquanto que às vezes pinta de modo algo tacanho a felicidade em meio ao infortúnio). 
O resultado é algo pretensioso, embora carregue, em boa medida, a acidez típica de Ozon no enfrentamento da realidade contemporânea (e dentro dela, do atual estado do cinema contemporâneo). Em carta ao povo de casa, a menina finge que tudo está bem, e persiste na cidade cosmopolita, longe do provincianismo de onde viera, até encontrar alguém que sirva de substituto verossímil ao seu amor perdido. Aí está o cinema francês, estendendo-se frágil a tocar um passado glorioso - cada vez mais distante -, dobrando-se a substitutos plausíveis, na falta da grandiosidade perdida.

terça-feira, 12 de março de 2013

Molière a domicílio: “Alceste à bicyclette”/"Pedalando com Moliére" (2013)

A sempre aquecida indústria cinematográfica francesa não raras vezes nos oferece pérolas. Como este “Alceste à bicyclette”, comédia a meio-tom em que os ótimos Fabrice Luchini e Lambert Wilson oferecem ao público duas irresistíveis versões de Alceste, o misantropo personagem título da obra-prima de Molière. 
A rigor, o Alceste contumaz aqui é Fabrice Luchini. 
Fabrice Luchini:  Serge Tanneur/Alceste
O personagem, não o ator. Luchini é o oposto do ser descrente da natureza humana criado por Molière, que não poupa vitupérios à vida de aparências da corte, da qual decide ao final se apartar, transformando em ação as palavras que profere na primeira cena do ato 1: “Et parfois il me prend des mouvements soudains/ De fuir dans un désert l’approche des humains” (“Às vezes tenho impulsos repentinos/ De fugir para um deserto à aproximação dos humanos.”). Luchini é um operário da arte, a oficiar no teatro de forma quase que ininterrupta e nos cinemas de maior e menor apelo popular. 
Culto como Alceste, o ator tem uma visão bastante arguta sobre seu ofício, ao ponto de notar recentemente, em entrevista à revista da UGC, quanto o cinema é obrigado a ceder à sua faceta “industrial” – e, portanto, fazer concessões ao público e aos investidores –, coisa que não acontece com o teatro, cujo staff reduzido aumenta o grau de liberdade do ator. Por isso, talvez, ele tenha sido um dos autores do tema que se transformou no roteiro de “Alceste à biclyclette” (o outro é Philippe le Guay, responsável pelo roteiro e pela direção). 
O filme enlaça com elegância cinema e teatro. O Alceste do título é Serge Tanneur, ex ator que decidiu “fugir da presença dos homens” depois de experimentar dissabores oriundos do métier. O “deserto” escolhido por ele é a casinha que herdou do tio em L’île de Ré – ilha francesa onde, segundo Gauthier Valence, seu arguto replicador, “on se géle” (“a gente congela”). Valence é interpretado por Lambert Wilson, ator dotado na mesma medida de talento e beleza. O talento pode ser checado em “Homens e Deuses”, grande filme que os leitores certamente viram. Já a beleza cai como uma luva ao papel que ele interpreta, de ator principal num seriado de TV de gosto duvidoso, uma variante de “Plantão Médico”. 
Lambert Wilson/ Gauthier Valence
No meio do rebotalho televisivo, Valence sonha com a glória da ribalta. Deseja levar à cena um Molière. E logo “a peça francesa mais difícil de ser representada”, na opinião de Serge Tanneur, homem que é o exemplo vivo da filosofia do misantropo. Na gélida e cinzenta Île de Ré, o solar Valence tentará convencer o soturno Tanneur a se juntar a ele na empreitada, porém, não no papel de Alceste, e sim no de Philinte, o cortesão alinhado ao status quo da peça. 
“Eu toda a minha vida sonhei em ser Alceste”, diz Serge Tanneur. 
Daí em diante, o filme abraça a defesa da identidade entre ator e personagem, questão que tanto pano pra manga já deu. O bom é que ele a abraça com bom rendimento cênico. Com o clássico em punho, os dois experimentados atores oferecem possibilidades cintilantes para os versos de Molière. 
O entrecho é simples assim: ambos deverão ensaiar a peça até que Tanneur se decida se vai ou não fazê-la. As leituras se sucedem, ora determinando acontecimentos da vida pessoal dos atores, ora sendo por eles determinadas. Na sem-cerimônia dos ensaios realizados na casinha, a jovem atriz pornô, teoricamente improvável intérprete do clássico Molière, torna-se uma perfeita Célimène. Amaciado pela presença do amigo, Tanneur paulatinamente abre mão de sua pele de misântropo, e já está prestes a aceitar sua sugestão, de ambos se alternarem em cena no desempenho de Alceste, quando Valence mostra estar mais para Oronte que para Philinte (Oronte é, na peça - spoiler - o bajulador amante de Célimène). 
“O Misantropo” acaba lugubremente, e também o filme. A identidade ator/personagem atinge o ápice quando Valence descobre-se, ante o público, impossibilitado de pronunciar o repúdio final de Alceste à natureza humana, versos que, segundo Tanneur, em tudo contrariavam a natureza do amigo: “Adquiri um ódio terrível pela natureza humana” (“j’ai conçu pour elle une effroyable haine”). Ator bonitão, a desfrutar do brilho fugaz de um métier dominado por egocentrismo e falsidade, Valence ainda não podia, como Tanneur, sentir o peso das palavras de Alceste. 
“Alceste à Biclyclette” não apresenta uma visão extremamente original do ofício. Porém, orquestra o enredo com coesão. Ademais, oferece aos dois atores principais chances iguais de brilharem no campo do drama e da comédia. Apresenta ainda uma visão arejada, despida de preconceitos, sobre uma porção de temas, como os “Films X” (jargão da área para se referir ao gênero pornô). E, sobretudo, coloca Molière em primeiro plano, nas bocas de dois grandes, que durante todo o tempo debatem sobre questões emergentes que dizem respeito à adaptação dos clássicos à cena moderna. Estou com o meu “Misântropo” devidamente lido e anotado, ele que foi meu companheiro de tantas filas... Quantos outros o filme não induziu a fazer o mesmo? Aí está uma bela maneira de a cultura popular dar as mãos à erudita, de o teatro confraternizar com o cinema.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O teatro no cinema: “Cesar doit mourir” (2012), “Vous n’avez encore rien vu” (2011), "Traviata et nous" (2012)


