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segunda-feira, 20 de julho de 2015

Um Bonde Chamado Desejo: mergulho de cabeça no âmago da desesperança

A obra-prima teatral de Tennessee Williams “A streetcar named Desire”, que mereceu um primoroso tratamento cinematográfico em 1951 (por parte de Elia Kazan, a partir de roteiro produzido pelo autor da peça) – filme conhecido por nós como “Uma rua chamada Pecado”, título rebarbativo o qual, segundo o amigo Chico Lopes, escamoteia o “desejo” visceral, considerado pecaminoso... – pode ser agora fruída em sua versão original, em Sampa. De saída, recomendo fervorosamente a montagem paulistana, em cartaz no Tucarena. Para os apreciadores da obra de Tennessee Williams, ou não. Para aqueles que conhecem o filme de Kazan, ou não. Para aqueles que amam a Arte enquanto expressão mais alta da subjetividade humana – para além de rótulos ou delimitações artísticas, enfim. 
Foto de divulgação da montagem paulistana de
"Um bonde..."
A montagem paulistana é dirigida por Rafael Gomes (também tradutor do texto) e tem como cerne uma estonteante Maria Luisa Mendonça (como Blanche Dubois), que divide a cena com Eduardo Moscovis (Stanley Kowalski), Virgínia Buckowski (Stella) e Donizeti Mazonas (Mitch), nos papéis principais. 
Maria Luisa Mendonça é uma de minhas atrizes preferidas, porque nela convivem a delicadeza das formas e a força da expressão. Antegozei, portanto, o prazer de vê-la neste papel que eu supunha – não me enganei – talhado para si. 
Vivien Leigh e Marlon Brando no filme
Tennessee Williams é um grande autor de personagens femininas. Não à toa, as grandes divas do cinema dos anos 50 passearam pelas suas heroínas tão artificiosas, e ao mesmo tempo, tão humanas: Ava Gardner e Deborah Kerr na “Noite do Iguana” (de John Huston, 1964), Kate Hepburn em “De repente, no último verão” (de Joseph L. Mankiewicz, 1959), Anna Magnani na “Rosa Tatuada” (Daniel Mann, 1955), Vivien Leigh em “Uma rua chamada pecado” (1951) – recorro aqui sobretudo à minha memória afetiva, já que a obra do autor é extensa no cinema como no teatro. 
Foto de divulgação da peça
Williams compôs exímias radiografias da classe média americana – em especial nessa época de perda das ilusões que se sucedeu ao massacre da Segunda Grande Guerra. O teatro obrigava-se ao desnudamento dos caracteres, das convenções, mais ainda depois da obscenidade atingida nos campos de batalha. A libido, por tanto tempo cerceada, exacerba nas obras do autor – seja pelos gestos ou pela verborragia das personagens. O cinema norte-americano felizmente bebeu de um pouco dessa liberdade, devido à paulatina queda da censura, daí a energia da Serafina de Anna Magnani, ou da Maxine de Ava Gardner. Porém, é no teatro que Tennessee Williams mais completamente se perfaz. 
A verborragia própria do autor vai bem com a boca de cena, onde o protagonismo é da voz e do corpo do ator. Mais ainda que no cinema, no qual o ator dissolve-se no ambiente, tomado usualmente de forma realista. 
Foto de divulgação da peça
A montagem paulistana é muito bem sucedida na escolha dos signos que inscreve em cena. O bonde faz-se presente em toda a sua extensão de sentido – ele é, lembremo-nos, a condução que leva Blanche Dubois da morada aristocrática que dividia com a família até o cortiço no arrabalde de New Orleans no qual a sua irmã Stella habita com o esposo Stanley – um operário braçal das imediações. O bonde, denominado literalmente “Desejo”, levará a moça bem nascida – agora pobre, porém, ainda uma aristocrata do espírito –, até o mais profundo interior, da cidade e de si mesma. 
Williams escolhe símbolos de legibilidade clara, para mais facilmente exacerbar as neuroses psíquicas de suas personagens – espelhos da nação. A inaptidão de Blanche Dubois – Branca do Bosque, como ela faz questão de informar a um pretendente seu – ao meio é patente. As tópicas da literatura romanesca brotam como sonho na peça, através dos devaneios de Blanche, mulher madura de corpo, mas com alma de mocinha Romântica – claramente inadaptada à realidade circundante. Blanche prefere a magia à realidade. O autor mergulha-a nos dejetos da corrompida sociedade norte-americana de fins dos anos 40. Aquele não era um tempo para utopias. 
Foto de divulgação da peça
Quando foi encenada, em 1947, o ponto culminante da peça foi a atuação do jovem Marlon Brando – que encarnaria Stanley também no cinema –, pela crueza com que ele deu vida à personagem máscula. Se Eduardo Moscovis está ótimo na montagem paulistana, se Virgínia Buckowski e Donizeti Mazonas são muito bons Stella e Mitch, a peça é toda de Maria Luisa Mendonça, pela perspicácia milimétrica com que ela dá corpo à mulher macerada pelos infortúnios, que se apega a todo custo à arte para trilhar os sendeiros da vida (como tantos de nós). 
Naquela época de perda das ilusões, o destino de Blanche é certo – queimar-se na própria chama, até as cinzas; até ser colhida pela insânia. Mendonça compreende bem demais a dimensão fatalista da personagem, e constrói uma Blanche arrebatada, bela, mistura ambivalente de desejo e amor pueril, de maturidade e meninice – como só podem ser as grandes personagens e as grandes atrizes. Constrói-a furiosamente, rasgando-se em cena, para que cada espectador penetre no âmago da personagem a quem ela empresta o seu corpo; corporificando com eloquência a definição que Jean Giraudoux dá ao Teatro: 

O teatro é, não uma imagem da vida, mas uma manifestação da vida, e não uma manifestação anódina e cotidiana, mas uma verdadeira prova de energia dos músculos e dos sentimentos.

