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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Rusalka no Rio de Janeiro: suavidade e sanha num espetáculo excepcional


Em 1901, Antonín Dvořák dá à luz um lúgubre conto de fadas, Rusalka. O libreto, de autoria de Jaroslav Kvapil, dialoga sobretudo com The Little Mermaid, de Hans Christian Andersen, e Undine, de Friedrich de la Motte Fouqué, escritos nas primeiras décadas de 1800. A história do enlace impossível entre uma criatura aquática e um homem poreja um ceticismo tributário desse início do século XIX. Se tais entes, oriundos das mitologias germânica e escandinava, seguiram vívidos na cultura ocidental (aproveitados por homens como, por exemplo, Richard Wagner e Maurice Maeterlinck), o desenvolvimento técnico galopante que ocorreria até fins do século XIX desmantelaria qualquer idealismo; o desejo de união dos opostos permaneceria irrealizável. 
Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia. 
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático. 
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste. 
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua. 
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama. 
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular. 
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina. 
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha. 
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba. 
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas. 
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos. 
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos. 
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Um hino à liberdade: "Nabucco" (Giuseppe Verdi) em BH


Entre os dias 17 e 23 de outubro, o Palácio das Artes de Belo Horizonte reencenou, depois de 13 anos, a montagem de Nabucco (1842) idealizada por André Heller-Lopes, com cenografia de Renato Theobaldo. A obra de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, é conhecida sobretudo por “Va, pensiero, sull’ali dorate”, quiçá o número coralista mais afamado de todos os tempos, repetido em todas as galas do gênero. 
Baseada no (melo)drama em quatro atos Nebuchodonoser (1836), de Auguste Anicet-Bourgeois e Francis Cornu, a obra operística faz emergir as características mais indeléveis deste gênero teatral: o traçado plano das personagens, que exibem à flor da pele as suas qualidades e os seus defeitos, e a dicotomização da trama, que se transforma numa luta do bem contra o mal, dos judeus contra os assírios –, mais especificamente, dos cristãos contra os não-cristãos. 
O gênero melodramático restitui à população francesa, no interior da cena teatral, o âmbito da religião, contestada durante a Revolução (quando muitos templos foram postos abaixo). A visada é conservadora, aproximando-se as personagens boas do ideário do cristianismo e vice-versa. Vertida para o gênero operístico, Nabucco, além de servir a já religiosa sociedade italiana, ganha um aspecto simbólico: 
Produzida durante o processo de unificação italiana, quando ainda inexistia o país que conhecemos hoje, e a Itália, em sentido lato, enfrentava o domínio austríaco, a obra torna-se um libelo à liberdade, entoado de forma contumaz no referido coro, no qual os hebreus escravizados dão asas aos pensamentos, já que seus corpos jazem submetidos ao jugo assírio: “Vá, pensamento, sobre as asas douradas/Vá, e pousa sobre as encostas e as colinas/Onde os ares são tépidos e macios/Com a doce fragrância do solo Natal!”. 
Embora construídas em contextos históricos específicos, as obras de arte se abrem a leituras múltiplas à medida que atravessam tempos e espaços. O gênero teatral, afetado pelas reflexões do pós-moderno e do pós-dramático, e o operístico, pelo Regietheater, quando tomam a peito a encenação de uma obra clássica, não raro intervêm nela até tornarem-na irreconhecível; pretendendo, assim, eliminar a carga de preconceito que nela veem – leitura anacrônica, que rejeita o fato de essas obras terem sido produzidas num tempo específico, e, portanto, trazerem impregnadas marcas desse tempo. A montagem de Nabucco capitaneada por André Heller-Lopes caminha a contrapelo disso, e é isso, suponho, que a torna tão bem-sucedida. 
Ao invés de bater de frente com a dicotomia colocada pelo libreto, desconstruindo-a e, portanto, desmontando a estrutura que põe a ópera em pé, o sempre competente Heller-Lopes, em consonância com o magistral Theobaldo, os belos figurinos de Marcelo Marques e a eficiente luz de Fábio Retti, resolve situá-la historicamente. Além de dar fluência ao âmbito musical, isso favorece a legibilidade do enredo intrincado por parte do público. 
Jerusalém, e depois a Assíria, são construídos por grandes e maleáveis molduras verticais revestidas por canudos de papelão que, amoldados, dão a ver, à medida que são manipulados, as silhuetas das divindades. Os fiéis cristãos e o exército de Nabuco, que em breve invadirá o templo, são claramente discerníveis. Os primeiros trazem kipás à cabeça e talits nos ombros – ambos os acessórios representam o respeito a Deus, e o segundo é usado como cobertura durante as preces. 
