“Núpcias de Escândalo” é conhecido como o filme que salvou a carreira de Katharine Hepburn. Kate, que no início dos anos 30 fora considerada uma das maiores promessas de Hollywood (recebeu o Oscar de Melhor Atriz por uma de suas primeiras incursões na tela grande, quando interpretou a também atriz iniciante em “Morning Glory”, de 1933) teve, no fim da década, colada à sua imagem o rótulo de box office poison, o qual a obrigou ao exílio das telas e à dedicação ao teatro – retornando ao meio do qual ela se afastara no início da década, depois de uma série de produções mal-sucedidas.

O sucesso da peça na Broadway (foram 417 performances entre março de 1939 e março de 1940) fez com que a atriz arguta convencesse o bilionário Howard Hughes (essa fase da vida conjunta dos dois é narrada em “O Aviador”, 2004) a lhe comprar os direitos da peça; direitos que ela depois vende à Louis B. Mayer, obtendo em troca a garantia de que repetiria nas telas o papel que a consagrara no palco.
O resultado é antológico. A peça de Barry, adaptada à cena por Donald Ogden Stewart (vencedor do Oscar de melhor roteirista pelo trabalho), é brilhante. Mas é ainda um tanto quanto teatral, portanto, o sucesso da empreitada coube igualmente a George Cukor, cuja batuta competente fez com que o elenco baixasse o tom nalguns diálogos pomposos, o que só fez o filme ganhar em realismo e em poesia.
Kate, Cary e Jimmy usam bem o texto eloquente, com laivos de romantismo rasgado, mas isso também porque as palavras altissonantes recheiam ideias densas. Tracy reencontra o ex-marido e ex-bebedor convicto C.K. Dexter Haven (Cary Grant), um nome que derrama aristocracia, um dia antes de seu casamento com um novo-rico. Na superfície, o homem parece querer ir à forra: “Quando eu descobri que meu papel não seria de um marido amoroso, mas sim o de um alto sacerdote para uma deusa virgem, aí minhas bebedeiras começaram a ficar mais profundas e frequentes.” - eis o nivel da prosa.
Miss Lord (aristocrata também no nome), a "deusa pálida e fria" que, segundo o ex-marido, certa noite se embebedara e subira nua no telhado – “com
os braços apontados para a lua, uivando”: “aquilo foi muito importante e revelador. A lua também é uma deusa... Casta e virginal.”, ele completa – surpreendentemente será degelada por um tipo pouco convencional: o cronista mundano e escritor sério nas horas vagas Macaulay Connor (James Stewart).

Connor vitupera seu ganha-pão. No entanto, movido pelas circunstâncias a cobrir o casamento da aristocrata, não demorará muito a descobrir que a armadura de frigidez empunhada pela moça encobre uma alma muito parecida com a dele. Tanto que, tocados pelo álcool, ambos protagonizam uma das cenas românticas mais sensacionais do cinema, com direito aos ditos mais grandiloquentes, que se tornariam uma patacoada se não estivessem envoltos num contexto tão arrebatador. Nos braços de Mike, Tracy se torna uma “mulher de ouro”, “de carne e osso”, “iluminada por dentro por labaredas e holocaustos”. A deusa de gelo finalmente é derretida – o fogo restante do incêndio será apagado pelos dois num banho de piscina...
Mas o filme é antes de tudo uma comédia – e talvez seja por isso que a censura não lhe tenha retalhado cenas como a acima. É um dos últimos exemplares das screwball comedies – filmes que conjugavam com maestria a agilidade dos diálogos, das ações e dos movimentos de câmera, sem deixar de lado a nobreza dos caracteres. Mesmo as sequências mais românticas são acenadas com piscadelas cômicas. E não só quando há o choque entre os caracteres e ways of life distintos:
Mike e sua amiga fotógrafa bisbilhotando a casa da ricaça pela primeira vez (“Você não sabia que é preciso ser podre de rico pra morar numa bagunça dessas?”, diz a moça vendo os bibelôs da casa); Tracy fazendo pose de boa moça para impressionar o jornalista e a fotógrafa que ela é obrigada a receber; C.K. Dexter Haven fingindo-se de marido ofendido ao ver a ex-mulher nos braços do jornalista; Mike entoando canhestramente “Over the rainbow” para uma Tracy ébria e de roupão, sob os olhos do ex e do futuro marido da moça. Isso sem contar a inesquecível sequência inicial, flagrante jocoso dos momentos que antecedem o divórcio do casal, quando ambos resolvem sua diferença no braço e um taco de golfe leva a pior...
Mas o filme é antes de tudo uma comédia – e talvez seja por isso que a censura não lhe tenha retalhado cenas como a acima. É um dos últimos exemplares das screwball comedies – filmes que conjugavam com maestria a agilidade dos diálogos, das ações e dos movimentos de câmera, sem deixar de lado a nobreza dos caracteres. Mesmo as sequências mais românticas são acenadas com piscadelas cômicas. E não só quando há o choque entre os caracteres e ways of life distintos:

E enquanto romance e comédia se enlaçam do jeito mais delicioso possível, não é só Tracy que deixa a torre de marfim para encetar um corpo-a-corpo com o mundo errático: Mike reaprende a enxergar os endinheirados, tomando para si a lição do personagem de um dos contos que escrevera: “Sempre tenha paciência com os ricos e poderosos”. O único a passar incólume pelo dia de exceção é C.K. Dexter Haven, munido desde o princípio daquela sabedoria que só o sofrimento consegue construir. No final das contas, ele é quem melhor entende a jovem Tracy Lord, desde o princípio. Porém, ela precisará fazer logo sua escolha entre o novo-rico, o intelectualizado jornalista e o ex-marido. Os convidados já estão esperando.