Ver Maria Luisa Mendonça em cena é vivenciar uma experiência estética ímpar, que durará no coração do espectador por uma eternidade. Bravíssima, branca flor!


A referência ao texto original de Giraudoux segue abaixo: 
GIRAUDOUX, Jean. "Théâtre et Film". In: LAPIERRE, Marcel (org.) Anthologie du Cinema: rétrospective par les textes de l’art muet qui devint parlant. Paris: La Nouvelle Édition, p. 1946, p. 296-302.
Traduzi o artigo completo, a ser publicado em breve pela revista Pitágoras 500. Quando isso ocorrer, compartilho aqui o link.

domingo, 24 de novembro de 2013

A corrupção e outras drogas sedutoras: de "Blue Jasmine" (2013) à trambicagem nossa de cada dia

Um novo Woody Allen acabou de aportar por aqui. Junto, quase, do escândalo de dimensões faraônicas que sacudiu as estruturas – já não tão firmes – da prefeitura de São Paulo. A semelhança entre ambos os acontecimentos só é forçada aqui porque descobri, hoje, que a delatora da fraude do ISS é uma conterrânea minha. Il faut honrar a prata da casa... 
Allen voltou à boa forma. “Blue Valentine” é um filme bem feito, charmoso e volúvel como a corrupção de colarinho branco. Ao dizer que Cate Blanchett arrasa, choverei no molhado. De todo modo, cumpre reverberar a maestria, o domínio, a profundidade inequívoca com que ela dá vida à vulgaríssima esposa do ricaço de vida equívoca interpretado por Alec Baldwin - personagem não só verossímil como verdadeira, a contar pela valinhense que resolveu pôr a boca no trombone tão logo notou que sua fonte secaria. 
Incensa-se a semelhança entre "Blue Jasmine" e “Uma rua chamada pecado” ("A streetcar named desire", 1951), obra-prima de Kazan, Leigh e Brando. No entanto, a aproximação entre um filme e outro é tão gritante que a homenagem soa uma apropriação canhestra. Sally Hawkins (Ginger, irmã da protagonista) não é Kim Hunter; Andrew Dice Clay (o troglodita namorado de Ginger), embora muito bom, definitivamente não é Marlon Brando. Já Cate Blanchett é muito Vivien Leigh e, principalmente, muito Cate Blanchett. A atriz impregnou sua personagem de uma psicologia tão intensa quanto incabível para o papel da alpinista social cujo objetivo é sustentar a boa-vida de aparência que leva ao lado do marido. 
Blanchett tem estofo para vestir suas personagens como uma vida própria, mesmo que emprestada. No “Aviador”, ela desceu à essência de Kate Hepburn, embebendo-se da alma de sua biografada, mais do que de seus maneirismos superficiais. Em “Blue Jasmine” ela é uma perfeita descendente da Blanche Dubois de Vivien Leigh – mulher que ficcionalizava a existência para fazê-la mais palatável. A diferença entre ambas as atrizes está na densidade das personagens que representam. Leigh constrói em cima de uma personagem que já era profunda: mulher frágil levada à ruína física e moral por impossibilidade de suportar o esfarelar da família. O chão de nuvens sobre o qual a etérea Blanche passa a caminhar sustenta-lhe parcamente a sanidade. 
Jasmine não passa de uma arrivista a quem a cegueira é opção para a ascensão social. Sustenta seu casamento enquanto escolhe olhar para as joias que ganha do marido em detrimento das amantes e das falcatruas que ele comete, e caso clássico, resolve denunciá-lo quando se vê em vias de perder o prezado status. A história praticamente biografa o caso envolvendo minha conterrânea. 
Cate Blanchett dá foros de grandeza à mulher mesquinha. 
Espero não ter soado moralista, pois não é esse o caso. Woody Allen realiza neste filme uma leitura aguda da sociedade que obriga o forjamento de Jasmines para darem conta dos figurões a quem a mulher não passa de um brasão social. A história cruelmente se repete quando a mulher-atriz (afinal, a aristocrática Jasmine é na verdade Janette, flor nascida de solo muito mais reles) descobre-se, numa espécie de mercado de carnes da alta-sociedade, escolhida, conquistada e depois repudiada por certo diplomata/político – tipo bem acabado da política (inter)nacional. 
Jasmine caiu das nuvens douradas em que Blanche sonhava para chafurdar no esgoto da corrupção terrena. O microcosmo da sociedade criado por Allen tanto ganha em realismo quanto perde em poesia. Prezo o esforço do diretor, mas prefiro mil vezes os castelos que Blanche constrói no ar ao pouco charmoso pragmatismo de Jasmine – mesmo que ele esteja mergulhado no mais sedutor blues.