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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de densidade psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato, e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

domingo, 28 de abril de 2019

Secret in their eyes/Olhos da Justiça (2015) e a cultura do medo

A relação de afeto que tenho com o cinema por vezes se superpõe ao meu lugar de analista. Por exemplo: demorei quatro anos para conseguir assistir à versão norte-americana de "El secreto de sus ojos" (2009), filme que tem para mim uma importância simbólica, já que me descortinou o cinema argentino; e que tanto amo ao ponto de tê-lo abordado aqui duas vezes, exceção absoluta no que toca ao blog
Uma versão de um filme invariavelmente carrega o ônus do original. Se ela recupera uma obra-prima, torna-se de saída uma empreitada temerária, dado o risco de não conseguir ombreá-la. É o caso aqui. Guillermo Francella (o deliciosamente irônico Pablo Sandoval da obra original) já antecipara que a versão se tratava de obra anódina. Longe de ser ruim – trata-se de uma produção decente, com um elenco estelar, dez vezes mais cara que a original ($19.500 milhões contra os $2.000 milhões) –, a obra padece daquilo que em inglês se classifica como: “to miss the point”. 
Exemplo mais cabal disso é a subutilização daquilo que é mote do thriller de Campanella: os olhos que se traem; num só tempo referência literal aos amantes malogrados, que lidam de diferentes modos com a desilusão amorosa, e metáfora do olho da câmera, que oferece ao espectador uma janela para o mundo – janela ambivalente, trucada, feita de retalhos, conforme a insistente escritura e reescritura da história, realizada por Benjamín no fio da obra, não deixam mentir; quando não, o olho fetichista da câmera, a transformar o visto em objeto de culto. 
Os contornos do thriller são decalcados segundo a obra original (a versão dá os créditos do roteiro a Juan José Campanella, o roteirista/diretor do filme original, e ao autor da obra literária da qual este filme foi depreendido, Eduardo Sacheri): há um caso sórdido de estupro seguido de morte, que assombra os envolvidos por um carrada de anos. Eliminada a metáfora do olhar, com todas as suas ricas imbricações, a versão norte-americana oferece-se como um thriller comezinho. O corpo da obra de Campanella jaz, assim, sem alma – por isso é acertado o título em português, “Olhos da Justiça”, em detrimento da tradução literal do título da obra em espanhol, utilizada na versão norte-americana. 
Todavia, mais produtivo que elencar os defeitos da versão seria, penso eu, entendê-la no contexto em que foi feita, a que questões ela responde e que artifícios utiliza para tal. 
A obra é dirigida por Billy Ray, que é diretor bissexto, mas escritor de carreira mais extensa, responsável pelos roteiros de thrillers de cepas diversas: da obra baseada em fatos reais “Capitão Phillips” (Paul Greengrass, 2013), à distopia adolescente “Jogos Vorazes”, ao suspense psicológico “Plano de voo” (Robert Schwentke, 2005). 
Ray constrói um roteiro funcional, apoiado intensamente no páthos – abre-se pouco espaço para os respiros cômicos que são a alma de “El secreto de sus ojos”, esta obra em que o riso e a dor sublimemente se misturam. 
Uma modificação fundamental na trama, responsável por sua incontornável melancolia, é a introdução da vítima no núcleo central do protagonista. A Liliana Coloto de Campanella é uma personagem fantasmática, olhada pelo filtro de Benjamín, criado, por sua vez, a partir da narração idílica de Ricardo Morales, o marido desolado da vítima. A ficcionalização e o distanciamento transformam Liliana na substância etérea na qual Benjamín projetará Irene, o seu amor recalcado. Irene e Liliana se misturam, assim como se misturam, na montagem, os olhos do criminoso e do homem apaixonado – toda a dimensão fetichizante do olhar e do olho da câmera presentes nesta construção. 
“Olhos de Justiça” despe-se das metáforas em prol da literalização mais sórdida. O homem estranho que perde a esposa, no thriller de Campanella, torna-se Jessica Cobb (Julia Roberts), a policial colega do protagonista Ray Kasten (Chiwetel Ejiofor), e a esposa recém-casada é transformada na virginal filha de Jessica, estuprada nas vésperas de partir para a universidade. 
 Situada numa “América” imediatamente posterior aos ataques terroristas de 2001, “Olhos de Justiça” suplanta a ditadura argentina pela ameaça árabe. Compõe, portanto, a seara de filmes rodados desde antes do episódio, calcados no terrorismo, a exemplo de “Nova Iorque Sitiada” (Edward Zwick, 1998). O "outro" é desde sempre olhado pelos States como inimigo. Malgrado o distanciamento temporal do “11 de Setembro”, a obra de Billy Ray não consegue lançar ao episódio uma visada perspectiva, seguindo a atribuir a culpa do crime estritamente aos árabes. 
Embora beire o inverossímil, a trama procura se explicar em detalhes: o estuprador é um árabe informante da polícia, frequentador da mesquita que é célula de uma organização terrorista; acobertado por um policial da organização de Ray Kasten – o qual queima provas no intuito de eliminar suspeitas sobre o estuprador, em nome de uma causa maior: a libertação dos EUA da “ameaça árabe” (hélas...). Estamos aqui, como se vê, mais próximos de “Duro de Matar” e tramas policialescas dicotômicas do tipo do que de “El secreto de sus ojos”. 
Sem ter conseguido se tornar um blockbuster, “Olhos de Justiça” reproduz o modus operandi de thrillers do tipo. Tem dificuldade, no entanto, de criar o par romântico que é parte da sustentação do gênero. A eliminação da metáfora do olhar denota um problema estrutural da trama, que é a completa falta de química entre Ray Kasten e Claire Sloane (Nicole Kidman). Há uma insistência verbal num amor que perpassa uma década, mas o público não enxerga qualquer faísca. Por isso, quem sabe, o filme não se fecha na promessa de um enlace entre ambos, como a obra original, mas sim numa despedida - Clair novamente retornando à casa e ao marido seguro, embora não o ame. Porém, lamentavelmente não faz diferença ao público; o casal não convence. 
A obra é toda banhada por uma melancolia imensa, que não abre espaço para qualquer sopro de luz. Uma ótima Julia Roberts – de longe quem se sai melhor no drama – sofre uma incontornável culpa por ter imposto à filha a ida ao evento do escritório no qual a menina acaba por conhecer o rapaz que viria a persegui-la, a estuprá-la e a matá-la. Flashbacks nos mostram a jovem cheia de vida, a anunciar à mãe incrédula que ela “acabara de encontrar alguém”; a nutrir com a mãe uma relação umbilical que beira a patologia. Se a polícia é corrupta, a única chance de punição passa pela violência, imposta pelas próprias mãos desta mater dolorosa – patenteada, na trama, por uma surpreendente sequência final que se passa longe das vistas do público. 
A que questões prementes dos Estados Unidos "Olhos da Justiça" responde? Ao seguir voltando olhos suspeitosos aos árabes – o eterno “outro” –, ao articular as questões a partir da dicotomia lar seguro/ rua perigosa, este thriller reinsere na pauta a cultura do medo, aderindo, à maneira de "Nascimento da Nação" (Griffith, 1915), aos cânones do melodrama clássico, âmbito do “Home is where the heart is”* (que, aliás, é tema de um ótimo livro sobre o melodrama no cinema norte-americano). A “casa” sendo, neste contexto, entendida como o lar de Jessica Cobb – quando não o seu ventre... –, o único espaço de proteção de sua filha; e, num sentido lato, tomada como metáfora dos Estados Unidos, em sua luta recorrente para se ver livre daquele que é diferente, classificado de saída como o “outro” invasor. Dois anos antes de Trump, “Olhos da Justiça” prenuncia-o. 