A representação da fé exacerba o desrespeito de Nabuco, que invade o templo montado num cavalo dourado – signo, de resto, da sua megalomania, como o bezerro dourado que será destruído quando o rei da Assíria põe fim à sua sanha, no desfecho da história. Temos aqui um manejo inteligente dos signos, que além de conseguirem avançar a história, dialogando com o repertório cultural, ainda chancelam a inteligência do público, permitindo que ele construa a sua interpretação sobre o que vê. 
Isso não significa ausência de liberdade interpretativa. A encenação impregna as personagens – sobretudo as femininas – de densidade psicológica. Por exemplo, no momento em que Nabuco é tocado pela loucura, punição divina pela sua arrogância, atravessam os olhos de Fenena (Denise de Freitas), a sua filha legítima e a “mocinha” da história, um brilho ganancioso semelhante àquele que tem a sua irmã ilegítima Abigaille (Eiko Senda), a “vilã”. A sede de poder toca a todos. Também Abigaille ganha curva dramática, da ira, quando descobre que seu amado Ismaele ama a sua irmã, à tristeza, quando narra seus sonhos de felicidade ao lado dele, ao seu aparecimento derradeiro, moribunda diante do bezerro de ouro destruído. 
E mesmo Nabuco (Rodrigo Esteves), que migra do desejo cego de conquista – o tronco ereto com que invade o templo judaico – até o total despojamento de si, e, enfim, à tomada de consciência de sua sanha. Esse jogo de cena resulta de um trabalho de excelência do diretor cênico e da inteligência do elenco. Heller-Lopes conseguiu rendimento dramático também do Coral Lírico de Minas Gerais, que se mostrou circunspecto, belicoso e melancólico nos momentos certos. Enfim, estivemos, em BH, diante de teatro de verdade, que abordou com profundidade as relações humanas. 
Dirigido por Hernán Sánchez Arteaga, o coro realizou um belo trabalho. Timbrou admiravelmente no famigerado “Va, pensiero, sull’ali dorate”, cena, ademais, inesquecível, em que o grupo, sob o cárcere assírio, mimetizou fisicamente o movimento de seu pensamento, escalando as grades que o prendiam em terreno inimigo. Porém, igualmente amalgamou-se bem aos solistas, num número como o “Viva Nabucco!”, no final do primeiro ato, extremamente bem realizado também devido à regência segura de Ligia Amadio, a quem coube a direção musical da produção. 
Os papéis protagonistas couberam a alguns dos mais respeitados artistas do cenário lírico brasileiro. 
A soprano Fabíola Protzer, no pequeno papel de Anna, irmã do sumo sacerdote judaico Zaccaria, exibiu um belo timbre e também correspondeu, no aspecto cênico, às exigências do diretor. O papel do sacerdote coube a Sávio Sperandio, que já havia realizado, no mês anterior, um ótimo trabalho na produção paulistana da obra. Com seu timbre potente e sua dramaticidade sempre colocada a serviço da cena, Sávio passou com agudeza pelo seu número de entrada, em que ele apresenta Fenena como escrava aos seus asseclas, e tinge de ira a oração “Tu sul labbro”, quando, no 2. ato da ópera, já se encontra sob domínio de Nabuco. 
O tenor Giovanni Tristacci criou um Ismaele suave e passional. Seu timbre brilhante fez-se ouvir no trio “Fenena! O mia diletta!”, no qual ele, ademais, se mostrou um responsivo parceiro cênico para sobretudo Denise de Freitas, de quem foi o par romântico, mas também para Eiko Senda, cuja personagem nutria por ele um amor pouco abnegado. 
Na parte de Fenena, a mezzosoprano Denise de Freitas fez emergir as superlativas qualidades de atriz e de cantora que são uma constante em seus trabalhos. Do ponto de vista teatral, foi uma Fenena extremamente convincente e humana, somando entrega abnegada (ao amor, aos seus oponentes) e assertividade. Com sua conhecida potência vocal, destacou-se nos ensembles – a exemplo do Finale do 2. ato, e demonstrou domínio vocal e profundidade dramática ao entoar, num misto de tristeza e esvaecimento, a ária “Oh, dischiuso è il firmamento”. 
Coube a Eiko Senda o papel de Abigaile, e ela deu corpo com competência à ambiciosa assíria que paulatinamente vê o seu mundo ruir. A leitura do documento em que descobre que é filha não do rei, mas de escravizados (“Anch’io dischiuso un giorno”), a sua disputa com Nabuco, no 3. ato (“Donna, chi sei?”) e, enfim, a sua conversão, no recitativo final, foram cantadas de forma passional. 
O papel-título coube ao barítono Rodrigo Esteves, que o desempenhou com maestria. Ótimo ator, imprimiu com destreza a heráldica da personagem do rei, na primeira parte do espetáculo, e construiu com delicadeza a sua insânia, na segunda parte. Seu timbre potente, mas também quente e aveludado, resultaram numa performance notável. 
A coesão do conjunto, acompanhado pela ótima Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, resultou num espetáculo emocionante. Este resultado denota algo que deve ser diretriz numa montagem operística: a escolha de vozes apropriadas para os papéis e o respeito do encenador pela obra que tem em mãos, e pela carga cultural que, para o bem ou para o mal, ela carrega.

