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domingo, 29 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (4/4)

Quarta da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017. 

Sétimo dia: 6 out. 2017, sexta-feira
Segue a série dos filmes The Effects of War, acerca dos 100 anos da Primeira Grande Guerra. Concerto de soldados feridos, a se reabilitarem – e a provarem ser igualmente úteis às nações sem a(a) perna(s) ou o(s) braço(s) que elas lhes roubaram –; a montarem barracas, a abrirem trincheiras. À altura em que essas notas eram escritas, já as cenas se haviam misturado na cabeça da escrevinhadora. Permaneceu como nota dominante o horror – oh, o horror! – do tempo perdido, das vidas perdidas em tantos conflitos que incitam o patriotismo com o fim de servir à sanha capitalista. 
Foto de Valerio Greco
As obras apresentadas nas sessões noturnas aludem em parte ao colonialismo inglês na África – veja-se In carovana attraverso l’Africa Orientale, ou, By caravan through East Africa, da série Cinema Silencioso na Noruega, visada num só tempo etnográfica e etnocêntrica (trata-se do olhar colonizador a observar o colonizado), com a câmera a tomar africanos ou em plongée, simbolicamente superior a eles, ou a cortar-lhes a cabeça, enquadrando, em detrimento dos indivíduos, o alimento que lhes é oferecido: “De quando em vez oferece-se carne aos negros (to the negroes – referência racista que nega à civilização colonizada qualquer possibilidade de nivelamento). 
A seguir, o já muito conhecido A Fool there Was (Frank Powell, 1915) compôs o programa do Cânone Revisitado, demonstrando efetivamente merecer a revista, seja pela qualidade empírica da cópia, seja pela trilha sonora especialmente composta por Philip Carli. O clássico de Theda Bara ganha muitíssimo quando exibido em tela grande. Retrata uma época em que, como bem percebe Edgar Morin, o cinema ainda reflete arquétipos míticos. 
Já me debrucei algo longamente sobre o filme, aqui no blog e alhures, mas só agora me dei conta de que ele rende mais ao analista se for pego não enquanto retrato social (ou do preconceito contra a mulher na sociedade), mas sim como reprodução de um tropo caro à arte desde milênios. Se a femme fatale reflete o histórico temor do homem frente ao sexo oposto – e, portanto, a “necessidade” de sua subjugação –, ele igualmente representa o lado deleitoso de tal fricção: já o jovem padre de Théophile Gautier, no conto “Morte Amorosa”, chora o desaparecimento de sua bela vampira, demonstrando preferir a vida desvairada de prazeres que ela lhe proporcionava em vigília em detrimento da sisudez de sua vida monacal. A música de Carli leva a sério o filme, imprimindo nele uma sobriedade inglesa a qual o insere no lugar que ele merece na tradição ocidental que trata do tema. 
Em meio às Nasty Women surge a obra-prima She’s a Prince (Marcel Perez, 1926). O travestimento, e o que ele implica de leitura anárquica dos tolhimentos que a sociedade impõe aos sexos (sobretudo ao feminino), é colocada em primeiro plano nesta fábula rodada na era do Jazz Band, a qual desenha os percalços sofridos pela mocinha no intuito de adentrar uma sociedade secreta de melindrosas (!...). O curta-metragem é imperdível pelo modo como ateia fogo à clássica divisão de gêneros sociais – literalmente vestidos, despidos e invertidos ao longo da história. Serve como belo contraponto a um sem-número de filmes moralistas rodados na égide do cinema clássico, uma porção dos quais revisitamos em Pordenone este ano. 
Para fechar a noite, Mania: o calvário de uma alma (de Eugen Illés, 1918), e novamente o sorriso de um milhão de dólares de Pola Negri a demonstrar que a beleza não é um atributo de Deus, mas sim do diabo, fazendo-nos tudo relevar: mesmo a coisificação feminina, mesmo o machismo. 
Sabemos de início que a jovem operária Mania rolará pelo precipício. 
Apaixonando-se reciprocamente por um promissor jovem compositor, vê-se obrigada a ceder ao patrocinador da ópera para vê-lo encenado. Mesmo fazendo-o pelo explícito desejo do namorado, é por ele repudiada e acaba destruindo-se em cena, na estreia do trabalho, sob os olhos do público e dele, que finalmente a perdoa. É doloroso – falo, óbvio, de um ponto de vista feminino – ver reverberada uma história deste tipo. Observada do recuo temporal, no entanto, ela nos sublinha certa dimensão ambígua do cinema clássico, ainda perpetuada: a beleza de Pola Negri é acima de tudo um carma; no entanto, seduz-nos como 90 anos atrás seduziu o dito patrocinador principal responsável pelo seu infortúnio... 

Oitavo (e último) dia: 8 out. 2017, sábado
Dia especial este último, aberto com um documentário heroico russo acerca do salvamento de um navio italiano, no Polo Norte (Feat in the ice, de Anatoly Zhardiniye, 1928) – o qual compôs um programa de Travelogues Russos que figurou nalgumas sessões da Giornate. Frente ao filme, e à música de José María Serralde Ruiz – único (já aqui eu o disse) artista hispano-americano nesta Jornada tão bela, mas tão eurocêntrica... –, uma descoberta: apresentado num horário inglório (9 da manhã, neste caso), este filme representou um dos pontos altos do evento, pelo desapego à narrativa ficcional clássica – estruturada a partir de vínculos causais claros e voltada à moralidade convencional –, e pelo direcionamento do olhar a um outro sítio que não a Europa. 