*"Home is where the heart is”, studies in melodrama and the woman’s film. Edited by Christine Gledhill. London: BFI Publishing, 1987.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

“Todos lo saben”/“Everybody knows” (Asghar Farhadi, 2018): melodrama revirado

Asghar Farhadi, artífice de duas obras premiadas com Oscars de Melhor Filme Estrangeiro entre em 2012 e 2017 – A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) e O Apartamento (Forushande, 2016) –, redireciona a objetiva do Irã a um vilarejo enfronhado na Espanha, reino cuja luz dourada inesperadamente escamoteia arraigados preconceitos. 
Farhadi nunca consegue ser tão eficiente distante de sua terra natal quanto o é entre os seus. Seus filmes oscarizados – o primeiro, uma obra-prima – são bastante mais bem resolvidos que O Passado, filme realizado entre ambas, com o qual ele migra do Irã à França, debruçando-se longa e arrastadamente sobre um casal multiétnico composto por uma francesa (Bérénice Bejo) e um iraniano (Tahar Rahim), que a abandona e aos filhos para retornar à sua terra. 
A trama de O Passado equilibra-se de modo pouco estável entre o drama familiar e a trama policialesca – mistura equilibrada de forma modelar no extraordinário A Separação, e igualmente bem dosada em O Apartamento¸quiçá porque, nessas duas obras, os dramas individuais embebem-se na seara coletiva, já que o meio social é o responsável por forjar os silêncios e os cerceamentos. 
Todos lo saben, sem ser uma obra-prima, vai por este caminho mais sólido. Mergulha fundo numa família tradicional espanhola, lançando luzes sobre as suas fissuras. Eu ouso pensar que, nesta obra, o objeto central é o gênero melodramático: que ao mesmo tempo serve de molde à intriga narrada pela obra e é revirado e ironizado, já que é visto de fora, pela câmera migrante do diretor. 
Dificilmente poderíamos dizer que a cinematografia ocidental é uma estrangeira para Farhadi. A Separação é, pelo equilíbrio no trabalho entre o suspense e a surpresa que realiza, pelo timing preciso de thriller que tem, bastante tributário da obra de Hitchcock. Igualmente, a presença, em suas obras, da nata dos artistas estrangeiros, denota que o diretor tem trânsito fluído pela cinematografia mainstream
Em Todos lo saben, dividem a cena três grandes: Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín: um triângulo amoroso, percebido logo de saída pelo espectador – o melodrama é feito de maceradas convenções, que eliminam da narrativa quaisquer porosidades. 
A trama divide-se em três atos, a exemplo do que se dá nos clássicos do gênero melodramático: 
1- Laura, personagem de Penélope Cruz, chega ao vilarejo espanhol, vinda da Argentina, com os dois filhos, para o casamento da irmã. O marido argentino queda-se doente em casa, a filha constrói a ponte entre a família e as duas nacionalidades, por meio de uma chamada de vídeo ao pai. Para além da apresentação do núcleo familiar que se consegue daí, observa-se que a presença da câmera, o myse-en-abyme, é uma constante neste melodrama, o qual, sem negar as convenções do gênero, coloca-as diante de um espelho. Já no vilarejo, a terceira ponta do triângulo ingressa na obra: Bardem/Paco, namorado de juventude de Laura. 
2- Constroem-se as tensões: a saída de motocicleta da luminosa filha de Laura, com o seu namoradinho espanhol (repetição da história de Laura e Paco); o drama da irmã mais jovem, deixada com a filha pelo marido que vai tentar a sorte noutro país; a química inquestionável entre Laura e Paco. Casa-se a irmã, enquanto, na torre da igreja cujo sino fora anos antes consertado graças à doação de Laura e do marido, pombas desarvoradas chocam-se contra o vidro, e o namoradinho da menina lhe dá detalhes do affair pregresso entre Laura e Paco. A multidão ruidosa, observada numa subjetiva pelos olhos do pequeno filho de Laura e Alejandro (Darín), ganha contornos de turba descontrolada. Tempestade, queda de energia. O nó dramático chega ao ponto culminante. Farhadi, que é bom manejador do suspense, multiplica as veredas com inquestionável ironia, para que o público se perca por elas no intuito de desvendar um crime que ainda não se deu, todavia, é prenunciado desde antes da abertura da obra, já em seu cartaz. 