As imagens foram retiradas das redes sociais dos participantes da encenação.

terça-feira, 28 de maio de 2024

“Ainadamar”: poesia transcendental


Crítica publicada em Notas Musicais a 20 set. de 2023. 

Ainadamar (2003) 
Música: Osvaldo Golijov 
Libreto: David Henry Hwang 
Ópera em 3 atos. 
Theatro Municipal de São Paulo, 15 de setembro de 2023 
Direção musical: Alessandro Sangiorgi 
Direção cênica: Ronaldo Zero 
Cenografia: Nicolás Boni 
Figurino: Olintho Malaquias 
Iluminação: Wagner Antônio 
Visagismo: Tiça Camargo 
Coreografia: Fábio Rodriguez 
Margarita Xirgu: Marisú Pavón, soprano 
Nuria: Lina Mendes, soprano 
Lorca: Denise de Freitas, mezzosoprano 
Ruiz Alonso: Flavio Rodrigues, cantor de flamenco 
Niña 1: Raquel Paulin, soprano 
Niña 2: Monique Rodrigues, soprano 
José Tripaldi: Daniel Lee, barítono 
Toureiro: Miguel Geraldi, tenor 
Professor: Rubens Medina, tenor 
Mariana Pineda: Miranda Alfonso, bailarina 
Niño: Gabriel Avellar, ator 
Orquestra Sinfônica Municipal 
Coro Lírico Municipal 
Corpo de Baile 

Em 19 de agosto de 1936, albores da Guerra Civil Espanhola, Federico García Lorca é morto pela Falange franquista. Os motivos restam questionáveis: o fato de Lorca ser poeta de extrema popularidade e invulgar influência; a sua homossexualidade. O regime de Francisco Franco emerge quando a monarquia espanhola é substituída por um regime republicano de tendência socialista. O esforço progressista é rapidamente minado com o início da Guerra Civil Espanhola, que cobre o país com “uma torrente de sangue quente” – como profere Margarita Xirgu, a atriz-mártir de Ainadamar, ópera do argentino Osvaldo Golijov com libreto do norte-americano David Henry Hwang que o Theatro Municipal de São Paulo reencena de 16 a 23 de setembro de 2023, depois de estreá-la no Brasil na temporada de 2015. 
Chamá-la de obra-prima de ópera talvez seja falsear a realidade, uma vez que esta obra enlaça o gênero operístico ao teatro e, por receber amplificação mecânica do som, a espetáculos como o musical (sobretudo a vertente contemporânea, de ressaltado potencial crítico) e, como bem aponta o seu programa de sala, ao cabaré. E neste entrelugar ela consegue se realizar magistralmente. 
Ainadamar divide-se não em três atos, mas em três “imagens”. Imagens profundamente sentimentais, captadas pela objetiva da fantasia de Margarita Xirgu, musa de Lorca, instantes antes da morte da atriz. A obra resolve colocar em debate o lugar do próprio teatro, esse limite tênue que ele estabelece entre a ficção e a realidade – a ficção da cena (mesmo com laivos de realidade) e a realidade da plateia que assiste. Assim, Lorca, que perece na segunda imagem, surge redivivo na terceira, convidando Margarita Xirgu a atravessar com ele o limiar do reino dos mortos. Ao caminharem rumo ao fundo do palco, para fora da cena, ambos provocam o público a imaginar como seria este mundo, transformando os espectadores em personagens ativos da história. 
Os belos figurinos de Olintho Malaquias, em parte oriundos da primeira encenação paulistana da obra, remetem de forma realista aos momentos históricos nos quais a ação se passa. A imaginação, todavia, preside o espetáculo, que dá de ombros ao realismo. Ao fundo do palco nu, um tablado retangular horizontal oferece-se como um novo palco, espaço onde aparece Federico Lorca sempre que as retinas de Margarita Xirgu o convocam. Sobre este palco vertical, ilumina-os a enorme lua dos românticos. No centro dele, ora surge uma pequena mesa redonda de bar, e apoiado nela o poeta convida a atriz para desempenhar o papel-título na peça Mariana Pineda, que ele acabara de escrever; ora surge Luiz Alonso, representado por um cantor flamenco que, à guisa de coro trágico, clamará ao povo “Ai meu Deus! Entreguem-no! Acabem com isso!”; ora, enfim, monta-se a prisão que acolherá o poeta em seus instantes finais, onde ele, em vias de ser alvejado pela Falange, clama a Deus para que o perdoe. De cada lado do palco do Theatro Municipal, as fileiras portas rubras por onde entram os personagens são permeadas com imagens de manuscritos de Lorca. 
 A obra tem um ressaltado contorno político. Lorca intitula Margarita de “rainha proletária do teatro espanhol”. Ainadamar principia a colocar os dois em relação quando o poeta convida a atriz a representar Mariana Pineda, uma personagem de contornos reais, já que é baseada na personagem histórica de Mariana de Pineda Muñoz, jovem liberal morta em 1831 por se contrapor ao regime absolutista de Fernando VII. A divisa de Mariana torna-se também a de Margarita: “Liberdade, Igualdade, Lei”. A bandeira vermelha, amarela e roxa da Segunda República espanhola, que ocupa do teto ao chão do Theatro Municipal, ao fundo do palco, duplica-se naquela na qual Margarita Xirgu envolve-se e, depois, envolverá a jovem Nuria, sua aprendiz nos campos da Arte e da Política, deixando para ela o seu legado. 