Três bons filmes em cartaz por aqui atualmente trazem a mesma questão de fundo, a de como o cinema representa o teatro: “Cesar doit mourir” (Cesare deve morire, 2012), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro de Berlim; “Vous n’avez encore rien vu”, de Alain Resnais e Bruno Podalydès, nominado à Palma de Ouro, e “Traviata et nous”, de Philippe Béziat. Cada um se debruça sobre um gênero distinto – a tragédia, o drama e a ópera – e sobre o passado, fazendo-o reverberar novamente no palco, a arte da presença, e enfim na tela do cinema, lugar em que o passado é embalsamado, como diz André Bazin... 
Digna de nota é não apenas a escolha do assunto, mas o mise-en-scène dessas produções. 

Cesar...” toma a tragédia de William Shakespeare “Júlio César”, recriando a Roma do bardo inglês no seio de Rebbibia, prisão de segurança máxima romana. Internos transformam-se nos reis, tiranos, escravos e homens livres. Transformam-se neles e os transformam. No contexto de tolhimento da liberdade em que se encontram, quanto mais se aproximam de seus personagens, mais eles conseguem dar voz aos seus temores e anseios. A obra de Shakespeare é, então, impregnada dos dissabores individuais daqueles homens, alguns dos quais jamais transporão os muros da detenção. 
A recíproca também é verdadeira. Eles conhecem bem os coups de théâtre, as reviravoltas repentinas que determinam o futuro dos homens. Por isso parecem tão bem talhados a encenar o percurso do rei que se torna tirano, acabando, enfim, assassinado pelo seu círculo mais próximo. A prisão transforma-se em laboratório e divã. E a arte exerce, enfim, todo o seu potencial disruptor: dá asas ao grupo, que descobre sua força ao transcriar a tragédia shakespeariana, e tolhe-a, ao encerrar a Roma eterna do dramaturgo inglês em torno das grades de Rebbibia. Cosimo Rega, um dos internos do complexo, o Cassio da obra, sintetiza bem isso ao constatar que as grades apenas se tornaram para ele uma prisão depois que ele descobriu a arte. 