3- No terceiro ato se esquadrinha o sofrimento de Laura e do marido – que àquela altura já se juntava à família espanhola – frente ao sequestro da menina. Cobra-se um resgate que os pais falidos não podem pagar. Paco, antigo funcionário dos pais de Laura, pobre e vilipendiado, que ascende socialmente depois de ter comprado as terras da antiga namorada, ouve dela a incontornável confissão da paternidade da menina sequestrada. Moralmente imbricado na ação, caberá a si o desenlace do conflito, que o obriga a abrir mão dos bens que conquistara. 
Contado assim, Todos lo saben soa um thriller previsível, já que subsumido na estrutura convencional do melodrama. A paternidade da menina é fato notório de todos, já diz o título; mesmo o público logo se dá conta do fato. 
A força do filme está, a meu ver, no olhar a contrapelo que ele lança ao gênero, minando-o a partir de sua base. 
Por exemplo, no âmbito da casa. Gênero burguês, o melodrama elege a propriedade (privada) e a família nuclear como o espaço da segurança, cercando-o por muros que explicitamente dividem o interno do externo. O vilão vem de fora, e ora insinua-se dentro do núcleo familiar, contaminando-o, ora carrega dali o herói. 
Todos lo saben adota a ambivalência, que é, no entanto, invertida. À medida que se esquadrinha a casa, a câmera faz emergir ódios vicerais. Paco é a todo o momento considerado “o estrangeiro” por aquela família tradicional; presença incômoda por sua ascensão social ocorrida após a aquisição da porção da propriedade familiar que cabia a Laura. E o mal brota, ali, não de fora, mas de dentro, cria do preconceito virulento nutrido pelo patriarca. 
Outra característica fundamental do gênero melodramático olhada com visada irônica por Farhadi é o cristianismo. Darín é Alejandro, o cristão carola que doa o dinheiro para a reforma do sino da igreja – personagem inglória, que ele desempenha com a sua costumeira agudeza. Na casa dos sogros, é ele quem puxa um anacrônico louvor à mesa, antes do café da manhã. A Paco, afirma que Deus o salvou ao ter adotado para si a filha do outro. E ao fim e ao cabo, prefere o silêncio a ter de revelar a verdade à filha. 
No plano fílmico, o silêncio ensurdecedor emerge no filme do casamento, que a família vê ad nauseam no intuito de encontrar algum indício do criminoso. Blow Up (1966), a obra-prima de Antonioni, é o mais cabal modelo de filme em que a câmera exerce o papel delator – thriller surpreendente, em que a câmera fotográfica ganha foros de câmera cinematográfica, em que os closes, manipulados pela revelação perspicaz, fazem emergir a verdade. Já em Todos lo saben, o notório conhecimento coletivo que dá título à obra surge aos olhos do mundo como escamoteamento. Nada se depreende daquelas imagens do casamento, que se desenrolam aos olhos do público enquanto a ficção feliz de uma família proba. 
Já a mencionada hipocrisia encoberta pelo manto da religião encontra outra bela imagem quando a matriarca da família narra ao pai a verdade sobre o sequestro, sob os jatos d’água do caminhão da prefeitura, que de uma mesma feita lava a ambos e ao cruzeiro, à guisa de perdão. Como se vê, embora a menina retorne, o final feliz típico do melodrama é, aqui, colocado entre aspas. O manto translúcido de água, que silencia e obnubila os velhos, ao final da obra, serve de metáfora ao barro putrefato dos preconceitos que corre subterrâneo no seio dessas famílias tradicionais pretensamente solares, emergindo a qualquer possibilidade de surgimento do novo, a qualquer ameaça de abalo do status quo, e engolindo tudo por onde passa, com a sua viscosidade inescapável.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O “Don Carlos” de Verdi (1867) na Opéra Bastille: a eternidade num sopro