A seção das Nasty Women apresentou um único, porém ótimo filme, The Deadlier Sex (Robert Thornby, 1920), no qual a loura e virginal Blanche Sweet desempenha o papel da jovem que assume os negócios do pai morto, tornando-se executiva em Wall Street. Buscando fazer jus à tirania do ambiente, a jovem transmuta a “selva de pedras” à selva empírica, sequestrando um rival que queria lhe passar a perna e o enviando à lonjura onde ela costuma passar as férias, local onde ele não poderia usar o dinheiro com o qual achava que poderia comprar tudo. 
Obra-prima de comédia, é, pelo timing cômico, agilidade e olhar desopilado à sociedade, o elo perdido das screwball comedies que vicejaram a partir dos anos de 1930. A natureza do pedido de casamento do rapaz à moça – estamos, claro, ainda dentro das convenções da comédia burguesa – surpreende pelo nivelamento que ele propõe entre os gêneros sociais. 
A musicista Elizabeth-Jane Baldry protagonizou outro grande momento do dia. Acompanhando o sueco The house of shadows (Anders Wilhelm Sandberg, 1924), apenas fez sublinhar uma característica da obra: em meio a tantos filmes (cerca de 100 horas) de qualidades variáveis – uma porção medíocres –, o cinema pode ter transcendência. Sua música, fruto de um estudo cuidadoso da canção folclórica do norte europeu, compôs com suavidade a loucura do filho da jovem que, perseguida pelo marido, suicidara-se: o tema musical apresentado pela harpa na diegese do filme pouco a pouco se desdobra, misturando-se aos acordes do piano e, enfim, compondo o lait motif principal da trama. 
Enfim, o festival fechou-se com The Student Prince in Old Heidelberg, de um Lubitsch em plena maturidade (o filme é de 1927). O assunto é mesquinho, mas o desdobramento, primoroso: o príncipe chega à casa real ainda uma criança tímida, sob os olhares reprovadores do tio – o rei. Preso no palácio, ouve como lait motif da molecada da rua, dos velhos, das moçoilas: “como é bom ser um príncipe”. Conivente consigo, a câmera diz o contrário. 
Lubitsch está todo aí: no olhar triste da criança que subitamente brilha quando chega ao palácio o tutor espevitado que tanto lhe ensinará sobre a vida; na paulatina segurança do príncipe na medida em que cresce; no modo como a moça que o amará (a camareira da hospedaria de Old Heidelberg, onde ele vai cursar a universidade) o esquadrinha, quando ele (já então Ramon Novarro, o ídolo das matinês na época) chega ali – inversão dos ponteiros que atribuem ao homem este papel no jogo social. 
Uma certa cena traz Lubitsch em microcosmo: Norma Shearer cruza lépida a cena, carregando as oito taças de cerveja que servirá aos estudantes, na larga mesa da cantina – a perfeita camareira e a perfeita estrela, demonstrando o quanto o cinema pode ter de ritmo, de encantamento e de visada num só tempo terna e irônica aos doces sonhos da infância que a gente deseja (em vão) ver perpetuados. 
O filme foi acompanhado pela orquestra da cidade e pela trilha que Carl Davis compôs com ternura e bom humor análogos ainda nos anos 80, época em que o cinema silencioso ressurgiu em toda a sua grandiosidade aos olhos não apenas de um punhado de estudiosos que desde sempre conheciam o seu valor, mas ao conjunto do público embasbacado. Viva a redescoberta deste encantamento!
"The Student Prince in Old Heidelberg" em Pordenone
Foto de Valerio Greco

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (3/4)

Terceira da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Quinto dia: 4 out. 2017, quarta-feira 

Os destaques do dia foram um conjunto de vistas dos Lumière recentemente comprado pelo George Eastman Museum e restaurado por um jovem recém-graduado, bolsista de num projeto fomentado pela Haghefilm Digital: uma sequência de vistas de uma fábrica de papel, de panoramas de sua fachada, tomados desde uma embarcação que cruza o rio que margeia o local (a exemplo do que se vê com essa sequência de imagens e, pouco tempo depois, com as referentes ao affaire Dreyfus, registrados por Méliès, a busca do cinema pelo encadeamento narrativo é contemporânea ao seu nascimento, colhendo influências de artes como a literatura); ou a correria de uma brigada do corpo de bombeiros rumo – presumivelmente, já que a vista não mostra – a um incêndio, com os populares curiosos a acompanharem-nos (e acompanharem, sobretudo, os movimentos da câmera, nunca dantes vistos...). Mesmo um acervo organizado como o dos Lumière revela surpresas. 
À noite, a Carmen de 1918, dirigida por Lubitsch, mostrou um artista em formação – ainda carente da sublime ironia que se tornaria a sua marca registrada. A bela jovem, desempenhada por Pola Negri, revelou-se, por sua fria sordidez, oriunda mais da pena de Mérimée que da ópera de Bizet - frieza resvalada do tema à música. O diretor ainda acertava o seu metrônomo; a falta de ritmo da obra afeta a música que Thibaudault acabou de lhe compor: grave e errática, carente dos sóis da Espanha ou de erotismo. Resta todavia Pola Negri, uma estrela no senso literal da palavra, a brilhar para além do tempo e do espaço, da fragilidade da trama ou da música. Ah, os deuses tão humanos – embora fantasmáticos e intangíveis – do cinema demonstram ainda merecer o seu quinhão de culto. 