A bandeira da Segunda República Espanhola 

A obra acena para pontos de inflexão da história. Quando Lorca dá o papel de Mariana a Margarita, em meados da década de 1920, Hitler já caminhava em passos largos rumo à transformação do nazismo na máquina de destruição em massa que se tornaria no início dos anos de 1940. Lorca perece em meados de 1930 devido ao fascismo franquista, simpatizante do nazismo. Mariana perece em 1969, poucos anos antes de a ditadura assumir o poder no Uruguai, para onde ela se mudara para fugir da repressão espanhola. Se não houvesse se entregado ao seu amado Lorca e à morte benfazeja, Margarita veria novamente, como vê em Ainadamar, que a República sonhada por ela era um sonho. Pouco depois de Golijov e Hwang realizarem esse sobrevoo na história da Europa e da América Latina (a obra é de 2003), a extrema-direita se alçaria ao poder no velho e no novo mundos, com os seus discursos de vieses fascistas, contrários às minorias sociais, à arte, à cultura, à vida. A luta pela defesa dos ideais que sustentam Mariana, Lorca e Margarita deve ser constante, tanto que, em Ainadamar, Nuria tem como missão passar os ensinamentos de Mariana ao coro de jovens que a circunda, e assim sucessivamente. 
Não obstante, o Lorca de Ainadamar dirá à passional militante Margarita Xirgu: “esta obra não é política”. O Lorca lembrado por Margarita é, a um só tempo, menino e homem: menino (o gracioso e talentoso Gabriel Avellar) que corre pelo palco do Theatro Municipal; homem que rememora apaixonadamente os encontros que tivera na infância com a estátua de Mariana Pineda, cujos lábios de pedra tornavam-se rubros e lhe davam beijos doces que o adormeciam todas as noites. 

Miranda Alfonso
Tanto o aspecto político quanto o lirismo presentes na obra emergem com força na encenação de Ronaldo Zero e nos cenários de Nicolás Boni. Mariana Pineda, personagem sem voz na ópera, é personificada no palco por uma dançarina de flamenco (a ótima Miranda Alfonso), que atravessa a ação com uma fúria apenas aplacada no momento em que ela abraça Lorca, já nos estertores da obra, pouco antes de os destinos de ambos se unirem. É uma escolha cênica acertada, pois faz emergir a força daquela mulher que fascinara o poeta ao longo de sua vida, e que, por conseguinte, fascina Margarita Xirgu. 
Embora o espaço do palco nu seja caro a esta encenação – já que o palco teatral é o ponto de partida de todas as histórias –, ele é atravessado por um conjunto de imagens de grande força visual criadas por jogos de luzes. Ainadamar, “a fonte das lágrimas”, assim denominada por ter sido o patíbulo de Lorca (transformado pela obra em uma espécie de Jesus Cristo, pois percorreu a sua via-crúcis em meio a dois homens, um professor e um toureiro), é uma projeção de flashes de luzes num fundo azul celeste, no qual se banha o coro das jovens. E Lorca será, ao fim da segunda imagem da obra, atravessado por balas feitas de luzes vindas do fundo do palco, que ultrapassam a cena e chegam à plateia, colocando em contato os espaços da ficção e da realidade. 