Antonio Arnoni Prado, professor demasiado importante e querido, dizia-nos que uma obra de arte é estrela numa constelação: ao surgir, rearranja o espaço; passa a refletir na relação com aquelas que estão em derredor, emprestando-lhes seu brilho, tomando o brilho delas. Já nós, céus em miniatura (a analogia, mais picaresca que arrogante, é minha; perdoem-na), não somos menos buleversados e rearranjados quando uma obra de gênio nos atravessa. 
Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa. 
“Don Carlos”, gloriosamente ressurgido na Bastilha, numa montagem controversa do polonês Krzysztof Warlikowski (vaiada por uma metade da sala e aplaudida entusiasticamente por outra, na qual eu – que a vi no dia 13 de outubro – me incluía) vem para corroborar a regra. A encenação traz a trama seiscentista a uma modernidade kubrickiana, delirante. Se abandona o caráter histórico do libreto, tem o mérito de situar a ação num solo poroso que estabelece liames indiscutíveis com a nossa realidade, em âmbito transnacional; daí a emoção que me tomou enquanto eu a via. 
Don Carlos (Jonas Kaufmann) e Rodrigues (Ludovic Tézier)
Transposições e fissuras já marcam o libreto que Joseph Méry e Camille du Locle escreveram em 1867, a partir de um drama de Friedrich Schiller que antecedera em dois anos a Revolução Francesa: “Don Karlos, Infant von Spanien”, de 1787. Schiller mergulha no passado com os olhos daquele presente pré-revolucionário. Os conflitos concernentes à vida de Carlos – príncipe espanhol de meados do XVI que perde a noiva para o pai (a francesa Elisabeth de Valois é dada em consórcio ao rei em troca do fim da Guerra Italiana) transformam-se, na pena do escritor alemão, em mote à verbalização de libelos anti-monárquicos e em favor da liberdade. 
O Don Carlos histórico 
Retrato de Sofonisba Anguissola, 1560
 
Já Verdi nutre o drama Romântico da poética do melodrama. O desvario amoroso de Carlos frente à mulher que lhe fora prometida, e que ele terminantemente perdera, dá lugar a um embate mais premente: a luta pela liberdade da população de Flandres, que o rei tiranizava. Quase no desfecho da trama, Elisabeth e Carlos cantam a sublimação de seu amor na entrega de ambos à luta pela libertação do povo oprimido; a transcendência do amor na morte e na vida eterna – as personagens seiscentistas são regidas pela moral burguesa, à qual o sentimento de honra se sobrepõe à realização carnal. 
O amor é, todavia, o lume que conduz à revolução. Atravessa a trama o tema da liberdade, que os amigos Carlos e Rodrigues primeiro entoam à guisa de oração: 
Dieu, tu semas dans nos âmes/ un rayon des mêmes flammes,/ le même amour exalté,/ l’amour de la liberté! 
Leitmotiv fundamental de “Don Carlos”, o tema acompanha, no plano sonoro, o amadurecimento paulatino do jovem príncipe, em seu percurso de romântico desesperançado a agitador social – transformação operada por obra do amigo que, por sua vez, agita a sua alma, fazendo-lhe enxergar, para além de seu coração despedaçado, a expoliação empírica de todo um povo ao qual ele poderia ser útil. O Don Carlos histórico, príncipe cuja vida fora marcada pela instabilidade mental, era personagem de pouca monta perto do homem valoroso no qual Schiller e Verdi o transformam. 
É tal tema que tecerá a maravilhosa e dilacerante despedida dos amigos, no cárcere onde Don Carlos é cativo, no qual um já moribundo Rodrigues lhe lembrará que está a morrer por si, cobrando do amigo, portanto, que ele não abandone o sonho sonhado em conjunto. E é em busca desse sonho que Carlos se reunirá uma última vez com a sua amada Elisabeth, e malgrado ambos cantem o chaste amour que as amarras sociais os obrigam a manter, serão apanhados e massacrados pelo tirano. 
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX . 
Na montagem de Warlikowski, Philippe II é o Saturno
de Goya, a devorar o próprio filho
A escrita da história comporta traços do momento histórico do escrevente. Krzysztof Warlikowski faz nosso presente lúgubre porejar desse episódio de meio milênio. O despotismo ao qual fora submetido o povo de Flandres durante o governo de Filipe II ecoa, por analogia, num sem-número de conflitos armados protagonizados por regimes totalitários a ocorrerem nos imediatos limites da Europa, bem como nos maciços contingentes oriundos das diásporas, com os quais o continente europeu precisa pragmaticamente lidar. 
A obra já abre numa tonalidade sombria: o coro dos cortadores de lenha, que na versão original clama pelo fim da guerra, se endereça, aqui, não apenas à rainha, mas também ao público. Perde o caráter espetacular da grande ópera para se transformar num coro trágico, que atravessa “Don Carlos” como o decalcamento dos milhões de indivíduos que as guerras deslocam. Don Carlos conhecerá Elisabeth, a noiva prometida, para imediatamente perdê-la. 
Jonas Kaufmann e Sonya Yoncheva, Don Carlos e Elisabeth
O libreto original situa a cena na floresta de Fountainbleau, mas Warlikowski dá-lhe um caráter onírico, que mistura a gélida floresta francesa – momentaneamente aquecida pelo fogo que Don Carlos acende à amada Elisabeth, e que brota de sua alma (e do belo rosto moreno de Jonas Kaufmann) – ao gabinete de trabalho de Carlos, no qual um busto do avô Charles V repousa como lúgubre invocação da permanência da tradição sobre o progresso. Ao fim e ao cabo, a felicidade não fora mais que um sonho que n’a duré qu’un jour, constatação dos amantes malfadados que é leitmotiv da obra. 

