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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

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Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

domingo, 14 de março de 2010

Um corpo que cai (1958): o amor e a loucura segundo Hitchcock



Ontem revi o extraordinário "Vertigo", um dos grandes Hitchcocks, filme espantoso, que continua a impressionar depois de ser revisitado 10 vezes (eu que o diga...). Surpreende-me a sólida visão de conjunto que Hitchcock demonstra na maioria de seus filmes. Ele sabia o que queria, e raramente deixava de realizá-lo. Por isso, deixou-nos inúmeras obras-primas (desculpem-me o paradoxo), que têm a rara qualidade de interessar desde o espectador ingênuo até o mais exigente - coisa de mestre, que conhece a indústria do cinema tão perfeitamente ao ponto de saber que o valor artístico da película deve ser somado ao seu potencial mercadológico. "Vertigo"- que recebeu no Brasil o título de "Um corpo que cai" - é um dos meus preferidos.
Vemos nele um Hitchcock maduro, plenamente consciente de sua arte, que consegue levar a um alto grau de excelência elementos cinematográficos que ele ajudou a criar. A coerência do resultado final já se faz anunciar pelo título, que a horrível tradução brasileira escamoteou -Vertigo: medo de altura; vertigem; tonteira; sensação de desfalecimento; perda momentânea do auto-controle; desvario; loucura. Toda esta gama de significados é explorada em "Vertigo". A perseguição inicial do policial ao bandido, que leva a personagem de Jimmy a descobrir sua doença e culmina com a morte do policial que tentara salvá-lo e seu afastamento da Polícia é apenas o primeira deles.


À caça ao bandido - elemento recorrente nas histórias de suspense - se sucede o diálogo entre o então ex-policial John Ferguson e Midge Wood. A conversa é aparentemente frívola: o homem, enquanto vê a amiga desenhando roupas íntimas, não esboça mais que uma vaga preocupação com sua doença e quase nenhuma culpa pela morte do colega. Porém, o diálogo acaba por apresentar outros elementos de tensão. A câmera abandona o plano de conjunto em que focalizava Midge para tomá-la num primeiro plano no exato momento em que ela relembra ao amigo que fora sua noiva por "três semanas inteiras". John, testando sua saúde, sobe a escada que Midge lhe oferece e, olhando pela janela de vidro, percebe a altura que separa o apartamento do rés-do-chão, desfalecendo nos braços de Midge. Hitch faz aqui cinema puro - aquele em que o modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo. Sabemos que Midge é o elemento forte da relação, o que ampara, protege e ama o outro. John é sensível, frágil, por isso tende a fugir de compromissos e problemas. No entanto, a tonteira que derrubou-o da escada é prenúncio de vertigens mais avassaladoras.



Hitch apresenta em "Vertigo" um complexo triângulo amoroso que penso ser altamente tributário de Freud. Conheço pouco a teoria, portanto, não farei mais que indicar seus componentes mais flagrantes e o modo como eles se movem. Midge é uma jovem espirituosa e feminista mas, no fundo, tem uma amargura enorme por não ter se casado com John. Descobrimos que o impedimento ao casamento fora levantado por ela mesma, depois daquelas "três semanas inteiras de noivado". Por quê? Talvez devido à inversão de papéis da relação? A moça liberal, que se denomina a mãe do amigo - "Don't worry, John-O, mother is here", diz ela quando ele purga no manicômio a culpa pela morte de Madeleine -, queria na relação algo que ela nunca poderia ser - sim, porque ela era a castradora, não estava em sua personalidade ser o elemento passivo. John, débil e infantil, queria se ver livre da mãe-amiga, mas era demasiadamente frágil para tomar qualquer atitude - ora, é a moça que o deixa. Caberia à frágil e dependente Madeleine o papel de salvadora deste homem passivo? Caberia a ela devolver ao homem castrado a sua masculinidade? Cada vez mais me parece que sim. Todavia, embora John se transforme em homem para amparar Madeleine, ele continua detentor daquela personalidade sensível e romântica que, na tradição ocidental, cabe às mulheres. O romantismo exacerbado transforma-se num amor passional que, na segunda metade do filme, dará lugar aos excessos do homem apaixonado. Depois de morta Madeleine, ele tentará ressucitá-la na pele da sexy Judy, que parecia assemelhar-se à morta apenas na aparência - e, ainda assim, assemelhar-se vagamente. As cenas finais, em que John muda o guarda-roupa e os cabelos da mocinha banal até transformá-la na misteriosa e intangível Madeleine, parecem também simbolizar sua passagem de criança passiva a homem empreendedor - já que, até então, ele se mantinha quase que exclusivamente como o voyeur da situação. Aqui já não resta mais nada do homem pacato do princípio da história.