Sexto dia: 5 out. 2017, quarta-feira 
As sessões noturnas do dia foram preenchidas pela película francesa La Femme Rêvée (1928), de Jean Durand – diretor da sequência de loucuras de Onésime, nos ano de 1910 – e pela película escandinava Glomdalsbruden (1926), de Carl Dreyer. 
La femme revée ainda na Espanha
O primeiro, de incontornável machismo, como corresponde ao grosso da produção da época. O segundo, embora voltado a uma moralidade atrelada à tradição, surpreendentemente crítico. No filme francês, o tipo macho-alfa é flagrado sendo cortejado por uma fêmea típica da haute gomme francesa, e a rechaçando em prol de sua viagem de trabalho à Espanha. Acidenta-se, todavia, no trajeto, e perde a visão (cegueira sem qualquer transcendência na trama para além do óbvio “Queria tanto poder ver para conhecer os seus traços.”, que o homem diz à mocinha que o salva). Um corte e a ação se concentra na casa da tal mocinha, jovem a qual a tia conservadora deseja ingressar no noviciado. 
Em Paris, la femme revée aprende o charleston
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A cor local da Espanha profunda surge de modo quase documental, no esquadrinhamento da hacienda espanhola e de uma corrida de bois que ali tem lugar. Esquecemo-nos do casal francês durante parte considerável da trama; falha dramatúrgica. O protagonista tem, graças aos cuidados da mocinha, a sua visão recuperada. Reciprocamente apaixonados, ele a leva dali a Paris. Inicia-se então uma investigação do dia-a-dia da alta goma parisiense. O homem quer transformar a pura – mas sensaborona – espanholinha na “mulher sonhada” à qual alude o título, inserindo-lhe uma dose do savoir faire do qual é dotada a jovem cheia de etiqueta – mas sem coração – com quem ele flerta no início. A leitura machista segue a cartilha dos anos 20, do qual raras produções escapam: o processo de transformação da jovem é narrado sem qualquer senso crítico, e o procedimento crápula do marido perdoado a priori pelo diretor. 
Glomdalsbruden (1926)
Salvou-se no filme a música, que fez algo que este ano como nunca percebi ser fundamental: numa exibição tão recuada de seu contexto histórico original, cabe à trilha sonora desempenhar o papel de análise crítica do que a tela mostra. Maud Nelissen e Frank Bockius fizeram bem isso, integrando à música, com boa dose de ironia, desde um conjunto dos temas populares norte-americanos aos quais a espanhola provinciana é obrigada a aderir, até sons incidentais que recuperam os primeiros usos dos sons no cinema, como o barulho da água a sublinhar os mergulhos piscina do Lido parisiense (espaço surreal enfronhado na Champs Elysées, mistura de café-cantante e clube de campo). 
Já o escandinavo Glomdalsbruden (ou The Bride of Glomdal) participa – sem estar nele integrado – dos eflúvios das seções da Giornate denominadas Nasty Women: logo de saída a jovem diz ao namorado (que o pai a proíbe de ver): “Meu pai está me vendendo como se eu fosse gado”. A resolução do conflito se dará por meio do diálogo – a tradição fala mais alto, obrigando os jovens a convencerem o pai dela ao consentimento para que o casamento se consuma. Ao final, toda a tensão concentrada emerge numa cena explícita de torvelinho: o namorado que caminha para as núpcias precisa vencer uma tormenta para que finalmente possa se unir à mulher que ele ama. O rio que os separa ganha função metafórica: representa quem sabe as águas espessas da tradição, sobre a qual se é preciso lançar com as largas braçadas da perseverança caso se queira conquistar paragens mais amenas.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (2/4)

Segunda da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Terceiro dia: 2 out. 2017, segunda-feira. 
Léontine noutro filme da série: Les Pétards de Léontine (1910). 
 Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
Seguem as Nasty Women. “Léontine”, heroína da Pathé e chefe de uma série cinematográfica oriunda da Desmet Collection, parece ter o dedo podre. Em Le Bateau de Léontine (1911), inunda a casa para criar um espaço navegável ao portentoso barco de brinquedo do pai. Ela encara a câmera ao final, tão perdida quanto divertida – e seca, já que se protegera em cima dos móveis para conduzir a embarcação no rio improvisado. Noutra fita, Léontine en apprentissage (1910), a jovem tenta em vão aprender um ofício, destruindo sucessivamente lojas, cozinhas e restaurantes. 
A seção convive com outras duas seções temáticas essencialmente diferentes, uma voltada à Primeira Grande Guerra, denominada The Effects of War, composta substancialmente por documentários rodados entre 1917 e 1920, portanto, no calor da hora, e um filme de ficção. Há um incontornável contraponto entre os – sobretudo – panoramas dos palcos do conflito, em ruínas (em especial a região do Danúbio e certas regiões francesas então recentemente liberadas) e das casualties dele oriundas (crianças desnutridas, mutilados). Cidadãos habitando restos de residências, presidiários refazendo plantações, soldados reconstruindo estradas destruídas. 
Em primeiro plano, olhando do distanciamento temporal, emerge o absurdo da guerra, sua recorrência com contornos tão semelhantes. Somos, enquanto público, irmãos do Brás Cubas de Machado de Assis, que desde um monte assiste ao infindável cortejo de misérias de todos os tempos, que se desdobra concomitantemente diante de seus olhos. Em meio à realidade fria, tomada in media res, com severidade e um fundo de otimismo, insere-se uma comédia como La paura degli aeromobili nemici (André Deed, 1915). Ao fim e ao cabo, o riso resta como salvação do espírito, frente ao caos incontornável. 
Le Coeur et les yeux (Emile Chautard, 1911), um dos filmes 
da seção For a better vision. 
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A outra seção, oriunda da Desmet Collection, compila um conjunto de filmes de 1910 a 1915 que giram em torno da cegueira (denomina-se For a better vision). As abordagens são variadas, mas podemos distinguir mais claramente dois contornos, o documental – que se esforça por fazer uma leitura “objetiva” do tema – e o melodrama. Um filme como Istituto per ciecchi a Bandung (1912-13), que aborda o conjunto de atividades ali desenvolvidas visando-se a integrar os deficientes visuais na sociedade (educação em braile, profissionalização, tratamento) – tratando-os, enfim, como sujeitos capazes –, vão ao encontro de um conjunto de filmes em que a perda da visão determina a incapacitação desses indivíduos, o idiotismo (em maior ou menor grau). 
Para além da cegueira trágica de Édipo, o qual fere os olhos na impossibilidade de encarar as suas faltas e o seu destino, esses homens aqui retratados são frutos de penas mais coitadistas. São descendentes da orfãzinha de Decourcelle e de outros tantos melodramaturgos, e fariam brotar, nas décadas seguintes, gente como o protagonista de A luz dos seus olhos, filme protagonizado por Cacilda Becker sobre o qual já tive a possibilidade de discutir neste blog (o link para a resenha encontra-se aqui). 
Trappola (1922)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A pérola do dia foi um filme autoreferencial denominado Trappola, uma obra-prima italiana de Eugenio Perego, de 1922, recentemente restaurada pela Immagine Ritrovata, com uma montagem sincopada, que revela a tonalidade cômica (goddardiana no uso recorrente do jump cut, poderíamos dizer, mas qualquer influência – se acaso houver – obviamente que caminha aqui na direção contrária). A obra é protagonizada por uma diva italiana cheia de carisma, Leda Gys (que em cena é Leda Bardi, estabelecendo-se uma crítica bem-humorada à analogia entre pessoa e personagem, em voga no cinema clássico). À certa altura, a mocinha – interna de um colégio de freiras – foge dali para ajudar a amiga a reconquistar o namorado que, apaixonado por uma atriz acrobata, resolveu ser ator de cinema. No set, a jovem zomba dos maneirismos da primadona à medida que encarna figurantes em produções diversas. Pela graça e despretensão – e leitura irônica que faz do métier, ao encetar um passeio pelos seus bastidores com olhos muito mais jocosos que embevecidos – será uma das principais obras da Giornate. O acompanhamento musical ficou a cargo de José Maria Serralde-Ruiz – o único músico hispano-americano do festival encontrou à obra uma tonalidade comicamente passional que passou o dia todo buscando. Sublinhou o humor e a graça daquelas personagens que até outro dia poucos de nós sabíamos que existiam. As revelações do cinema silencioso, (re)descoberto a cada novo esquadrinhar de arquivo. 

