Fui ver o lançamento cinematográfico sobre o qual corre, atualmente, um rio de tinta: Garota exemplar, título nacional (estranho) para o norte-americano Gone Girl, filme adaptado do bestseller homônimo de Gillian Flynn e dirigido pelo ótimo David Fincher. Não conhecia o livro – que, parece, levantou tanta celeuma quanto as sagas Potter e Crepúsculo e o romance açucarado A culpa é das estrelas. E, aproveitando que eu estava vivendo como que numa caverna nos últimos meses, decidi continuar na ignorância no que tocava à sua trama até que eu cruzasse pessoalmente com ela, numa sala de cinema.
O filme é interessante. Não é, porém, a nota 8,7 que lhe atribuíram no IMDB. Estou alheia ao burburinho impresso e televisivo desde que, para dar conta de minhas obrigações acadêmicas, decidi parar de ler/ver jornais, cinco meses atrás. Mas conheço bem demais a dinâmica de mercado, que alça a literatura popular aos píncaros do sucesso, impondo-lhe qualidades que ela está longe de ter, como se o topo nas listas dos "mais vendidos" lhe impregnasse - como consequência óbvia - de valor artístico.
Os fãs do livro não estão correndo ao cinema em vão. O que também não significa que o filme seja uma obra-prima, claro. Primeiro porque não é impossível de sacarmos a trama, uma vez que a gente conheça um pouco de cinema. A obra é dividida em duas partes:
1- Um Nick Dunne (Ben Affleck) frustrado encontra a irmã no bar de ambos, no quinto aniversário de casamento dele. Seu relacionamento vai pior que nunca – quem ganha o presente é a irmã, um daqueles jogos de tabuleiro dos anos 80, lembrança da infância de ambos (e do infantilismo de Nick, talvez, elemento que poderia – mas não é – trabalhado, para o bem da complexidade da narrativa). Voltando para casa, ele descobre o local remexido e a esposa desaparecida. Não parece se incomodar muito, até que a polícia imiscui-se no caso e ele se torna o principal suspeito de sua morte. 2- Acontece que Amy Dunne (Rosamund Pike) não está morta, tampouco foi suprimida à força de sua casa. Ao contrário, a moça forjou seu suposto assassinato até às últimas consequências, apenas para se vingar do marido que a havia humilhado, o qual ela queria ver acusado e morto (pelas leis do Missouri, onde ocorrera o suposto crime, o assassinato é punido com a cadeira elétrica).
A narrativa cinematográfica não vai mal. Mas, depois de vermos o desenho do entrecho, fica claro que há, aí, muito barulho por nada... Que as muitas explicações visando a um pretenso realismo dessa história mirabolante apenas torna mais aparente as suas fissuras e, então, a sua tolice fundante. O seu modelo espiritual – e eu bem possivelmente estou superinterpretando – é Um corpo que cai (Vertigo, 1958). O personagem principal é enredado até às últimas consequências na encenação que a sua contraparte forja. Outro filme recente fez o mesmo, de modo mais tolo, prolixo e tedioso ainda: O Melhor Lance (La Migliore Offerta, 2013, doutro grande diretor, Giuseppe Tornatore).
Garota exemplar é uma distração divertida, mas não passa disso. Ben Affleck é alto e bonito de se ver, mas não se pode negar que seu elemento seja mais a direção (ou o roteiro) que a atuação. O branco que ele imprime à sua encenação até que colabora, no início, para dar alguma ambiguidade ao seu personagem. Mas a densidade necessária a ele – sobretudo na terça parte da história, quando a esposa volta e ele deseja permanecer consigo, a despeito de tudo – nunca emerge. Já Rosamund Pike está bem melhor. O desafio do atual cinema-pipoca norte-americano – falo deste que tem pretensões ao Oscar e, portanto, se faz com um pouco mais de cuidado; do restante não vale a pena nos lembrarmos – é vencer os estereótipos: colocar os belos a interpretarem papéis execráveis, sem que para isso precise enfeá-los no exterior. A Doris Day-like Rosamund Pike faz extremamente bem a psicopata que esconde seu desvio atrás dos modos de boa-moça e da erudição.
O roteiro tem furos exasperantes, em sua sanha autoexplicativa. Sem que a atuação de Affleck seja um primor, percebemos logo que a errada da história é Amy: Aquele marido probo é agressivo, vingativo, gastão? Não seria isso fantasia da esposa, que é, saliente-se, uma notória escritora de aventuras adolescentes? O diário em que a jovem desfiava os seus sofrimentos não seria uma obra de ficção, como tudo o que ela escrevera? Insiste-se demasiadamente num mistério que é mais ou menos uma obviedade.
Já a terça parte do filme, que poderia se apropriar com alguma complexidade desses elementos, é vazia: Oras, afinal, naquele relacionamento o rapaz e a moça estavam sempre a interpretar! Eram dois personagens, como todos os criados por Amy até então! Partícipes na loucura, a montarem fábulas para tocarem a vida a dois! Toda a metafísica que poderia resultar disso se reduz, no filme, a nada.
Aí está a mais patente diferença entre Garota Exemplar (ou O Melhor Lance) e Um corpo que cai: reduzem-se um e outro, à metafísica da pipoca – facilmente digestiva e que, independente do quanto a comemos, ainda assim nos deixa esfomeados, tão logo saímos da sessão.