O desejo louco, a vertigem do amor - e aí cabem bem aquelas outras definições de "vertigo" - fazem com que ele some o que de mais intenso há nos dois sexos no que se refere ao relacionamento amoroso (estou tentando aqui pensar nas diferenças que havia nos anos 50) até simbolicamente matar Judy para novamente dar vida a Madeleine e, por fim, contribuir para que Judy/Madeleine literalmente morram. John, agora plenamente masculino e assertivo, quer legislar sobre a vida e a morte da identidade social de Judy. Mas já o pai de Héracles da tragédia homônima dizia que a moderação era necessária sobretudo àquele que tinha poder. Héracles não deu ouvidos ao pai e enlouqueceu. John é igualmente punido por desdenhar da voz da tradição.
A entrevista de Hitchcock a Truffaut - entrevista cuja versão definitiva a Companhia das Letras publicou por aqui faz alguns anos - dá a ver de modo fascinante a personalidade artística daquele que conduziu com pulso firme o enredo de "Vertigo" e de tantos outros clássicos.
Ao falar sobre o relacionamento amoroso tecido neste filme, um Hitch sem papas na língua alude ao que ele chama de "sexo psicológico": "é (...) a vontade que anima este homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas simplesmente, esse homem quer se deitar com uma falecida, é pura necrofilia.". O diretor ainda aprofunda a explicação, motivando uma das poucas surpresas que Truffaut explicita ao longo da entrevista que faz com o diretor: "Todos os esforços de James Stewart para recriar a mulher são mostrados, cinematograficamente, como se ele procurasse despi-la em vez de vesti-la. E a cena que eu sentia mais profundamente era quanto a moça voltavam depois de ter tingido de louro o cabelo. James Stewart não fica totalmente satisfeito, porque ela não prendeu os cabelos num coque. O que isso significa? Significa que ela está quase nua diante dele mas ainda se nega a tirar a calcinha.".

As linhas deixam perceptível que a sexualidade não era algo tranquilo para Hitchcock. Aliás, a trivia hollywoodiana já apresenta inúmeros exemplos relacionados ao assunto: que Hitch teria se deitado com a esposa apenas uma vez; que ele havia se gabado por ter sido seduzido por Ingrid Bergman e se deitado com ela, etc. O diretor era um feixe de medos e complexos que daria trabalho a algum discípulo de Freud se ele resolvesse tentar se livrar deles. Não sei se ele chegou a frequentar um psicanalista. Felizmente, ele nunca deixou de ser perseguido por esses fantasmas que tomaram forma, de modo mais ou menos bem acabado, em toda a sua obra.
Hitchcock é pródigo ao dar à sociedade moderna uma visão complexa de seu psiquismo. Ele entra nos lares burgueses e mostra os anseios e as taras que subjazem ao exterior aparentemente são e pacífico. O relacionamento homem-mulher que culminava no casamento e na felicidade eterna - receita pregada no grosso dos filmes do período - era muito mais complexo do que parecia. Herança de Freud e tantos outros intelectuais que flagraram e explicaram a desfragmentação dos elementos que sustentavam o modo de vida ocidental - a igreja, o paternalismo, a ciência positivista -, Hitchcock mostrava que o homem podia não mais ser o indivíduo rijo responsável pelo sexo oposto. O diretor inglês é um dos indivíduos que mais bem compreendeu a sensibilidade moderna. Sua obra toda paga um tributo a ela.
"Vertigo" é seu mais arrematado exemplo e James Stewart, seu melhor porta-voz. A simplicidade e delicadeza com que James desempenha seus papéis me surpreende cada vez mais. Ele desempenhou um mesmo tipo durante décadas, porém, fê-los evoluir de acordo com as necessidades do diretor. Ele foi um dos primeiros stars do sexo masculino que chorou em frente das câmeras - numa época machista como os anos 30, bem se pode imaginar como isso não taxava negativamente os artistas. Os personagens que ele deu ao público nos anos 30 e 40 ajudaram a tornar verossímil não apenas John Fergusson mas todo o "Vertigo", que conhecemos em grande parte por seu próprio ponto de vista.
Vejamos as cenas em que ele conhece Madeleine e, a pedido de seu suposto esposo, passa a persegui-la. Vêmo-la primeiramente de costas (num plano de conjunto que toma todo o restaurante) e depois de perfil (num close-up). Ainda que se aproxime, ela continua a ser para John uma figura misteriosa - o que se deve em grande medida à imagem (mentirosa) que seu esposo pintou dela para John: ela estaria enlouquecendo, possuída pelo espírito da bisavó morta por amor. Uma imagem romântica...