Ainadamar, a fonte das lágrimas 

O som da saraivada de balas é reproduzido eletronicamente, à maneira dos sons incidentais utilizados no teatro. Assim também o são os sons da água da fonte e dos cascos de cavalos que são emblemas da Falange. A obra tem um ressaltado tom de teatro político, recuperando os contornos do encontro entre Lorca e Mariana. Também é inserido eletronicamente um trecho de um hediondo discurso histórico proferido por oficiais falangistas em 1936 (informação que retirei do bom programa desta montagem): “Exterminaremos as sementes da revolução até dos úteros das mães…”. A sua música é tecida a partir de uma sonoridade que remete do flamenco à música judaica (o ótimo texto de Camila Fresca presente no programa do espetáculo recupera essas influências de forma detalhada). Essa heterogeneidade, que distancia a obra dos demais espetáculos do gênero operístico encenados na cidade, foi abordada com firmeza por Alessandro Sangiorgi, a quem coube a direção musical e a regência. A Orquestra Sinfônica Municipal respondeu-o com brio, realizando um trabalho de bastante consistência. 
A polifonia é entremeada pelos versos alusivos à morte de Mariana Pineda pelo regime de Fernando VII, escritos por Federico Lorca, que o coro de jovens canta ao longo do espetáculo, à maneira de estribilho, de forma cada vez mais lúgubre. Tal polifonia algo distante do gênero operístico e o uso de amplificação acústica fazem com que a parcela mais conservadora do público devoto do gênero torça o nariz para Ainadamar. Não sei se este texto será publicado a tempo de convencê-lo a não o fazer, e tampouco tenho pretensões a este respeito, mas é necessário que se ressalte a grande qualidade deste espetáculo interpretado (sobretudo) por mulheres bravas, que dominam os papéis que representam do ponto de vista vocal e cênico, prova enorme de respeito pelos âmbitos da música, do teatro e, porque não dizer, dos ideais que esta obra encampa, já que falamos de um elenco quase que totalmente feminino a decantar a liberdade e a igualdade em um mundo em que as mulheres ainda são preteridas em detrimento dos homens. 
Embora o papel de Lorca tenha sido escrito originalmente para uma mezzosoprano, ocasionalmente ele é desempenhado por contratenores. Apesar de o Theatro Municipal ter feito esta opção na encenação de 2015 (quando o cantou Luigi Schifano), desta vez respeitou-se a distribuição pensada originalmente para a obra. O papel de Lorca coube à excelente e experiente mezzo Denise de Freitas, quiçá a cantora lírica em atividade no Brasil que mais cantou en travesti. Já Margarita Xirgu foi interpretada pela soprano que lhe deu vida na primeira montagem da obra na cidade, que tem grande experiência neste papel e o canta com uma excelência análoga, Marisú Pavón. 
Entre o poeta e a sua musa está Nuria, a jovem que provoca as lembranças da atriz-professora, desempenhada, nesta montagem, pela soprano Lina Mendes. Atriz consolidada no teatro musical e de carreira ascendente no lírico, Lina desempenha uma Nuria cuja suavidade ao tratar com Margarita desdobra-se em firmeza no desfecho da obra, quando ela assume o legado da mestra. 