Quarto dia: 3 out. 2017, terça-feira.
O quarto dia da Jornada continuou a revelar westerns rodados ao redor do mundo (aka., na Europa e nos Estados Unidos, neste caso, na Itália e França). Entre eles, um protagonizado por Onésime, com o qual me encontrei primeiro ainda no Doutorado, em Onésime Vagabonde, filme-dentro-do-filme que Feuillade transforma, em Erreur Tragique (1913), no catalizador dos ciúmes do esposo pela mulher com quem recentemente se casara. Onésime sur le sentier de la guerre (1913) é a obra. 
Os highlights do dia para mim são, todavia, Die Bergkatze (de 1921, intitulado tolamente em português Beijos que se vendem), do (quase) sempre brilhante Ernst Lubitsch. Apresentado no “Cinemazzero” em sessão especial às escolas, a comédia não provocou muito riso entre as crianças – o humor sofisticado e ferino do diretor alemão não é talhado aos pequenos. Já eu me deliciei. A história é um desvario, que se estende à forma e ao fundo. Pola Negri, com seu sorriso de um milhão de dólares, é a bandoleira-chefe de um grupo que atua nas gélidas montanhas de um país qualquer (os tipos humanos postos em ridículo importam mais que a localização geográfica, porque são universais). 
O “Belo” de Die Bergkatze (1921)
Mulher-macho, Pola descobre-se à certa altura apaixonada pelo “Belo”, assim literalmente denominado pela película que procura mais pô-lo em ridículo que incensá-lo, terror do mulherio das zonas nas quais ele serve (o tipo é um militar). A cena de despedida do belo de seu habitat natural rumo às montanhas onde receberá de um superior um corretivo é impagável – na despedida, milhares de mulheres a chorarem; odes em sua homenagem e vinte crianças a acenarem-lhe lencinhos brancos: “Adeus, papai.” Lubitsch em seu melhor, venenoso e amoral. O rapaz, claro, se encontrará com a bandoleira, que o reduzirá a cinzas. Acaba se apaixonando por ele, e ambos choram e riem sua deleitosa desdita – como tão bem Lubitsch consegue fazer. Risos e lágrimas misturados, como sabe ser o mais encantador (para mim, claro – aqui é a subjetividade falando) cinema narrativo. 
A noite foi composta por duas sessões. A primeira, com uma obra de Victor Sjöström visualmente belíssima e coalhada da moral cristã que comparece em boa medida na cinematografia do autor (A Carruagem Fantasma, obra-prima de 1921, é o mais bem acabado exemplo): Vëm Domer? (1922). O cerne aqui é a culpa cristã, defendida religiosamente pelo artista, que leva a sua protagonista literalmente a um calvário: percebendo que o marido morreu ao tomar conhecimento do desejo homicida da esposa, ela acredita que deverá caminhar sobre o fogo sagrado (castigo típico do período inquisitorial, em que a história se passa) para aferir se Deus a perdoará. A “iluminação” da personagem se dá, no entanto, em prodígios cinematográficos – da paulatina descoberta dela (e de sua paulatina transfiguração, como consequência disto) de que o marido a vira, desde o espelho, preparar a taça fatal que ele nem chega a beber; até a simbólica crucificação dele, na porta banhada de luz. Ele se transforma no Cristo particular da esposa, e é quem ao cabo acaba por perdoá-la. Visada machista, além de tudo. 
A sessão triunfou musicalmente, com a presença de Neil Brand e Frank Bockius, no piano e bateria. Histórias assim derramadas precisam, para serem convincentes, de uma música ou que as mimetize, ou que caminhe a contrapelo, sublinhando pela ironia o absurdo do que é pregado. Os músicos escolheram o primeiro caminho. Trêmulos na bateria nos momentos de maior impacto do drama, e uma música de tonalidade melodramática fizeram-se ouvir. Não tenhamos vergonha do clichê, diria um dia mais tarde outro músico da Giornate, Thibaudeaut. 
Um pouco mais tarde, uma dobradinha de filmes franceses, Ménilmontant (Kirsanoff, 1926) e Fièvre (Delluc, 1921). Obras essencialmente diferentes, avant garde, com movimentos ágeis de câmera, decupagem rápida e avessas, em fundo e forma, à narrativa moralista clássica, representada pelo filme anterior. Mário de Andrade passa em filme em minha cabeça enquanto acompanho a história das jovens irmãs que perderam os pais e, vivendo no bairro popular que dá nome ao filme, amam o mesmo homem e são enredadas por ele. Os contornos melodramáticos terminam ali: a câmera convida os espectadores a perscrutarem, por meio dos rostos das protagonistas pegos em primeiríssimos planos, o torvelinho que lhes vai internamente. Para além de convencionalismos, emerge a busca do amor e do respeito, o desespero do abandono e a fome (a doçura transida do rosto da jovem mãe a tomar, agradecida, o pão que o estranho – tão pobre quanto ela – lhe dá, aponta que certas tramas são tão velhas quanto a esperança nutrida pelos corações humanos, daí a sua eficácia). 
Em seguida, o torvelinho faz-se carne em Fièvre, por meio dos casais que rodopiam no salão de certo bar do bas-fond parisiense. Na apresentação de cada personagem que frequenta o espaço, um misto de simpatia e ironia. E ao final, estamos todos compartilhando de seus desejos e destinos. Que diretor de mão-cheia é Delluc, e como a música é fundamental a essas sombras, oferecendo-lhes a voz de que elas tanto carecem – Stephen Horne e Romano Todesco criaram uma das sonoridades mais eficazes da Giornate, à altura da assertividade (ou comedimento emocional, pode-se dizer) francesa.