Mas nem tudo é iluminação em “Don Carlos”. A tomada de consciência frente aos desvarios do totalitarismo – Rodrigues a dizer ao rei ciumento que vem de agredir a esposa: “Você domina metade do mundo, mas é incapaz de dominar-se a si próprio.” – convive com a reverberação incessante do pecado e da culpa oriundos do cristianismo, mesmo por parte de Elisabeth, que expulsa do reino a princesa Eboli tão logo a descobre amante do marido, dizendo-lhe: “Devolva-me a cruz!”. Todavia, laivos da moral cristã não grassam na sociedade ainda hoje? 
Por outro lado, “O Grande Inquisidor” é tanto ou mais vilão que Phillipe II – é a voz da igreja que pede ao rei a cabeça de Rodrigues e Carlos. Warlikowski, responsável por uma louvável atualização crítica desta ópera, sublinha-o, transformando a personagem num burocrata vestido de negro, ainda mais pernicioso porque usa a religião como moeda no jogo político. 
No entanto, em meio aos paradoxos de uma trama que oscila entre o progresso e o atraso impõe-se a música; a partitura de Verdi carregando-nos em turbilhão. Um espetáculo operístico bem desempenhado é como uma cachaça que nos embriaga, uma febre que nos obnubila. O “Don Carlos” francês, levado a cabo por um elenco dos  deuses e conduzido pelo bravo Phillipe Jourdain, foi uma jornada coalhada de erotismo, romantismo e desvario. 
As vozes carregam o texto para altitudes insuspeitadas. Jonas Kaufmann, tenor a flertar cada vez mais intensamente com os abismos do barítono, constrói, com seu timbre num só tempo melancólico e doce, um príncipe no qual a lugubricidade e a ternura coexistem. Seu physique dialoga tanto quanto a sua voz com o timbre de barítono de Ludovic Tézier (Rodrigues). Os duetos de ambos entram em consonância numa mesma linha melódica que acena para uma identidade entre as personagens que ultrapassa a esfera da amizade. A intensidade do afeto que os une exacerba-se na cena do cárcere – je meurs pour toi, Rodrigues lembra Carlos –, ainda mais pungente nesta encenação já que ambos estão fisicamente separados, a voz sendo tudo o que resta para uni-los. 
De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe. 
Em estado de graça, no que toca à voz e ao jogo cênico, Ludovic Tézier sublinhou a ambiguidade de seu Rodrigues, cuja ascendência sobre o príncipe alavanca a ação e determina, num só tempo, a tomada de consciência política do amigo (e a intervenção deste no Flandres) e a perdição do trio. O timbre de Sonya Yoncheva construiu uma perfeita terceira ponta deste triângulo amoroso. Sua voz sensual extravasa a armadura puritana com que a sociedade veste a sua personagem: o desejo, força indômita, leva de roldão as barreiras morais e sociais; o casamento real não consegue apagar a mulher apaixonada do seio da rainha. 
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social). 
Um lampejo do Olimpo materializado, assim, diante de nossos olhos, leva-nos a pensar na kantiana finalidade sem fim da obra de arte; no poder que a arte tem de nos abalar desde as entranhas, de nos ruir e reedificar. Briguei anos a fio com Verdi, mas a sua intensidade dramática acabou por me render. Se encenada com rigor, a sua obra hoje me parece, pela gama das contradições que encerra, o espaço modelar para operar revoluções.


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Para os interessados, a íntegra da montagem, exibida pela "Arte", está online.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

“A luz entre oceanos” (2016): sopro trágico ao drama familiar

Outro subtítulo possível para este artigo seria: aula magna de melodrama. “A luz entre oceanos” (The light between oceans), obra dirigida e roteirizada por Derek Cianfrance a partir de romance de M. L. Stedman, realiza à excelência o gênero nascido na França pós-revolucionária. 
O núcleo central da história é ocupado pelo lúgubre Tom Sherbourne (Michael Fassbender) e a luminosa Isabel Graysmark (Alicia Vikander). Tom é um lobo solitário que servira a Primeira Grande Guerra, donde voltara com marcas fundas, nunca totalmente explicadas ao espectador, mas intuídas, considerando-se a violência inaudita dos campos de conflito. 
Suponhamos que este blog é um romance folhetinesco, no qual os capítulos têm que por bem se ligarem uns aos outros para alimentar-se a conivência com o público, e pensemos em Tom como um irmão do fazedor de bonecas que Hobart Bosworth desempenha em Behind the door: homens cujas almas foram laceradas no front
Entretanto, uma diferença fundamental subsiste entre eles. Tom é herói melodramático estrito, a aceitar – qual Jesus Cristo – passivamente os desígnios do destino. Quando Isabel cruza o seu caminho, toma-a em casamento. A princípio a moça o leva pela mão. Depois ele lhe dirá que o entorpecimento adquirido ao longo de anos de violência o havia feito supor-se infenso à felicidade. O casal ruma a uma ilha remota e desabitada no Oeste australiano, onde ele se empregara como faroleiro antes das núpcias. 
O sentido simbólico da função não se deixa escamotear. Sobre os faroleiros, diz o Evangelho de Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz.” O homem sombrio usava a luz que possuía para iluminar os caminhos alheios; suprema abnegação. A missão, que lhe dá uma breve paga de felicidade, é, no entanto, minada pelos abortos consecutivos da esposa. Até que um dia aporta na praia o barquinho onde está a pequena Lucy, acompanhada pelo pai morto. 
O gênero melodramático não trabalha com surpresas: dali por diante sabemos que o casal tomará a menina como filha, malgrado a família que ela quiçá houvesse deixado atrás de si. Sabemos igualmente que a decisão intempestiva se desdobrará num futuro encontro entre a mãe biológica e a filha, e na crise de consciência do herói, obrigado, pelas convenções do gênero (espelhadas nas convenções milenares da Igreja), a caminhar sobre seus passos pregressos, devolvendo a filha à mãe verdadeira, mesmo que isso incorresse na destruição de sua família, e num novo – e desta vez incontornável – dilaceramento seu. 
“A luz entre oceanos” depura o gênero, ao multiplicar a catarse do público. Por meio de uma dessas coincidências comuns ao melodrama, Tom encontra – ao levar sua filha à pia batismal – uma típica heroína trágica (Rachel Weisz), a lamentar, enlutada e desgrenhada, sobre a lápide da filha cujo corpo ela nunca pôde enterrar. Descobrirá ali a mãe da menina que ele tomara por filha, e carregando consigo, dali por diante, o fardo da descoberta, novamente mergulha na escuridão para iluminar as duas malfadadas mães. 
“A luz entre Oceanos” prova que a distância entre a tragédia e o melodrama repousa sobretudo no tema. A tragédia volta-se aos assuntos do Estado, o melodrama, ao núcleo familiar. Tragédia popular, tem, como o gênero no qual se espelhou, como ponto de chegada a catarse: a expiação das paixões do público por meio da contemplação dos sofrimentos do herói. A diferença com relação ao gênero erudito do qual o melodrama bebe é que, enquanto na tragédia o público contempla o sofrimento de alguém maior que ele, no melodrama ele contempla o sofrimento de um igual, o que potencializa a sua identificação com a personagem. 

