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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

“Um dia muito especial” (1977), um Scola incontornável

Não tem um mês, fomos surpreendidos pela morte de Ettore Scola. “O coração dele já estava cansado”, dizia a nota que seus familiares encaminharam à imprensa. A contar por “Que estranho chamar-se Federico”, rodado em 2013, não parecia. O coração de Scola parecia pulsante o suficiente para muitos outros passeios fantasmáticos pela Cinecittà real e cinematográfica, mesmo que se confrangesse até quase se romper, levando-nos de roldão. 
O sublime testamento ao amigo Federico Fellini fecha sua trajetória de cinco décadas como diretor e escritor (iniciada com “Fala-me de mulheres”, de 1964), da qual fizeram parte obras-primas como “Feios, sujos e malvados” (1976), “Casanova e a revolução” (1982), “O Baile” (1983) e este “Um dia muito especial” (1977), cuja cópia em película o paulistano Cine Belas Artes recentemente exibiu, em homenagem ao diretor. 
O filme toma um capítulo-chave da relação entre a Itália e a Alemanha, que culminaria no alinhamento das duas nações durante a 2.ª Grande Guerra: a visita oficial de Hitler a Mussollini, na Roma de 1938. A trama equilibra-se entre o episódio político e as relações afetivas alinhavadas naquele solo movediço. As imagens de arquivo referentes ao fatídico encontro exercem influência inconteste, desde o início da narrativa – observe-se o documentário “Hitler a Roma”, de 38, em paralelo com a sequência inicial da obra. No entanto, pouco a pouco o destino de duas almas ocupará o centro dos refletores, entrelaçando-se e se sobrepondo ao destino coletivo da nação – como sói aos grandes filmes rodados a partir do neo-realismo. 
Em primeiro plano está a relação entre Antonietta (Sophia Loren) e Gabrielle (Marcello Mastroianni): a mãe de família numerosa, esposa de um fascista, e o homossexual que perdera o emprego e estava em vias de perder a liberdade devido à sua “perversão”: “La Loren” e Mastroianni, o mais paradigmático dos pares românticos do cinema italiano (desde “Bela e Canalha”, de 1954). Décadas de química ajudam a dar verossimilhança ao casal sui generis engendrado pelo filme, uma obra de grande suavidade e melancolia, malgrado ela tenha como leitmotiv sonoro o som das marchas militares e dos registros radiofônicos de efusiva inclinação nazista, prenúncio sinistro dos males que estavam por vir. 
Francesca é a dona de casa típica. A câmera esquadrinha a rua que se preparava para o “grande dia” e imiscui-se, num plano-sequência, nos domínios da mulher amanhecida, enquanto ela prepara o café e acorda a família que participará dos festejos. Sophia Loren esconde sua sensualidade por debaixo de chinelas rasgadas, meias-calças corridas e de um vestido surrado, e está magnífica como nunca. É a mulher-modelo da sociedade que se preparava para a combustão, a gerar copiosamente os filhos da nação, e cuidá-los em detrimento de si. Ingênua e quase iletrada, a beber e aspergir as baboseiras proferidas pelo Marechal Mussolini, chapa do Führer. 
A mágica da arte proporcionará a tal mulher a tomada de consciência, no espaço de um dia. Ao ir em busca do papagaio fugitivo, ela dá com o belo e másculo Gabrielle, seu vizinho do prédio em frente. Daí por diante, estereótipos estilhaçam-se. Francesca experimenta com o vizinho uma relação inusitada: intelectual, festiva e carregada de tensão sexual – entre idas e vindas de um apartamento a outro, o preparo de um café e uma omelete, e compartilhados trabalhos cotidianos e leituras. 
Algo apenas possível porque aquele homem – o único que perdera o famigerado desfile – não era o exemplo de cidadão requerido pela nação. Antes de Francesca, os espectadores já o haviam conhecido, acabrunhado pela demissão da emissora de rádio que, agora, narrava em êxtase a entrada de Hitler em Roma. “O homem deve ser marido, pai e soldado”, Gabrielle lê no álbum de recortes de Francesca, que a essas alturas já revia o seu conceito de humanidade. 
Ambos chegarão às vias de fato, mas o filme é metáfora daquele momento histórico. Ao ver Gabrielle partir, Francesca guarda o romance folhetinesco que ele lhe dera. Aquela não era a época dos finais felizes. A Gabrielle caberá o patíbulo e, à Francesca, o marido troglodita, para o qual ela era apenas a fêmea parideira. Depois daquilo – da imensa humanidade – viria o horror. Mas aí já não há mais filme. 
Ettore Scola parte, mas a sua obra fica, como um espírito a mover-se, etéreo. Em minha última viagem à Roma, encontrei o Estúdio 5, da Cinecittà – onde Fellini criou prodígios e Scola os revisitou – sendo paramentado para uma festa da alta sociedade. Mas, que importa a pompa dos muito ricos – satirizados com veneno e poesia no excelente “A Grande Beleza” (2013) –, se por ali os gênios já espalharam a sua magia?
Naquela ocasião, imaginei Fellini olhando tudo de cima, a se rir – ou, melhor, correndo entre os restos de velhos cenários, recusando-se a estar morto, assim como Scola o pintou, na sequência final da obra com a qual se despediu do cinema. Certamente agora ambos são comparsas, vivíssimos, malgrado a matéria os tenha perdido.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Os melhores e piores de 2014 (III)