terça-feira, 4 de abril de 2017

A loja da esquina (1940) e Mensagem pra você (1998): o encontro de duas eras

Hollywood vive de se reinventar. A loja da esquina (1940) e Mensagem pra você (1998) são exemplos claros disso. Nos últimos dias, fiz o exercício assisti-los um depois do outro, a versão depois da obra original. O resultado foi uma mistura curiosa de nostalgia e de descoberta. Produtos fechados – put it in the can é uma das máximas da indústria –, os filmes reverberam, ecoam, renascem em nós como se fossem feitos da matéria das sempre-vivas. Nós continuamos a existir e, ao entregarmo-nos de tempos em tempos a eles, os ressignificamos. 
Mensagem pra você (You’ve got mail, Nora Ephron, 1998) tem como cenário o Upper West Side nova-iorquino. Já A loja da esquina (The shop around the corner, Ernst Lubitsch, 1940) tem ambiência e diretor estrangeiros – passa-se em Budapeste e é dirigido por um diretor alemão. Ambos, todavia, cruzam-se muito mais do que se separam, a despeito das críticas tecidas à versão moderna, à época de sua estreia. No final das contas, os dois brotam de Hollywood, reproduzindo as estéticas das comédias românticas sacramentadas em ambas as décadas. E dialogam muito de perto com as sociedades de onde brotam, num e noutro tempo. 
A loja da esquina é rodada no princípio da Segunda Grande Guerra e respinga a melancolia, os sonhos deixados em suspenso, o temor ante a volatilidade da vida próprios desses tempos – a sua dessemelhança com relação às patriotadas rodadas em momentos análogos surpreende. Ali, as existências dos apaixonados correspondentes anônimos Klara Novak (Margareth Sullavan) e Alfred Kralik (James Stewart), protagonistas da história, mistura-se àquelas dos demais funcionários da loja do patrão abusivo Hugo Matuschek, onde a história se passa. Se o filme se divide em duas partes, deslizando em curva ascensional das amarguras até os estertores da felicidade – como corresponde ao cinema standard da “Era de Ouro” de Hollywood –, o que remanesce é o sentimento oriundo à primeira parte: a demissão injustificada da personagem de James Stewart reverbera séculos de exploração lavoral, um mal ainda hoje insolúvel . 
O filme é uma pequena obra-prima porque o mestre Lubitsch baixa o tom de todo o elenco, convidando o espectador a testemunhar as histórias narradas a meia-voz, entre os atendimentos dos fregueses da loja de presentes e as intervenções do Sr. Matuschek. Vertido de uma peça teatral, o roteiro não nega a sua procedência. Praticamente tudo se passa entre o interior da loja e as esquinas onde ela se situa, o suspense sendo criado por meio dos travellings dos funcionários a circularem entre o salão, o estoque e a sala do patrão. A partir dos cochichos de Alfred ao amigo, na tensão que preponderava naquele ambiente de trabalho, tomamos conhecimento do desabrochar de seu relacionamento com a dona da caixa de correio 236.
Mensagem pra você é, como o original de 1940, produto de seu tempo. Não apenas pela referência mais direta à World Wide Web, na aurora da qual ele foi rodado (é curioso observarmos que os modernos pombinhos navegam por meio da conexão discada, através da AOL, que faliria anos depois), mas pelo clima de otimismo geral no interior do qual o desenvolvimento tecnológico é apresentado. A história se passa numa Nova Iorque crescentemente mais segura, graças à atuação do prefeito Giuliani – citado textualmente –, coração cultural daquele país que marchava firme rumo ao século XXI, ignorante dos tempos lúgubres que se avizinhavam. O deslocamento temporal/geográfico se expressa bem pelo tom geral do filme, expansivo, e aqui não me refiro apenas às vozes das personagens, mas ao tom do discurso (a romantizar os grandes conglomerados, representados no filme por Tom Hanks, o carisma em pessoa), à seleção musical (uma polifonia que adere ao vintage, tão presente na memória coletiva – cristalizando-se entre o jazz efusivo e o idílio romântico), às cores cálidas (imperando a paleta do vermelho mesmo durante o mais agudo inverno nova-iorquino) e os sítios facilmente reconhecíveis de Manhattan (o cais, o Riverside Park, a Starbucks), a sublinharem o pitoresco da cidade devoradora, transformando-a numa variante do mundo de Oz. 