Tom é o bode expiatório bíblico, papel que no Velho Testamento cabia ao animal escolhido ao sacrifício pelo povo hebraico e israelense, o qual o Novo Testamento tomou como a prefiguração do auto-sacrifício de Jesus Cristo. Impotente diante do sofrimento da esposa que acabara de perder o segundo filho, aceita as súplicas dela e acolhe como sua a criança alheia. Defrontado com a verdade, se titubeia entre a felicidade de seu lar e a obrigação moral, é a esta que finalmente se inclina. 
Esses contornos gerais da ética melodramática servem de preâmbulo para uma constatação e um questionamento. 

A constatação – óbvia – é sobre como bons atores conseguem dar credibilidade a uma história. Michael Fassbender, Alicia Vikander e Rachel Weisz estão deslumbrantes como o trio sacudido pelas mãos do destino. Fassbender é dos poucos atores que resistem ao primeiríssimo plano. Seu rosto é paisagem que as brisas ligeiras ondeiam e a tempestade encrespa. Olhá-lo amoldar uma personagem – qualquer personagem – é tão deleitante e misterioso como ver a ação dos fenômenos naturais sobre as coisas. 
Vikander, ótima desde ao menos O Amante da Rainha (2012), adiciona ao seu frescor costumeiro um sofrimento pungente. E Weisz é Hécuba a chorar a perda da filha, é Medeia a clamar por vingança – ao perder a filha ela perdera também o marido, alemão que escolhera a Austrália por pátria, e que devido à Guerra fora perseguido pelos habitantes da cidade, num furor que, conforme vimos em Behind the door, derivara das Nações aos indivíduos. Ambas são mães, plenamente desculpáveis pelo público que com elas chora. História tão rasgada, desempenhada com tanta sinceridade, coloca o melodrama no status que ele sempre almejou: o de grande arte, apesar das suas raízes populares. 
Por fim, o questionamento: qual a função de um filme como esse nos dias de hoje? Para além da bela factura fílmica, sobretudo a fotografia grandiosa, a utilizar os elementos naturais como reflexos dos sentimentos humanos, qual a função de um filme que segue a risca a ótica melodramática; a ética cristã? Tal função pode, talvez, ser atrelada à relevância indelével que o gênero atribui ao núcleo familiar enquanto espaço primeiro de conformação do indivíduo, visando-se à criação de uma sociedade pautada pela integridade – malgrado os sacrifícios individuais que a integridade obriga.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hobart Bosworth, “Behind the door” e o herói partido ao meio