Vous n’avez encore rien vu” toma como objeto o drama “Eurydice”, de Jean Anouilh, encenado pela primeira vez no Théâtre de l’Atelier em 1941. Drama que, por sua vez, recria a fábula de Orfeu e Eurídice. Neste caso a protagonista é atriz de uma companhia mambembe que se apaixona perdida e reciprocamente pelo jovem músico que encontra na estação de trem. O realismo fantástico conduz a ação. Depois de morta a jovem, o rapaz conhece seus antigos relacionamentos. Louco de amor e ciúmes, ele aceita a ajuda de um deles para tornar a encontrá-la, apenas para perdê-la novamente, já que não respeita as exigências do homem e a olha. 
Diferente de “Cesar...”, o drama aqui dá os braços a um fio de enredo: dois elencos antigos de “Eurydice” encontram-se depois da morte de seu autor – personagem fictício – por uma disposição testamentária dele. Juntos devem assistir a uma recente encenação do drama e opinar sobre ela: encenação simbólica, bem ao gosto contemporâneo. Sentados na sala escura do cinema tornado teatro, os artistas que outrora deram vida à peça são pouco a pouco impregnados pelos personagens, até que novamente tornam-se eles, encetando uma relação dialética com o teatro-filme apresentado no écran
Cenas fundamentais da obra são recriadas, várias delas experimentadas por cada um dos dois pares românticos que até então ocupavam passivamente a plateia. Aqui o que importa não é o sentido completo da criação, mas a poesia das palavras e dos gestos. No fim temos um encorpado exercício de desdobramento. Não mais uma, mas três Eurydices e três Orpheus se alternam para demonstrar a inexistência de sentidos fechados, unívocos, para a obra artística. “Eurydice” pode sempre renascer. Ainda mais no centro do palco, onde tudo é sempre novo. Uma homenagem ao teatro que se rende até mesmo a um explícito coup de théâtre, que não conto para não estragar a surpresa do espectador... 
Para o público brasileiro o filme apresenta dois atrativos especiais: Lambert Wilson, do ótimo “Homens e Deuses” (Des hommes et des dieux, 2010) como um dos Orfeus e Michel Piccoli do igualmente ótimo “Habemus Papam” (2011) como os dois pais. Eles desempenham-se num só tempo a si próprios e aos papéis de “Eurydice”. Teriam eles efetivamente composto os elencos de duas montagens distintas da peça? Não consegui responder a questão. Gostei no entanto, do entremear da ficção na realidade. 

Traviata et nous” percorre os bastidores da montagem da célebre ópera de Verdi para um festival ocorrido em Aix-en-Provence na primavera de 2011 (mise-en-scène de Jean François Sivadier, maestro Louis Langrée). Uma espécie de making of, diríamos à primeira vista – já que a encenação da própria ópera já está disponível para a venda –, não fosse o esforço que faz o documentário em negar a obra teatral para se concentrar na maquinaria que a engendra. 
Ideia luminosa, pois por mais eficiente que parece ter sido esta montagem, a ópera de Verdi continua a ser a boa e velha “La Traviata” cujas árias caíram nas graças do público há mais de 100 anos, espalhadas por meio do palco, de partituras, do cinema e do teatro – lembrem-se, no que toca ao cinema, da Júlia Roberts de “Uma linda mulher” (Pretty Woman, 1990) banhada em lágrimas ao som de “Amami Alfredi” ou do ébrio de Ray Milland acompanhando sedento os copos em “Farrapo Humano” (The lost weekend, 1945) enquanto o tenor entoa “Libiamo ne’ lieti calici” (como a-do-ro o humor negro de Billy Wilder...). 
Ao jogar luzes para o processo de criação desta montagem de “La Traviata”, Philippe Béziat repõe o interesse intelectual por essa ópera já tão conhecida. 
“La Traviata” é obra de grande espetáculo adaptada por Verdi de um grande sucesso literário e teatral de meados do século XIX – “A Dama das Camélias”, de Dumas. É de uma época de teatros ruidosos, claros, aos quais importavam especialmente o aparato cênico e a voz; daí o transbordamento geral dos gestos e das notas. 
Béziat opta por dar destaque ao detalhe. Portanto sublinha o trabalho de Sivadier no sentido de reduzir os cenários, multiplicar os símbolos e ajudar Natalie Dessay a criar uma Violeta cujo rosto expressa tanto quanto a voz. O filme evidencia bem o esforço do encenador, ao recortar a atriz em primeiros planos quando ela está mais plenamente mergulhada na personagem. Um mover de olhos, as mãos que acariciam o amado corpo imaginado, nascido de um arranjo de flores esquecido no proscênio. Fundamental na ópera, a voz torna-se aqui só mais um elemento da criação. O filme investe na elucidação do mise-en-scène que tornou possível o resultado final. 
Mas o resultado final a gente não vê. Esse e os outros dois filmes partem do teatro para torná-lo cinema, por isso eles me são tão interessantes nesse momento. Um truc fundamental nesse sentido é a inserção, em “Traviata et nous”, de uma sequência em que se sucedem fragmentos da morte de Violeta, tomados durante os ensaios. Serviriam eles como metáfora do cinema, que prima pela reprodução, ao contrário do teatro, ao qual importa o gesto final, perfeito? Ainda não sei. Mas o fato de a produção cinematográfica de hoje estar insistindo em questões como essas me entusiasma a pensar um pouco mais sobre elas.

Violeta aprende a fazer Alfredo presente
*
A parte da resenha referente a "Traviata et nous" foi ligeiramente reformulada em 15/11. Demorei uns dias para me dar conta de que o diretor do documentário e o responsável pela mise-en-scène da ópera não eram as mesmas pessoas, e outros tantos dias para ter tempo de consertar meu equívoco...