A escala dos conflitos também é ampliada. Meg e Tom, que se conhecem graças não mais às cartas, mas aos e-mails, são agora dois adversários nos negócios – ela, proprietária de uma pequena loja de livros infantis; ele, de uma rede de grandes livrarias em franca expansão, a Fox Books. Porque não o oposto? O filme reproduz o status quo social, resvalado ao cinema industrial, de que a suavidade pertence ao âmbito feminino, e a assertividade nos negócios ao masculino. Não por outro motivo as flores preferidas da moça são as frágeis e frescas margaridas. Neste quesito, Mensagem pra você retrocede no tempo quando comparado à Loja da Esquina, no qual a agudeza é característica preponderante da mulher, e a delicadeza, do homem. Mas Lubisch era um diretor muito a frente de seu tempo. 
Meg Ryan reverbera no filme a faceta principal de sua persona cinematográfica, a fragilidade; característica que a fizera amada pelas plateias dos anos 90. Com Tom Hanks ela fizera anos antes Sintonia do Amor (Sleepless in Seatle, 1993), variedade moderna de outro clássico americano, Tarde demais para esquecer (An affair to remember, 1957), e ali também ela estava distante da determinação da personagem original, levada à cena por Deborah Kerr. Os olhos verdes e os longos cabelos louros da atriz – embora mais curtos em Mensagem pra você – talhavam-na às heroínas romanescas típicas, o que Hollywood, ao invés de subverter, exaltou. Revi-a recentemente em Kate e Leopold (de James Mangold, 2001) e a sua mulher de negócios, teoricamente uma "devoradora de homens", parece a todo o momento prestes a cair em prantos, como se fosse receptáculo de todas as dores do mundo. Esta é a Meg Ryan inventada e destruída por Hollywood tão logo a idade a impediu de continuar reproduzindo o tipo. Certas coisas nunca mudam. 
Voltemos à Loja da Esquina. A obra de Lubitsch tem uma vocação inegável ao teatro, da qual ela se originou. O húngaro Miklós László, autor da peça que se transformaria em filme, chega mesmo a ser explicitamente mencionado, em forma de chiste: certo funcionário da loja comemora com a esposa o fato de ele precisar fazer hora extra e ser, portanto, felizmente desincumbido de ir jantar com “os Lászlós”. O filme é um manancial de ditos espirituosos, alguns transpostos textualmente à Mensagem pra você, a exemplo de “Você tem no peito uma caixa registradora ao invés de um coração.” ou “Você não passa de um terno.” Por isso, acusaram a versão dos anos 90 de ser demasiado derivativa. 
Vendo Mensagem pra você do distanciamento temporal – afinal, vão quase 20 anos desde o seu lançamento – conseguimos ressaltar o que ele tem de original e mesmo (na falta de melhor palavra) de profético. O filme traz num segundo plano um debate sobre o status dos relacionamentos interpessoais no princípio da massificação do ambiente virtual. É curioso revê-lo nesses nossos dias permeados pelas redes sociais, quando as compras pela internet ameaçam a existência de conglomerados como o de Tom Hanks, o grande vitorioso da contenda entre a “tradição” e o “progresso” encenada no filme. A diretora Nora Ephron não era boba, e redige (com Delia Ephron) um roteiro repleto de alusões cinematográficas contemporâneas e posteriores a Shop around the corner – daí a intitular a lojinha de Meg segundo o título do filme de Lubitsch, ou a inserir nele inúmeras referências à trilogia do Poderoso Chefão, perfeitas ao ambiente masculino/mafioso onde circula a personagem de Tom – a quem o sobrenome “Fox”, “Raposa”, tão bem define. 
Nora tinha um desvelo quase que religioso pelos clássicos (é também dela a direção e o roteiro de Sintonia do Amor, escrito em co-autoria) dos quais depreendia não apenas os temas como a atmosfera de suas tramas. Os passeios pelas ruas de Nova Iorque, que ela soube tão bem roteirizar (outro bem acabado exemplo disso é a obra-prima Harry e Sally, também com Meg Ryan, dirigido por Rob Reiner em 1989), permeados pelo cancioneiro norte-americano, nos dão, nesses tempos espinhentos, uma saudade imensa da cidade inventada à medida dos corações nostálgicos. Mensagem pra você sustenta-se hoje como justa homenagem ao cinema clássico americano. Visto em paralelo à Loja da Esquina, explicita quão grande foi a influência da “Era de Ouro” do cinema no burilamento da produção cinematográfica de todo o século XX. E sem saber, testemunha os estertores do gênero “comédia romântica”, e o charme inescapável dos ídolos por ele criados – não apenas de Meg Ryan, minha musa absoluta da adolescência.

domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

domingo, 30 de setembro de 2012

“Ninotchka” (1939). Ou: como fazer uma bolchevique render-se à Cidade-Luz.

