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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Paris poética de Amélie Poulain

No começo do mês passado, esse bicho do mato que vos fala aportou em Paris, destino final de sua primeira viagem ao estrangeiro. A experiência só ganha menção aqui por culpa dos amigos Chico Lopes e Antonio Júnior; o primeiro porque pediu rememoração detalhada de minhas andanças pela Cidade-Luz, o segundo porque me cobrou várias vezes retorno ao blog – coisa que apenas não fiz até agora porque este está sendo um mês de exceção. Aqui, o post só pode ganhar tom cinematográfico – o que não será difícil, considerando-se que, até no mês passado, eu apenas viajara à cidade na esteira dos filmes que a tomaram como cenário. Dentre tantos, o escolhido é a obra-prima francesa “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (Amélie, 2001), fita que, desde seu lançamento, certamente decidiu muitos pacotes turísticos que inseriram Paris como destino.
“Amélie” é especial porque encontra uma estética original para pintar o fascínio que a cidade emana. A Paris turística de tantos filmes, usada e abusada por cineastas até hoje, é nele deixada de lado em prol de uma Paris bairrista, pitoresca, quase suburbana e, portanto, muito mais poética que as obras cinematográficas cartões-postais. Sim, porque minha primeira descoberta ao chegar à cidade é que seu pitoresco – tão bem apanhado em “Amélie” – jaz escondido por debaixo da balbúrdia de turistas de todos os cantos que se trombam em qualquer dia e hora, imprimindo ao lugar um sabor aborrecidamente conhecido de shopping center; e ao vozerio cosmopolita que a faz ecoar qualquer coisa exceto “La vie en rose”. A empolgante Paris fotografada e cantada nas primeiras décadas do século XX pode ainda ser vislumbrada em Saint Germain, único bairro ainda não engolido pela avalanche turística; mas com algum esforço pode-se ainda sentir seus ecos no Quartier Latin ou então em Montmartre, o bairro onde habita Amélie.

Montmartre é encantador. As ruelas do bairro alto, o único de Paris a ser construído num morro (como a embriagante vista do alto da Torre Eiffel nos comprova); suas vias de circulação feitas de escadarias; o antigo carrossel de Sacré Coeur, a igreja ao alto e, à sua frente, uma vista não menos impressionante da cidade que se desdobra aos seus pés (os aficcionados em literatura lembrarão – como o fez Cynthia, minha amiga, companheira de viagem e ex-professora de literatura – a frase de efeito do Jacinto de “As cidades e as serras”: “Paris é uma ilusão”; como ele estava equivocado, não, Cynthia!...); a saliente – bem parisiense – rua do Moulin Rouge, com suas dúzias de sex-shops e seu nada discreto “Museu Erótico”; as barracas de frutas ao ar livre; os pintores.
Tudo isso está no filme. Mas a Montmartre de “O fabuloso destino...” é depurada no coração sonhador de sua protagonista, o que lhe multiplica o charme. Quem nos traduz o bairro é Amélie – corporificada com suavidade por Audrey Tatou, em seu mais emblemático papel. Sua história nos é contada à moda dos contos fantásticos. Aprisionada desde à infância a uma existência de solidão, a menina encontra refrigério no mundo de faz de conta. Já maior de idade, parte da casa dos pais rumo à sonhada liberdade, porém seu olhar às coisas já estava moldado ao faz-de-conta. Em Paris, refugia-se no tal bairro e em si mesma; ficcionalizando a existência ao invés de agir objetivamente sobre ela. Até que, como nos contos de fada, num belo dia o destino coloca à sua frente o objeto mágico que lhe dará entrada a uma nova vida: uma pequena caixa contendo as recordações de um menino de gerações passadas. Desde que a devolve ao dono, a jovem verá um novo futuro se descortinar. De princesa triste, ela se torna heroína: daí em diante, todos os que passarem por si terão suas vidas iluminadas.
A graça de “O fabuloso destino...” está, suponho eu, em garimpar o mundo de fantasia que se esconde no interior da selva de pedra contemporânea. Amélie, que se alimentava de sonhos, transfere esse olhar embevecido à cidade e redescobre-a. Os turistas invasores do pitoresco bairro desaparecem; o cinza que invariavelmente o banha é substituído por calorosos tons esverdeados e amarelados, mesmo quando chove; o labiríntico metrô (sem dúvida, a coisa mais surpreendente de Paris) torna-se a trilha que levará a jovem – agora uma aventureira da estirpe de Zorro – ao desfecho do absurdo/surpreendente/adorável enigma da cabeça fotografada. O olhar às pequenezas faz os olhos de Amélie registrarem, para o bem dos nossos, a cidade que ainda vale à pena se conhecer e na qual ainda vale a pena habitar.
A Cidade-Luz de Amélie é uma cidade colorida por uma aquarela que a própria mocinha maneja. Ao sinal de seus dedos, os duendes ainda podem influenciar na vida das pessoas; os cegos podem ver, os mortos escrever e os frágeis ainda podem empunhar armas e salvar a donzela em perigo – que exemplo admirável é o homem dos ossos de vidro, salvador da jovem que era tão pródiga em distribuir felicidade mas tão temerosa de tomá-la para si.
“O fabuloso destino de Amélie Poulin” tem muitas qualidades: sua estilizada fotografia, sempre a serviço da história, as atuações minimalistas (Audrey Tatou terá muita dificuldade de se livrar dessa sua personagem), o roteiro de Guillaume Laurant e Jean-Pierre Laurant e a direção deste último. A orquestração desses elementos é responsável por uma bela lição, dada sem dedo em riste e, portanto, tão eficiente: a poesia da vida cotidiana depende, em grande medida, de nós mesmos; o que não deixa de ser um consolo.


