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domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

terça-feira, 17 de julho de 2012

“Casablanca” (1942). Never out of date.

Enquanto eu via “Casablanca” pela última vez, na semana em que o filme completava 70 anos, procurei levantar as razões que o tornaram tão especial aos olhos da crítica e do público, da época e de hoje. Em 1943, a obra recebeu os Oscars de Melhor Diretor, Filme e Roteiro. Em 2007, ela passou a ocupar o 3º lugar na seleção da American Film Institute dos 100 melhores filmes americanos de todos os tempos. Hoje, ocupa o 20º lugar da sempre atualizada lista do IMDB dos 250 melhores do mundo. Uma unanimidade. 
Unanimidade merecida, nem é preciso dizer. 
“Casablanca” conseguiu, na época, a proeza de agradar as mais diversas camadas do público. Sucesso devido à competente mistura de gêneros que apresenta: É uma história de aventura, anunciada desde o princípio pela melodia épica de Max Steiner, enquanto um mapa-múndi a girar aponta o caminho palmilhado pelos personagens. Tem lastro forte com a realidade, que aparece fundida aos planos do mapa, nas imagens (provavelmente) de arquivo dos indivíduos que deixaram a Europa assolada pela guerra rumo ao Marrocos francês, de onde poderiam partir para a América, desvencilhando-se da fome, da pobreza e dos nazistas. E tem uma história de amor. Uma, não: tem a história de amor quintessencial, feita de lágrimas, fossas homéricas, abnegação; embalada pela canção que define cabalmente seus protagonistas. 

Moonlight and love songs 
Never out of date 
Hearts full of passion 
Jealousy and hate 
Woman needs man 
And man must have his mate 
That no one can deny. 

It’s still the same old story 
A fight for love and glory 
A case of do or die. 
The world will always welcome lovers 
As time goes by. 

 Ao emoldurar o idílio de Ingrid Bergman e Humprey Bogart, “As time goes by” – composta originalmente para um show de pouco brilho da Broadway e esquecida em 1932, junto com ele – torna-se atemporal. Sem a história de amor impossível que vive o casal não haveria uma sussurrante Barbra Streisand, trepada sobre o piano em “Esta pequena é uma parada” (1972), a cortejar Ryan O’Neal enquanto arrastava as letras da melodia. Ou Meg Ryan na busca insólita pelo homem por cuja voz ela se apaixonara em “Sintonia de Amor” (1993). A canção torna-se depois metonímia de cinema – já que o amor é o que, sobretudo, o nutre. Não é à toa que ela foi escolhida pela Warner na altura dos anos 2000, para embalar o clipe comemorativo de seus 75 anos, e desde então serve de trilha sonora ao logotipo da companhia. 
Parte considerável do charme duradouro do filme está na escolha dos protagonistas. Ingrid chegara a Hollywood havia pouco, vinda da Suécia, país onde fizera poucas protagonistas. Graças a uma delas, a jovem pianista de “Intermezzo” (1936), a atriz é descoberta por David Selznick e, então, convidada a repetir o papel em versão norte-americana da película. Sua beleza natural a torna objeto de atenção na Hollywood maxfactorizada da entrada dos anos 40, multiplicando-lhe as chances de trabalho e atrelando-se imediatamente a ela uma imagem de pureza e magnificência da qual ela forçou-se por se desvencilhar, na vida e na arte, em papéis como o da dançarina de cabaré de “O Médico e o Monstro” (1941) ou em sua escapada rumo ao neo-realismo de Roberto Rossellini em 1949, do qual ela retornaria apenas sete anos mais tarde, mãe de três filhos de seu marido-diretor. Humprey Bogart ingressara na Sétima Arte corporificando uma variante de facínoras, ocasionalmente desdobrados em toda sorte de indivíduos de caracteres dúbios. Trabalhando constantemente desde 1930, ainda em 1940 ele raramente via seu nome encabeçar os créditos das produções – vilães raramente faziam papéis principais. 
“Casablanca” colocou em cena os opostos, redesenhando os tipos no curso da ação. Redesenhou menos a bela Ingrid – que no filme desempenha uma variante das mulheres esplendorosas das quais ela tentava fugir – que Bogart, que se vê transformado numa versão atualizada de romantic knight, a torturar-se pelo amor da misteriosa europeia por quem se apaixonara durante a guerra, e que agora ele via à sua frente, supostamente inatingível porque casada com um homem moralmente superior. Cabe a Bogey os gestos mais românticos da história. Ingrid é, durante boa parte do filme, a mulher racional, fiel acompanhante do marido, líder da resistência francesa durante a 2ª Guerra. Toda a frieza de Bogey, desdobramento dos inúmeros personagens frios que ele interpretara no curso de sua carreira, desfragmenta-se quando ele reencontra a personagem de Ingrid na “espelunca” que possuía em Marrocos. “As time goes by”, que novamente materializa o caso de amor ao ser tocada por Sam no Rick’s Café Americain, é primeiro relembrada por Ilsa, mas comove sobretudo Rick. É ele que, na escuridão do bar fechado, bêbado, pede que o pianista – testemunha da história – toque novamente a canção: 

Rick: You know what I want to hear. 
Sam: No, I don't. 
Rick: You played it for her, you can play it for me! 
Sam: Well, I don't think I can remember... 
Rick: If she can stand it, I can! Play it! 