O aniversário de 107 anos do nascimento de Greta Garbo, comemorado em 18 de setembro, pedia uma celebração à altura. Urgia rever algo da eterna “Divina”, da dama solitária, etérea, inatingível. “Ninotchka”, só poderia ser “Ninotchka”! Que filme mais condizente com um festejo de aniversário, mais high-spirited, mais esvoaçante do que o conto da bolchevique convertida às plumas e paetês do capitalismo pelas mãos do francês bon vivant Leon? Garbo está tão brilhante nesta comédia de Lengyel, Reisch, Brackett, Wilder e Lubitsch, encontra-se tanto nela, que pouco nos damos conta de que este é o filme no qual ela menos foi Garbo...
em "Mata Hari"
O que não se deu por acaso. O fim da década de 1930 via a saturação dos tipos criados por Hollywood a partir de meados de 1910. Pelo espaço de 10 anos a atriz experimentara sucesso inaudito pelas variantes de vamp que levou à cena: a Mata Hari (do filme homônimo de 32), a Felicitas (de “Flesh and the Devil”, 1927), a tentadora Elena (de The Temptress, 1926), a misteriosa Tânia Fedorova (de “The Mysterios Lady”, 1928). Mulheres perigosas, porque distantes léguas da criatura passiva tida naquele tempo como modelo de esposa ideal. Mulheres que misturavam androginia, liberalidade e romantismo num grau demasiado temerário para a sociedade machista onde viviam; daí a pagarem por suas escolhas desviantes com a morte ou a solidão. 
Os desenlaces dos filmes de Garbo apresentam quase que unicamente o desfile de entes infelizes. Pobre bailarina Crusinskaya, que em tão breve período descobre o amor e a perda (“Grande Hotel”, 1932). E Camille, que sucumbe após ser obrigada a deixar seu querido Armand (“A Dama das Camélias”, 1936)? E a Rainha Cristina (do filme de 1933), que abdica da coroa para imediatamente depois descobrir que o amado morrera em combate? E Elena, pobre ébria a vagar pelos botequins da vida, sem perceber que o homem que lhe dá esmola é seu grande amor, e a confundir o mendigo com Jesus Cristo!? A máxima hollywoodiana do happy ending sistematicamente poupou Greta Garbo. 

Por isso, “Ninotchka” marca uma ruptura na carreira da atriz. Por ser a primeira comédia de uma filmografia que remontava a 1924 e porque marca a redefinição da persona que a tornara notória e que deixara de apetecer o público. Sorte de Garbo – e nossa – foi que tal redefinição tenha se dado por meio de veículo tão primoroso. “Ninotchka” é uma obra-prima de comédia, brilhantemente escrita, desempenhada e dirigida. 
Quem conduz a batuta aqui é Ernst Lubitsch, alemão que nasceu artisticamente junto com o longa metragem, em meados dos anos de 1910. Foi um dos grandes artífices da sétima arte; homem de timing perfeito para o que quer que fosse: a comédia sofisticada silenciosa (“Lady Windermere’s Fan”, 1925); o musical (“Alvorada do Amor”, 1929, apresentação do eterno par romântico Jeanette MacDonald/Maurice Chevalier); a screwball comedy (“To be or not to be”, de 1942 e “A loja da esquina”, de 1940 são duas obras-primas do gênero)... 
Lubitsch, Garbo e Melvyn Douglas
No que concerne a “Ninotchka”, Lubitsch soma o trabalho de direção ao de escrita do roteiro. Segundo Mark Vieira, soluções fundamentais à história foram criadas pela pena do diretor. Soluções cinematográficas, que claramente faziam emergir o Lubitsch touch, como as cenas em que figura o chapeuzinho tipicamente parisiense, a relação de Ninotchka com o adorno servindo de metáfora à sua paulatina aceitação dos modos de vida da Cidade-Luz. Mark Vieira ainda sublinha a importância de Lubitsch no sentido de ajudar sua protagonista a encontrar o caminho da personagem – Garbo estaria insegura e amedrontada por retornar à cena numa personagem tão diversa daquelas que costumava interpretar. 
Notória por personificar mulheres cada vez mais distantes, Garbo via-se arrastada a terra. “Garbo laughs”: a expressão que surgira antes do roteiro, no departamento de marketing da MGM, deixava claro o intuito de dessacralizar a persona da “Divina”. O roteiro primoroso segue fiel o intuito, efetuando a humanização da diva por meio de um delicioso exercício metalinguístico, que todo o tempo questiona e rasga a roupagem que o star system atrelara à atriz. 
Garbo é Ninotchka, enviada especial da Rússia comunista à luminosa Paris de um tempo nostalgicamente referido no prólogo como “aqueles dias maravilhosos em que uma sirene era uma morena e não um alarme – e se um francês apagava a luz, não era por conta de alguma ameaça aérea!”. O tempo histórico da rodagem da película era, efetivamente, bem mais conturbado: em 1939, Hitler já havia anexado a Áustria, declarado Guerra aos Aliados e assinado um tratado de não-agressão com a Rússia. O filme caminha entre a história e a fantasia: saíra da máquina de fazer sonhos que, no entanto, durante a guerra aceitava cada vez mais discutir a realidade. Por isso, Ninotchka é num só tempo a bolchevique pragmática que viaja à Paris incumbida de vender as joias outrora pertencentes à Rússia czarista, e a borralheira tornada cinderela depois que a cidade a enfeitiça. 
A reconstrução da imagem de Garbo se dá desde o primeiro plano em que ela aparece. Ninotchka aporta numa estação de trem de Paris: Garbo está sem maquiagem. Aparece despida do mistério que, em filmes anteriores, lhe emprestavam o figurino, a maquiagem e a fumaça das locomotivas. Surpresos pelo fato de o enviado especial ser uma mulher, os três russos que a esperavam na estação recebem dela a resposta: “Don’t make an issue of my womanhood.” Está aí um exemplo de como funciona esta máquina de ditos certeiros que é o filme. 
Lubitsch e companhia criaram para Garbo uma personagem bastante coesa. Ela é uma tipificação anedótica da Rússia vermelha, dirão os críticos. Certamente, mas, o que é a comédia se não a restrição dos indivíduos aos tipos sociais? O que vale é que o filme diverte imenso, e Greta está tão absolutamente hilária que quem o vir se lastimará por ela ter abandonado a carreira tão cedo, dedicando-se tão pouco a este gênero. A pragmática Ninotchka, exemplar de uma Rússia que pouco tempo antes dera adeus a convenções como o casamento, repudiando o lastro burguês dele e de seus congêneres, como o amor romântico, toma a relação homem-mulher como uma atração de cunho biológico. Surpreendente é que diálogos como o abaixo tenham passado incólumes pela censura da época (Mark Vieira argumenta como isso se deu no imperdível Greta Garbo: a cinematic legacy, minha bíblia da atriz): 