Lina Mendes, Marisú Pavón e Denise de Freitas 

Ao cabo da ópera, quando Lorca está prestes a levar Margarita consigo, o acerto da escolha de um trio feminino é ressaltado pelo grande lirismo e pela beleza com que as três timbram ao cantarem em uníssono. O desejo de liberdade preside a cena. Uma liberdade “ferida e sangrando esperança”, conforme diz Margarita nos estertores da obra, a ressaltar que a vitória apenas emerge da dor e da luta, e que a sua semente pode demorar gerações até germinar e dar frutos. 
Uma esperança que sangra. Se a encenação opta por poucos elementos cênicos, o libreto de Ainadamar (dos mais belos que a ópera contemporânea já pariu) tem uma imagética potente. É vermelho de sangue e de amor: dos lábios de Mariana, por quem se apaixonou o menino Lorca; do sangue que ele vê “correr pelas ruas”, em meio ao qual canta “coroado de espinhos”, à maneira de um Jesus Cristo tropical, no qual a religiosidade mistura-se à lascívia. 
Esta poesia que dá peso às ambiguidades, cuja força equipara-se à poética de Lorca, é compreendida de forma profunda pelas cantoras às quais cabem os papéis principais da ópera, Marisú Pavón e Denise de Freitas. 

Lina Mendes e Marisú Pavón
Pavón encorpa de forma dilacerante o papel da atriz cujas paixões pelo ofício, por Lorca e pelos ideais que ele encampa se misturam. A personagem de Margarita envereda por um carrossel de emoções, alternando abruptamente do drama mais lancinante ao humor agridoce. Para atravessá-lo, a obra demanda uma amplitude vocal que Marisú sustenta de forma segura. Sua qualidade vocal soma-se à dramática: cada verso que ela canta tem uma intenção bem pontuada. Vinda de narrar a Núria flashes dos horrores da Guerra Civil Espanhola, ela rememora, ao ser instada pela aluna, o primeiro encontro que tivera com Lorca. O clima se alterna bruscamente, e a Margarita dilacerada dá lugar à mulher ligeiramente embriagada e coquete que se entrega à sua arte, ao seu poeta – aliás, é preciso que se destaque aqui a química entre as intérpretes de ambos os papéis, cujas trocas são eletrizantes mesmo quando as duas estão em cantos opostos do palco. 
Denise de Freitas
Já Denise de Freitas cria um Lorca em que se misturam os arroubos líricos e a ironia cáustica. Depois de atravessar a cena como uma aragem fresca em meio ao mar de tristezas que Margarita evoca, e de dançar com ela enquanto evoca o sonho impossível de “abrir seu crânio ao sol” em meio aos anjos nus de Cuba (imagem potente, que alude à libertação violenta das amarras sociais e sexuais), Lorca diz peremptoriamente a Margarita: “Não vou”, “canto o canto dos que se calam, dos que morrem, fico aqui”. Denise de Freitas está entregue à personagem tanto do ponto de vista dramático quanto vocal. Se vocalmente realiza um trabalho impressionante, em que a sua conhecida potência serve um timbre grave como eu jamais tinha visto/ouvido anteriormente, cenicamente encarna Lorca com fúria e doçura, de passos firmes e olhos marejados. Artistas ocasionalmente têm a ventura e o carma de serem, como cavalos, médiuns cujas mentes são possuídas pelos espíritos dos mortos, tornando-se um canal entre aqueles que já partiram e este plano. Lorca revive em Denise. 
O elenco do espetáculo completa-se com um time sólido de comprimários. A Daniel Lee, que tem um admirável timbre de barítono, cabe o papel do padre que toma a última confissão de Lorca. Os companheiros de patíbulo do poeta são interpretados pelos tenores Miguel Geraldi e Rubens Medina. As duas “Niñas”, que encabeçam o coro das jovens aprendizes de Margarita, são interpretadas pelas sopranos Raquel Paulin e Monique Rodrigues, e ambas desempenham as suas partes com justeza vocal e entrega dramática, a exemplo das vozes femininas do Coro Lírico Municipal. 
Esta obra ao mesmo tempo dolorosa e bela é uma ode ao oficio do ator e ao espaço do teatro; espaço no qual se realiza esta arte que amamos, a ópera – mesmo este exemplar enviesado de ópera moderna, que, ao reescrever o gênero, inscreve-o nos corações de novos públicos. 
Ao ser representada sobretudo por mulheres admiráveis, Ainadamar recupera o histórico papel político do teatro, e ao entrelaçar o público à encenação, convida-o à ação. No fim do dilacerante Noite e Neblina, de Alain Resnais (1955), o narrador ressalta que é preciso rememorarem-se os horrores do holocausto para que algo do tipo nunca mais ocorra. “Quem de nós vigiará para advertir sobre a chegada de novos algozes?”, o documentário questiona. Ao sondar a historicidade de regimes de teor fascista, Ainadamar nos provoca, por meio de sua poesia transcendental, a agir, no plano da reflexão e da ação, contra a emergência deste mal que ainda nos ameaça – daí o acerto do Theatro Municipal de São Paulo de reencená-la. 