Enfim, a última parte da nossa lista de destaques cinematográficos do ano passado. Agora, os europeus. 
A começar pelo já aqui lembrado “Mil Vezes Boa Noite” (“Tusen ganger god natt”, 2013), de Erik Poppe, coprodução da Noruega, Irlanda e Suécia protagonizada pela sempre excelente Juliette Binoche, secundada por Nikolaj Coster-Waldau. Binoche consegue, como Marion Cotillard, a despersonalização completa. Ela é a personagem que desempenha. Sempre. Já o disse aqui anos atrás, na resenha de “Cópia Fiel”. Vejam-na aqui, perdida entre os vários idiomas que não são dela (o inglês, o norueguês), metáforas do apatriamento vivido pela fotógrafa de guerra – mais estranha ao seu lar que às longuras ásperas que ela registra. 
Outro grande filme, também coprodução (Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido e França) é “Ninfomaníaca” (“Nymphomaniac”, 2013), obra de fôlego de Lars von Trier, dividida em dois volumes, com os ótimos Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin e Uma Thurman. Como “A praia do futuro”, a reputação da obra a antecedeu. Ela, todavia, também vale muito mais que os buchichos que gerou devido ao tema e à obscenidade de várias sequências. 
A Itália nos presenteou com uma obra-prima, “A grande beleza” (“La grande bellezza”, 2013),magnífico filme de Paolo Sorrentino, com um Toni Servillo em estado de graça – certamente iluminado pelo meu amado Marcello Mastroianni, de quem ele é uma espécie de alter-ego. Desempenha o papel de Jep Gambardella, jornalista bon vivant, meio flâneur, meio dândi, que espreme a secura de sua Itália contemporânea (são impagáveis suas tiradas à imprensa de celebridades, ramo de onde ele, para seu desprazer, tira o seu sustento) para extrair dela o maravilhamento. Voltam a infância, o primeiro amor, a religião, os grandes monumentos da pátria milenar – todos resignificados pelo palmilhar cativado e irônico do homem pela cidade. O filme poreja “La Dolce Vita”, sem ser derivativo da obra-prima de Federico Fellini. Uma grande, belíssima homenagem à Itália e ao cinema. 
Assim como “Que estranho chamar-se Federico (“Che strano chiamarsi Federico”, 2013), contação da trajetória de Fellini pelo seu grande amigo (e grande cineasta) Ettore Scola – ambos desempenhados, no docudrama, pelos netos de Scola; Tommaso Lazotti e Giacomo Lazotti. Certas obras estabelecem uma relação tão indissolúvel entre texto e contexto que é impossível enxergarmos um em detrimento do outro. Como atingir o distanciamento afetivo para analisar um filme que presta uma homenagem tão derramada ao cinema italiano; à Cinecittà, sua cidade dos sonhos; às grandes estrelas italianas desta arte e ao nosso imaginário, repleto dos flashes criados pela câmera mágica do brilhante Fellini? A tarefa é difícil (mas eu fiz o possível para realizá-la algo extensivamente, numa resenha publicada na Imagofagia, à qual remeto o leitor). 
Da França saiu “Saint Laurent” (2014), um belo filme de Bertrand Bonello, com Gaspard Ulliel excelente no papel do biografado Yves Saint Laurent, Jérémie Renier como Pierre Bergé, e Louis Garrel como Jacques Bascher, uma das pontas do triângulo amoroso. O notório estilista era poeta, quem diria. O filme consegue ganhos dramáticos ao abraçar, para a construção da narrativa, esta faceta pouco conhecida do homem. Ganham sopro de poesia não só o filme, mas também o métier, historicamente mais relacionado à manufatura que à arte. Recupera-se a importância simbólica dos tailleurs saídos do lápis do artista, que cooperaram no empoderamento das mulheres de seu tempo. Muito bom filme. 
Já “Amar, beber e cantar” (“Aimer, boire et chanter”, 2014) é para os amantes de Alain Resnais. No canto dos cisnes do grande diretor francês – premiado no Festival de Berlim pouco antes de falecer, aos 91 anos – retorna a célebre soma de elementos encontrados em suas obras: a troupe composta pela esposa Sabine Azéma, e por Hippolyte Girardot, Caroline Sihol et compagnie..., a adaptação de uma peça teatral (de Alan Ayckbourn), e a partir dela, a circulação pelos gêneros e o entremear da vida e da arte. Também volta o tema da morte, já presente no ótimo “Vocês ainda não viram nada”. Resnais deve ter sido um velho senhor lépido e faceiro, a contar pelo modo como ele retratou a morte, nesses últimos filmes. Com bom-humor, encena as pompas fúnebres de dois alter-egos seus. Sua morte real foi acompanhada pelos mesmos parceiros que acompanharam suas peripécias cinematográficas, os quais, junto ao seu caixão, mimetizaram fidedignamente a arte na vida. 
E, enfim, de Portugal veio-nos “Florbela” (2012), obra de Vicente Alves do Ó com a ótima Dalila Carmo, e Ivo Canelas (no papel de seu irmão) e Albano Jerónimo (seu marido). O filme privilegia a vida conturbada de Florbela Spanca – feminista avant-garde à sua obra poética. A perda da poesia, que tão bem faria ao filme, não o impede de ser um trabalho digno de atenção, com interpretações notáveis de Carmo e Canelas, irmãos que, nesta biografia dramática, nutrem um amor que resvala para o âmbito carnal. Entregues aos seus personagens, ambos conseguem construir duas densas psicologias, das quais emergem as angústias pelos sentimentos proibidos. 