O cinema clássico teve um poderoso aliado no Melodrama, gênero que perfazia o ideal de sanidade de corpo e espírito clamado pelas ligas de moralidade do redor do mundo. Sua ética, embora secular, mimetiza a cristã: como no cristianismo o percurso pedregoso da vida prepara o corpo para a bem-aventurança eterna, na estética melodramática a aceitação humilde dos revezes do destino conduz à ascensão, não apenas celestial, mas moral – e, em não raros casos, social. “Senhor, dê maturidade à minha alma, antes de ela desencarnar”, ouve-se da boca do padre da Carruagem Fantasma (de 1921). Victor Seastrom, o ator e protagonista da obra-prima sueca, dá de ombros ao dito bíblico, recebendo como paga por uma vida de esbórnia a árdua missão de conduzir as almas dos mortos ao longo de todo um ano. O cinema standard era uma religião sisuda: punia severamente aqueles que se distanciavam de seus ditames. 
Por isso, a rodagem de um filme como o norte-americano Behind the door (de Irvin Willat), no recuado ano de 1919, é algo que se anotar. A obra conta a história de Oscar Krug, americano de meia-idade, de rosto severo e ascendência alemã que, por amor da jovem e primaveril Alice Morse, deixa o ofício na marinha e passa a tocar uma loja de brinquedos, nas redondezas de onde ela vive. Vemo-lo debruçado, a sonhar, ao balcão de seu hospital de brinquedos; a curar, com suavidade, a bonequinha que acabara de ser atropelada... Apenas esses contornos anunciam matizes desusados à produção cinematográfica da época. Os Estados Unidos recém-saídos da Primeira Grande Guerra devolviam, neste filme, o status de humanidade ao povo alemão – lembremo-nos que, neste mesmo 1919, o seriado The Perils of Pauline é remontado pela Pathé europeia e o seu vilão rebatizado com um nome germânico. Mais ainda, misturavam-no simbolicamente com a sua carne, construindo um protagonista que, embora oriundo de família alemã, recebe explicitamente o rótulo de “norte-americano”. 
A trama comandada por Irvin Willat entrelaça duas temporalidades: o ano de 1917 e “cinco anos mais tarde”. Ao mesmo tempo em que remete ao momento em que os EUA aderiram ao conflito, acena para um futuro que supera o momento histórico do filme. O passado pinta em tons pastéis o idílio amoroso do casal, malgrado a rejeição do pai da jovem, que quer o homem maduro fora da cidade. Willat conduz uma firme crítica à xenofobia – que avultara durante a Guerra, mas ainda se fazia sentir. Para provar-se um verdadeiro “americano” e, enfim, poder servir a pátria que seus ascendentes escolheram para si, Krug precisa meter-se em duelo com os cidadãos locais. O conflito em microcosmo não apenas prenuncia a envergadura física e moral do personagem – que, sozinho, vence um grupo numeroso – como os contornos mais negros de sua alma, e do filme como um todo. Os oponentes reconhecem-no logo um igual e o abraçam. Mas, o sangue no qual ele está banhado sujará o lencinho alvo da bela Alice (Jane Novak, que tem o tipo físico de Pearl White). Efetivamente, tampouco o destino da moça se revelará suave. 
Ambos se casam e Krug recebe como atribuição o comando de um navio de guerra da frota norte-americana. Expulsa de casa, a jovem irá ter com o marido. Impedida, por força das regras, de estar no navio, esconde-se, até que um torpedo inimigo lança-a ao mar junto do marido e de toda a equipagem. Behind the door atrás da porta – abre de forma lúgubre, com um amaríssimo Krug chegando do mar rumo à sua loja de brinquedos, encontrando-a em ruínas e, depois de pôr os olhos no lenço ensanguentado da amada Alice – espólio daquele dia de litígio –, rememorando os fatos que haviam sucedido ao longo daqueles anos. Quando vê Kate ao mar, o público sabe, portanto, que algo de muito ruim lhe acontecerá. Todavia, nada – nenhuma narrativa anterior, ao menos que eu tenha notícia – prepara o espectador para o teor dos acontecimentos que se desdobrarão. A jovem acaba tornando-se, com o marido, a única sobrevivente do naufrágio, apenas para terminar, sozinha, nas mãos da tripulação de um submarino alemão. Seu destino apenas será conhecido nos desdobramentos finais da trama, quando o marido, que jurou vingança, está prostrado diante do algoz da jovem – o qual desta vez ele resgatara do mar. 
É fundamental, agora, que eu fale de Hobart Bosworth – um ilustre desconhecido para mim até a Giornate del Cinema Muto deste ano, quando o vi, e vi esta obra magistral, pela primeira vez. Ao vê-lo, pensei numa versão muda do James Stewart de Vertigo, embora a semelhança talvez esteja menos nos dois homens que nas duas tramas, ambas a rescenderem a mais dolorosa desolação, malgrado – ou, talvez, justamente por isso – mergulhem de olhos fechados no mais desabrido amor-romântico. É um misto de ódio e desespero o rosto de Hobart Bosworth, ao perceber que o submarino que encontrara o casal pertencia ao inimigo. Sua contenção ao se encontrar novamente com o algoz, e falsear para descobrir a verdade, caminha na contracorrente da tipificação do cinema clássico. 
Temos aí uma personagem que revela, na superfície, uma alma cheia de densidade. Ao descobrir, com o público, o que ocorreu à jovem – ela fora violentada por toda a tripulação e depois, morta, atirada ao mar –, torna-se um moderno Orestes, cometendo a mais lúgubre das vinganças distante dos olhos do público; “atrás da porta” que dá título ao filme. Behind the door despede-se do Melodrama para enveredar pelo Drama Romântico – tormentoso, avesso à ética cristã – ou pela Tragédia. A vingança parece ser, ali, clamor dos deuses, como na Electra de Eurípedes. Tanto que o perecimento final do protagonista – sobre o balcão da loja de brinquedos, onde ele fora tão feliz – o leva ao encontro da esposa, rumo a um céu que não é nem o do Melodrama, nem o do cinema clássico; daí talvez o porquê de o filme ter ficado no limbo por quase cem anos, até ressurgir glorioso em Pordenone.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Tudo o que o céu permite" (1955): o mundo edulcorado da burguesia em xeque