Ninotchka: Love is a romantic designation for a most ordinary biological... or shall we say “chemical” process. A lot of nonsense is talked and written about it. 
Leon: I see. What do you use instead? 
Ninotchka: I acknowledge the existence of a natural impulse common to all. 
Leon: What can I possibly do to encourage such an impulse in you? 
Ninotchka: You don't have to do a thing. Chemically, we are already quite sympathetic.
Leon: You are the most incredible creature I’ve ever met. Ninotchka. 
Ninotchka: You repeat yourself. 
Leon: Yes, I’d like to say it 1,000 times. You must forgive me if I seem a little old-fashioned. After all, I’m just a poor bourgeois. 
Ninotchka: It's never too late to change. I used to belong to the petite bourgeoisie myself.

Aliás, as declarações de amor de Ninotchka a Leon são das minhas all time favourites... 

Leon: Ninotchka... do you like me just a little bit? 
Ninotchka: Your general appearance is not distasteful. 
Leon: Thank you. 
Ninotchka: The whites of your eyes are clear. Your cornea is excellent. 
Leon: Your cornea is terrific; 

ou 

Ninotchka: As basic material, you may not be bad. But you are the unfortunate product of a doomed culture. I feel very sorry for you; 

ou 

Ninotchka: And what do you do for mankind? 
Leon: For mankind? 
Ninotchka: Yes. 
Leon: Not so much for mankind. But for womankind, my record isn’t quite so bleak.
Ninotchka: You are something we do not have in Russia. 
Leon: Thank you. Glad you told me. 
Ninotchka: That’s why I believe in the future of my country. 

O roteiro genial é sublinhado por uma obra-prima de interpretação. Com sua voz profunda, seu sotaque estrangeiro e seu cabedal de vamps, Garbo torna único um papel que, malgrado a tipificação, é originalíssimo. Impossível vermos “Ninotchka” sem colocá-lo em contraponto com tudo o que ela fizera antes. O próprio roteiro não deixa: “Go to bed, little father. We want to be alone.”, diz Ninotchka ao velho mordomo de Leon, claramente dialogando com a expressão que até então a definia em Hollywood. 
“Ninotchka” faz mofa do comunismo, mas não poupa o capitalismo. A jovem irrita-se com a injustiça social presentificada pelo carregador de malas da estação. “Injustiça? Depende da gorjeta.”, o moço replica. “Repilo O Capital como repilo a poeira.”, diz o papaizinho mordomo de Leon. “Mas você não está interessado na igualdade? Você é um reacionário!”, Leon lhe diz. “Tudo bem que não sou pago faz dois meses. Mas ter de dividir com o senhor as economias de minha vida inteira já é demais.”, responde o velho... Por outro lado, essa definição que Leon dá para o rádio cairia como uma luva ainda hoje como explicação da sanha de consumo capitalista: “Rádio é uma caixinha que você compra no plano de instalação, e antes de ligá-lo descobre que há um novo modelo no mercado.”... 
Aliás, a personagem impagável de Garbo só funciona porque tem um leading man à altura. Melvyn Douglas já contracenara com ela no ótimo “As you desire me” (1932) e ainda seria seu galã no malfadado “The two faced woman” (1942), filme com que ela se despede das telas. Aqui ele é o parisiense arquetípico, que Maurice Chevalier tão bem apresentara anos antes: galanteador, charmoso. Este perfeito exemplar da luminosa sociedade capitalista acabará por encantar a bolchevique obstinada, claro. No entanto, embora eu prefira a Garbo borralheira da primeira parte do filme, não consigo negar seu charme quando ela se deixa impregnar do romantismo daquela sociedade “brilhante e condenada” – como tão bem a define Leon. 
Porém, mesmo os chavões românticos são envoltos pelo roteiro numa aura de eternidade: observem-se a reação de Ninotchka quando recebe as flores e o leite de cabra que Leon lhe mandara, sabendo já naquele momento que deveria deixá-lo; o fuzilamento simbólico da bolchevique em honra das “massas”; ou toda a sequência em que Ninotchka e os companheiros, já em Moscou, decantam nostálgicos sua temporada parisiense. 
“Ninotchka” é, efetivamente, um ótimo modo de se celebrar Greta Garbo. Porque, pensando bem, o filme nem rompe tanto assim com a imagem que consolidara no écran esta mulher que, mesmo terrena, soube como continuar divina.