Os amigos me lembraram que, ao longo dos balanços do ano, deixei de lado “Pais e filhos” (“Soshite chichi ni naru”, 2013), de Hirokazu Koreeda, aquele que seria o único representante japonês de nossa lista. Realmente, um ótimo filme. Parte de uma premissa banal – a troca de dois garotos na maternidade – para, com a sobriedade comum aos filmes (e à sociedade) do Japão, dar mergulhos de fôlego em questões como o amor paterno/filial, a configuração da sociedade japonesa (no que toca tanto às relações marido-mulher, pai-filho quando no que diz respeito às cobranças feitas desde à mais tenra infância, para que as crianças sejam bem-sucedidas). O mundo do pai workaholic vira do avesso quando descobre que o filho que ele vinha talhando ao feroz mercado de trabalho é, na verdade, o filho de um casal de hippies
E eu, de minha parte, me esqueci de “Até o fim” (“All is Lost”, 2013), de J. C. Chandor, com um excelente Robert Redford, vincado e maltrapilho, a depender exclusivamente de sua expertise de ator. Espécie de versão contemporânea do clássico de Hemingway “O velho e o mar”, aqui Redford é o velejador que se descobre náufrago, depois que restos da carga de um navio abrem o casco de sua embarcação. Sua luta pela vida é tão bem contada que nos resulta quase palpável. 

Quantos mais não foram deixados de lado nesta seleção. E ainda reclamam que o cinema está morto. As obras-primas realmente rareiam, quando comparamos nosso tempo aos tempos passados. Porém, as salas de exibição ainda podem nos comover, nos divertir e nos provocar. Viva o Cinema! Que é, aliás, o título de outro filme...