Fotos: Rafael Salvador/TMSP.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

A ópera ilumina o teatro: “Adriana Lecouvreur” (1902) no São Pedro (SP, abr. 2016)

O Theatro São Pedro encenou, durante o mês de abril, esta ópera de Francesco Cilea, raríssima na cena paulistana, cuja première mundial deu-se em Milão em 1902. O acaso feliz levou-me até ela no justo dia em que o país fervia numa encenação de teatro do absurdo digna de Ionesco. Antes, muito antes os derradeiros passos da vacilante Adriana pelos sendeiros da vida que a má pantomima que nos fizeram representar longamente os nossos digníssimos parlamentares... 
Na plateia do São Pedro, meu tête-à-tête com “Adriana Lecouvreur” proporcionou-me um daqueles encontros raros comigo mesma. Em minha doce ilusão de eterna estudante, sonho encontrar o elo perdido que une as artes. Francesco Cilea e o libretista Arturo Colautti apontaram-me o caminho, ao tecerem o manto bordado com que Adriana sonharia nos palcos da arte e da vida. 
Poster da produção original 
Esta ópera baseia-se, como tantas, numa obra teatral, a peça de Scribe e Legouvé “Adrienne Lecouvreur”, de 1849. Trata-se de um melodrama típico, repleto das intrigas, corações partidos, peripécias, sangue e lágrimas comuns ao gênero. Não por acaso, entrou para o repertório de Sarah Bernhardt, tornando-se um prato cheio para os malabarismos de sua voix d’or, não sem deixar de agradar uma personalidade artística notável do fim do XIX como Eleonora Duse, que revolucionou a cena de então ao despi-la dos seus tradicionais ouropéis para imprimir uma inusual naturalidade às suas personagens. 
A Adrienne histórica era feita da mesma cepa que Duse e Sarah, como elas, a principal atriz de seu tempo: foi a grande diva da Comédie Française no princípio do século XVIII, outra revolucionadora da cena, da qual procurou eliminar a declamação em prol de uma elocução menos alambicada. 
Sarah Bernhardt em
Adrianne Lecouvreur (1896)
A adaptação da cena teatral para a operística era, então, moeda corrente. Duas óperas célebres no repertório ocidental saíram de originais da lavra de Scribe: L’elisir d’amore, de Donizetti e La sonnambula, de Bellini, adaptação de uma peça teatral e de um balé-pantomima, respectivamente. O próprio Scribe fora libretista, autor de Robert le diable, ópera com música de Meyerbeer. Quanto mais remontamos no tempo, mais percebemos o constante entremear das artes, que joga por terra a segmentação clássica, segundo a qual a ópera e a tragédia eram os exemplos maiores de manifestações artísticas, cabendo a gêneros como o melodrama, a opereta ou a pantomima o rês-do-chão da arte. Prova incontestável disso é “Adriana Lecouvreur”, que além de tomar como fonte uma obra teatral, presta uma bela homenagem à ribalta. 
“Adriana...” é contemporânea da “Tosca” de Puccini, ópera de 1900 baseada no melodrama escrito anos antes por Sardou. Ambas inscrevem-se no esforço de deslindamento de novos percursos para o gênero que acabara de perder dois de seus grandes mestres, Wagner e Verdi. 
No final do XIX, Puccini e Leoncavallo reverberavam renovações estilísticas e sociais, trazendo para o cerne da cena operística tipos até então desdenhados, como a boemia francesa, as classes populares italianas e a classe teatral. O povão demoraria até os Românticos para ganhar foros de heroicidade. Já os profissionais da cena, malgrado a grande relevância que tinham numa sociedade para a qual o teatro era um dos principais divertimentos, traziam sobre os ombros séculos de estigmas sociais –basta dizer que Sarah Bernhardt, uma das maiores de então, era observada de perto pela polícia responsável pelo controle da prostituição (como nos comprovam os registros policiais que integram a recente exposição Splendeurs et misères des courtisanes, do francês Musée d'Orsay).  
Como Tosca, Adriana ganha altas doses de humanidade. Já falei de Tosca ao vê-la pelo espelho de Greta Garbo (em The Mysterious Lady, de 1928). Assim como a obra de Puccini, a de Cilea coloca em cena a autorreferência em busca do realismo, moeda corrente na arte do período. A obrigatoriedade dos cantores líricos ao antirrealismo, a se chegarem ao proscênio e cantarem, ganha em verossimilhança quando os enredos os colocam a representar efetivamente os papéis de outros. Se “Tosca” atinge isto no primeiro ato, deslizando-se posteriormente para o comentário político, “Adriana Lecouvreur” é atravessada por tal intuito. 
O jogo cênico principia a colocar o público diante do camarim da grande diva, que se prepara para adentrar a cena. Ali, à reprodução de trechos do papel se segue a visita do amado Maurizio, o suposto soldado (na verdade, um nobre galanteador, sucessor direto ao trono francês) a quem a atriz entregara seu coração. Dali por diante, vida e arte se misturam e se iluminam: 
Adriana é a plebeia com porte de rainha. Naquela sociedade estamental de princípios de 1700, ela ouvirá do amigo Michonnet que a única nobreza que lhe cabe é aquela emprestada pela cena do teatro: “Deixe os grandes homens com seus grandes problemas.” A rainha de mentira jamais poderia ascender à realeza. No entanto, a história da jovem atriz é lida pelo espelho do século XX, crescentemente libertário, no qual uma “mera atriz, obra da Musa” valia tanto ou mais que uma nobre. O teatro era o palco da nova aristocracia, daí a Michonnet pedir que Adriana não abandonasse sua carreira, a única verdade num mundo que ruía. Mas aí já era tarde. 
Ao se ver traída por Maurizio, amante da Princesa de Bouillon, Adriana denuncia-os publicamente por meio do monólogo da Ariadne Abandonada – Scribe e Legouvé chegam aqui às alturas de Shakespeare. O resultado é trágico: Adriana é envenenada pela rival, esvaindo-se vagarosa como Violetta Valery fizera cinquenta anos antes, nos braços do homem que ela mais tarde descobrirá que verdadeiramente a ama. 
O saldo da ópera – cabalmente reproduzido pela montagem paulistana – é o convencional alçado às alturas do sublime. O dramalhão que é característica fundamental do enredo de “Adriana Lecouvreur” fica em segundo plano, diante da sinceridade que pauta a construção da heroína, homenagem às grandes divas do teatro ocidental, vistas por tanto tempo com reservas. A música de Cilea, repleta de belíssimas melodias, definitivamente contribui para a elevação do enredo comezinho a alturas desusadas. Uma ária como Io son l’umile ancella não deve nada à celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore, da “Tosca”, duas delicadas profissões de fé: 