A fragilidade que subjaz a casca supostamente impermeável reproduz-se numa série de gestos que devem ter surpreendido os homens, acostumados ao tipo usualmente desempenhado pelo ator, e posto as mulheres para suspirar. Esta que aqui escreve julga o diálogo entre Rick e Ilsa, na mesa compartilhada também pelo marido Victor Laszlo (Paul Heinreid) e pelo capitão francês Louis Renault (Claude Rains), uma das mais belas cenas da história do cinema. É Rick que lembra os detalhes do último encontro de ambos, no dia em que os Alemães sitiaram Paris: “[It] was La Belle Aurore. I remember every detail. The Germans wore gray, you wore blue.” Uma cena que patenteia a quebra do estereótipo de machão é sempre digna de nota, especialmente quando ela tem como interlocutor um personagem também superior de marido, que silenciosamente compreende a dor da esposa que o julgava morto e, portanto, na solidão da guerra, se envolvera com outro. 
A Guerra é a mola propulsora da história. “Casablanca” compõe, sem dúvida, parte do esforço norte-americano de propaganda antinazista e em prol dos aliados. Os EUA entraram objetivamente no conflito em dezembro de 1941, após a invasão de Pearl Harbour comandada pelos japoneses. O filme estreou um ano depois, durante a fase mais cruenta do conflito. Era o momento em que a França subjugada pela Alemanha era dobrada a gestos moralmente condenáveis, como a caça aos judeus franceses e a entrega dos mesmos à oficialidade alemã. O momento em que os campos de concentração transformaram-se em campos de extermínio – aliás, um documentário imperdível sobre a questão é “Noite e Neblina” (Nuit et Brouillard, 1955), de Alain Resnais. 
O filme encara com força essas questões, batendo de frente, de modo surpreendente, com a Casablanca prenhe de exotismo – e, portanto, muito pouco verossímil – que ele constrói no âmbito do cenário. Numa época em que teoricamente pouco se sabia sobre quão nocivos eram os campos de concentração ou sobre o envolvimento escuso da França com a Alemanha nazista, Victor Laszlo, tendo recentemente escapado de um campo e fugido para o Marrocos, afirma: “In a concentration camp, one is apt to lose a little weight.” Para também colocar em questionamento o papel desempenhado pela França no conflito: “The present French administration hasn’t always been so cordial.” Representante, no filme, da administração francesa, é o Capitain Louis Renault: charmoso, corrupto, a flertar com a oficialidade alemã durante o transcurso da película. Suas atitudes subscrevem a assertiva de Laszlo. Porém, o desfecho obrigará não só Renault, mas todos os demais personagens, a rever suas posições.
Obra produzida para o esforço de guerra, “Casablanca” tem um fecho inclinado ao idealismo. Idealismo adolescente, com direito a exaltações cívicas e a corações a falarem mais alto. Porém, ainda assim, comovente. Que cena é mais tocante que aquela na qual os europeus espoliados de Casablanca silenciam o hino alemão ao entoarem em uníssono a Marselhesa? A união de Rick e Laszlo, rivais no amor, porém, partidários da liberdade anunciada pelo hino; o grito final de “Vive la liberté”, enunciado pela ex-namorada de Rick, agora amante de um alemão, porém, acima de tudo partidária da França... A cena que botou lágrimas nos olhos dos roteiristas, como é dito nos extras da edição de 60 anos da película, provoca em mim reação análoga sempre que a vejo, mesmo transcorridos 70 anos de sua rodagem. Os céticos dirão que o cinema era aliado valioso na transformação do povo em massa de manobra do Estado. Eu prefiro pensar que os ideais conflagrados pelo filme são das mais belas ficções que aprendemos. A vitória da liberdade e o amor. “A fight for love and glory”, nos dizeres da eterna canção. “Casablanca” vive até hoje porque eles ainda não morreram. 
Tais ideias não são alardeadas num filme puramente de palanque, como Hollywood usava fazer naquele tempo. Ganham corpo por meio de uma cinematografia coesa, que procura responder aos anseios do público sem, para isso, precisar abdicar da qualidade estética. O diretor Michael Curtiz era um dos multifacetados da indústria do cinema, eficiente na direção de dramas, comédias, musicais, thrillers. Aqui, sua união com os roteiristas Julius e Philip G. Epstein e Howard Koch faz brotar uma história que une com precisão a comédia, o drama, a tragédia e a música. 
O cancioneiro americano é reverberado de modo acolhedor pelo piano de Sam, algumas vezes acompanhado de coreografia, à moda dos musicais, outras se atrelando intimamente à história narrada – “Love for sale” (Cole Porter), por exemplo, é tocada quando Renault se junta a Ilsa e Laszlo no Rick’s Café, ironizando a suposta volubilidade do coração  da mocinha. A comédia pontua o drama, nota dominante do filme, mas um riso de canto de boca perpassa mesmo os momentos mais dramáticos, já que o roteiro é absolutamente genial, repleto de movimento e  de frases inesquecíveis: “Round up the usual suspects.” (Renault), “Here’s looking at you, kid.”, “We’ll always have Paris.”, “I think this is the beginning of a beautiful friendship.” (Rick). A câmera desliza atrevida pelos eventos, a iluminar-lhes com uma precisão a toda prova. Só não penetra mesmo no coração da heroína, cujo dono a audiência apenas conhecerá ao fim da história, coroada por aquela cena final que todos já devem conhecer, ápice da abnegação e do romantismo. Porque a principal razão da perenidade de “Casablanca” está estampada nos versos de sua canção-tema: 

 The world will always welcome lovers 
As time goes by