Mais um post com o intuito de revelar a Hollywood desmistificadora de estereótipos socialmente estabelecidos, na linhagem da antepenúltima entrada do blog. O gênero em questão é, desta vez, o melodrama, historicamente acusado de haver colaborado na manutenção de mitos cuja voga é duradoura: a coisificação da mulher, a cisão do mundo na dicotomia bem/mal, a visada cristã à existência (crença numa “providência divina” que pune os vilães e eleva os heróis, brindando-os com Happy Endings). 
Incorporado pelo cinema, o gênero teve seu papel revisado. Se historicamente o melodrama serviu mais à invenção (e imposição ao público) de uma sociedade ideal que à sua apresentação realista, nas telas ele gradualmente viu incrementar-se seu papel de crítica social. Objeto paradigmático desse esforço é a filmografia rodada por Douglas Sirk nos anos de 1950, da qual exemplo bem acabado é a obra “Tudo o que o céu permite” (“All that heaven allows”, 1955). 
Em pauta, a burguesia norte-americana: rosada, endinheirada, polida no mais alto grau, no entanto, hipócrita e mesquinha. Sirk não economiza nas tintas. Literalmente. Aproveita-se dos arroubos cromáticos do Technicolor para tingir o objeto de seu olhar. Dá de ombros ao realismo e inclina-se à estilização, sublinhando, assim, a crítica social – Vincente Minnelli, outro exímio manejador das cores, atingiria objetivo muito semelhante um ano mais tarde, em “Chá e Simpatia”. Aliás, a tomada em paralelo desses dois filmes, além de acrescentar à análise, desvela a sofisticação analítica com que a capital do cinema poderia se debruçar aos seus temas. 
A cidadezinha americana criada por Sirk tem muito do campus universitário que é tema do filme de Minnelli. Ambas, presas a estereótipos tão sólidos quanto falsos – falsidade que os diretores não se furtam a explicitar, largamente. No segundo filme, Minnelli casa aquela flor delicada que é Deborah Kerr com um troglodita. Treinador esportivo de uma universidade para meninos, o homem é, psicologicamente, a extensão do tipo que fisicamente retrata. Um grosseirão insensível, fomenta nos alunos o espírito de competição e a manutenção de preconceitos. 
Pega para cristo um garoto muito delicado – naturalmente um homossexual, na visada rasteira da sociedade de então. Transforma-o na “garotinha” da turma, enlouquecendo-o paulatinamente; leva-o, mesmo, à tentativa de suicídio – precipício do qual o garoto é salvo pela personagem de Kerr, que, tão carente de afeto quanto ele, deita-se consigo para prová-lo um homem. Os preconceitos nunca findam, são sempre substituídos por outros, já que a sociedade como um todo é putrefata: o menino sensível descobre-se “homem”, mas a mulher nunca consegue se limpar da mancha que era a perda de sua “honra” – mesmo que a causa tenha sido honorável e que seu esposo nunca venha a sabê-lo. O filme critica a sociedade de aparências, mas é a moral melodramática, já tão enraizada na sociedade, que dá fecho à história – a mulher que pecara contra o lar perde-se para sempre, embora salve o garoto. 
Minnelli, como Sirk, usa o melodrama de um mesmo modo ambivalente: carrega nas tintas, avivando as fraturas da sociedade, mas, ao se apoiar tão estritamente no gênero, acaba por comprar seus pressupostos estruturais. Precisamos ter em vista que a Hollywood da época era regida por uma severa censura, daí a necessidade de se respeitarem certas imposições morais. Tais filmes precisam ser submetidos a uma análise fina; a crítica que fomentam repousa nos seus interstícios. “All that Hollywood allows” (“Tudo o que Hollywood permite”), paráfrase do título do filme de Sirk sobre o qual falo, também batiza um livro de larga envergadura crítica, o qual analisa os meandros dos melodramas hollywoodianos no que toca ao modo como se trabalha, neles, a questão dos gêneros (masculino/feminino); especificamente, como o retrato que esses filmes tecem dos gêneros por vezes fá-los (faz os gêneros) escapar de sua suposta inerência. Recomendo-o. 
Voltemos a Sirk. “Tudo o que o céu permite” narra a história de amor de Cary Scott (Jane Wyman) e Ron Kirby (Rock Hudson), casal separado não apenas pela posição social como pela idade: ela é uma cinquentona viúva de classe média-alta, com um par de filhos casadoiros; ele, seu jardineiro, homem bonito, na flor da idade e solteiro. Nenhum liame o prende: ele trabalha mais por gosto que por precisão, quando e onde quer; vive num pequeno quarto, contíguo à estufa onde faz germinar suas flores. Já ela, todos os liames a prendem: a família, as obrigações da alta sociedade à qual ela pertence, a sua casa senhorial, as amigas vazias... Pinta-se a dicotomia estrita, como já se vê. O casal construirá um mundo no intermédio, respeitando, bem entendido, “tudo o que o céu permite” – moral cristã inserta logo no título. Não há ruptura total, ou senão não haveria filme. 
No entanto, a crítica se impõe. Sirk fala abertamente sobre sexo, assunto realizado sob muitas cobertas nos filmes do período. Quem levanta o tema é a filha mais nova de Cary, garota que tem Freud na ponta da língua, mas se revela uma puritana de marca maior, no que toca à aceitação da sexualidade da mãe. A senhora naturalmente deveria se acomodar com um homem mais velho, um companheiro (e não um amante), alguém de sua estirpe social, que ratificasse o lugar ocupado pela família naquela sociedade. O irmão segue-lhe de perto, presenteando a mãe com um aparelho de televisão, que acompanharia seus momentos solitários. Nem um, nem outro aceitam que a mãe desça do pedestal em que a sociedade a pusera, e se entregue ao desejo e ao amor romântico, nascido entre ela e um indivíduo muito diferente de si. 
Para caracterizar este novo tipo de mulher, nascida nos albores da revolução sexual, o diretor pende do melodrama à fábula. O homem é idealizado ao extremo: másculo, alto, tão belo de corpo e alma quanto as flores que cultiva. Cervos pastam alegremente em seu jardim; o fogo acolhedor crepita em sua lareira. Naturalmente não se discute como um simples jardineiro encontrou recursos para construir tão cintilante cenário. Por outro lado, na sociedade citadina corvejam ignominiosos abutres, com sede de manchar a reputação de Cary: salva por um homem cuja rusticidade é apenas pretensa, pois mais parece um cavaleiro andante. 
Assim marcha a cinematografia de Sirk, entre a manutenção de uns estereótipos e – felizmente –, a recusa heroica de outros; nesta tentativa de reproduzir em microcosmo o mundo, edulcorando-o para melhor exacerbar suas chagas.