O mistério que emana da mulher é, ironicamente, maior do que se supõe a princípio. Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez). É personagem ficcional, saída da imaginação de um homem calculista que, para matar a esposa, precisa de uma cúmplice (Judy/Madeleine) e de um bode espiatório (John). Ela é literatura (ou então, cinema). O modo como o homem apaixonado a vê em grande medida recupera-a como objeto de arte. Ela às vezes se assemelha às estátuas gregas (como no fotograma acima). Às vezes, a um quadro (como na fascinante cena da floricultura, em que o ambiente cinza ao redor de Jimmy só faz intensificar a explosão de cores em que a moça está mergulhada, emoldurando-a).



Depois de enquadrada, John vê Madeleine observar o quadro de sua ascendente. A linha que divide realidade e ficção parece desaparecer.


Hitchcock dá a ver o artífice competente que é, criando em "Vertigo" leitmotivs que perpassam todo o filme. O modo como Madeleine observa sua bisavó é semelhante ao modo como John Ferguson observa Madeleine - e é o ramalhete de rosas que levará John casualmente a encontrar Judy.
Madeleine olha o quadro; John a olha; nós os olhamos. Para esse voyerismo multiplicado há a excelente expressão francesa mise en abyme, (mal) traduzida entre nós por metalinguagem, e que literalmente significa “posto no abismo”, aquele efeito obtido por dois espelhos: quando uma imagem contém uma cópia menor dela, e assim sucessivamente. Ao fim e ao cabo, o público é tão ludibriado quando o protagonista pela cena que se oferece diante de si como espetáculo. Esta imagem que o filme constrói é, aliás, oriunda do mesmo campo semântico do redemoinho que se insinua primeiro nos créditos, repetindo-se no decorrer da obra no intuito de glosar a sensação de entontecimento, de falta de chão, de desvario do protagonista. (Este parágrafo só nasceu hoje, 29 jan. 2014, depois de dois meses de minha revisita ao filme, desta vez na telona do paulistano Espaço Unibanco-Augusta...). 

O tom esverdeado que circunda Madeleine quando ela caminha pelo cemitério repete-se nas luzes artificiais que envolvem Judy - tornada Madeleine -, no quarto barato de hotel. Hitchcock fala sobre esses dois usos do verde na entrevista a Truffaut, mas nada diz sobre a abundância de verdes que envolve a personagem de Kim Novac (o carro de Madeleine, o vestido de noite que ela usa quando John a vê pela primeira vez, o gramado em frente ao museu, a saia de Judy). O elemento verde é reiterado ad nauseam ao longo de "Vertigo", inebriando o ex-policial ao ponto de levar a mente até certo ponto cartesiana que cabe aos indivíduos de sua profissão a acreditar na história suspeita contada pelo amigo. Sem falar no leitmotif musical criado por Bernard Hermann, já que os violinos glosam, no plano sonoro, a paixão crescente de John por Madeleine.
"Vertigo" é uma obra de ficção que, enquanto explicita a filosofia de Hitchcock - alguns filmes são fatias de vida; os meus são fatias de bolo - trás à baila questões pungentes da sociedade contemporânea. Vemos desfilar um belo concerto criado pelos olhos apaixonados de John, mas também conhecemos o poder terrível que pode ter a ficção. Monroe (do O último Magnata, de Scott Fitzgerald), que amadureceu no mundo do cinema e ajudou a delinear as fronteiras do medium, descreve a aparição de Kathleen de modo muito semelhante ao que faz o John Fergusson criado por Hitchcock - e ambos acabam por perder a única mulher que poderia salvá-los, mulher que eles mesmos criaram. Porém, as respostas não são simples, se pensarmos que, com a crise da religião, a arte aparecia como o único elemento capaz de dar sentido à vivência cotidiana.