Eu sou a serva humilde/ do gênio criativo./ Ele me dá voz,/ Eu a envio ao coração.../ Sou a voz da poesia,/ o eco do drama humano,/ o instrumento frágil,/ escrava nas mãos do criador.../ Suave, alegre, terrifiante/ meu nome é Fidelidade/ Minha voz é um suspiro/ que morre com o amanhecer... 

Ao alinharem ópera e teatro, homens como Cilea e Puccini prenunciaram a profunda influência que a cena lírica teria da teatral. Se tenho uma admiração quase que religiosa pelos grandes atores – que são meu ideal inatingível, já que, além de tímida, não tenho talento algum para os palcos –, dobro-me de joelhos diante de um bom cantor lírico: o poder de deslizar entre a contenção dramática do teatro e o arroubo sentimental da ópera é algo que para mim tem foros de magia. O Teatro São Pedro apresentou, no domingo, um bom exemplo disso, dispondo em cena um elenco (dirigido por André Heller-Lopes) disposto a viver com fúria as peripécias – de um gosto por vezes duvidoso – inventadas duzentos anos atrás. 
A sinceridade artística supera o que há de perecível nos enredos. Minha objetiva mental terá para sempre registrado o ódio tragicômico que Denise de Freitas imprimiu à sua Princesa de Bouillon, a delicadeza do Michonett de Johnny França, a suavidade com que Eric Herrero conduziu seu Maurizio, nos derradeiros momentos da vida de Adriana, e a heráldica e, não obstante, a doçura que Daniella Carvalho emprestou à protagonista, das glórias da ribalta até a crua realidade da morte. Temos entre nós grandes vozes, que ainda agora enchem meu coração, erguendo-me a dez metros do chão, para além das tristuras da vida.
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Salvo indicação ao contrário, todas as fotografias da montagem paulistana - levantada em coprodução com o Festival de Ópera de Manaus - eu retirei da página de Facebook de Heller-Lopes (sem pedir licença, do que me desculpo...). Elas dão a ver as belezas do figurino (de Fábio Namatame) e da cenografia (de Renato Theobaldo).