sábado, 18 de junho de 2011

Festival Varilux de Cinema Francês 2011: várias boas realizações e uma obra-prima

Nessa semana, um pouco da cultura francesa desembarcou no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês 2011 - que nos trouxe 10 filmes recentemente produzidos e alguns nomes consagrados que deles tomaram parte.
Em Campinas, o festival encontrou seu espaço de divulgação no Cinema Topázio, que graciosamente se divide entre a exibição da produção cinematográfica comercial e da alternativa - algo cada vez mais difícil de se ver - e, aleluia, está fincado logo na entrada da cidade, bem perto daqui. Não dá para falar da mostra sem mencionar a casa que a hospedou - que é, aliás, minha segunda casa, como a de tantos outros cinéfilos que temporariamente se mudaram para lá junto com os filmes franceses. O resultado foi proveitoso - salas cheias, algumas vezes lotadas, ajudaram a contrariar a crença socialmente consolidada de que o público está hoje preferindo o download pirata às salas de exibição.
O cinema - enquanto espaço de congregação de pessoas no âmbito público - mostra que não vai morrer tão cedo, e aqui assino publicamente embaixo da simpática propaganda do Telecine projetada antes dos filmes: não há nada como o cinema no cinema.
Isso dito, passo agora a dar uma notícia das novidades francesas. Notícia breve e que ainda se ressente da overdose de trabalho dos últimos tempos - o que, infelizmente, me afastou daqui por mais tempo do que desejaria. Espero que a desamarração geral das linhas abaixo não diminua o desejo dos leitores de passar os olhos por algumas dessas produções - especialmente por "Potiche: Esposa Troféu", a obra-prima do título, comédia protagonizada por uma irresistível Catherine Deneuve. No entanto, não vamos pôr a carroça antes dos burros. Primeiro, uma referência às boas realizações, ao menos àquelas que tive a oportunidade de ver (a lista completa está aqui).

Audrey Tatou em "Uma doce mentira"


Os dramas

O primeiro, "Copacabana" (2010, direção de Marc Fitoussi), protagonizado por Isabelle Huppert, injeta um riso ao mesmo tempo ácido e estapafúrdio na situação dramática que toma como base. Huppert desempenha uma mãe atípica, hippie extemporânea rejeitada pela jovem filha que está prestes a se casar. Depois de ser desconvidada para o casamento da filha, a mulher viaja à Bélgica atrás de um emprego de vendedora de apartamentos time-sharing (sistema segundo o qual se adquire um imóvel em conjunto com outras pessoas, desfrutando-se do direito de ocupá-lo por um breve período de tempo todos os anos). O motivo real da viagem nem mesmo ela sabe ao certo, impulsiva que é: provar à filha que poderia ser uma mãe convencional?; viver outra aventura noutra terra estrangeira? A fortuidade impera no roteiro, estendendo-se para o título e a trilha-sonora da película - canções brasileiríssimas ritmam malemá as andanças da mulher pela gélida Bélgica - coadunando-se com as excentricidades do conjunto (excentricidade impressa até mesmo no colorido cartaz).
A história é surpreendente: a viagem desde sempre anunciada ao Brasil - mas nunca realizada empiricamente - desdobra-se numa original vivência da protagonista com o país que ela tanto ama (ama, aliás, o estereótipo do Brasil, o que nem por isso deixa de ser interessante, já que dá consistência ao papel da mulher avoada e calorosa); o percurso até o insólito clímax (que não vou anunciar para não perder a graça) é marcado por encontros da protagonista com personagens igualmente incomuns.
O mote da trama é doloroso e Huppert parece mais uma vez se deleitar desempenhando com desprendimento outra personagem surda às imposições do mundo, vivendo somente para seus instintos (vi-a pouco tempo atrás em "Minha terra: África", igualmente correta). O filme não alça nenhum maior voo, porém, é interessante pela forma como rejeita expressamente qualquer convenção - o que pode até acarretar na dificuldade de o público se identificar com a personagem principal, mas nem por isso diminui o interesse da história.

Os outros dois dramas seguem o mesmo saudável percurso que faria muito bem ao cinema norte-americano standard dos dias de hoje: roteiros despretensiosos, limpos e seguros, e atuações de uma naturalidade quase documental.
"O pai dos meus filhos" ("Le père de mes enfants", 2009, direção de Mia Hansen-Love) toma como tema a indústria do cinema a partir do ponto de vista de um pequeno produtor que tenta se equilibrar entre os sucessos comerciais e os artísticos. Que a luta é infausta todos nós sabemos. O problema é que as produções que se dedicam ao assunto insistem em desfechos upbeating - nos quais a qualidade vence o dinheiro e o artista lutador vê finalmente seus esforços recompensados. Aqui não há disso.
Acessamos flashes da vida familiar e profissional de Grégoire Canvel, pai amoroso e produtor cinematográfico dedicado que acaba digerido pelo sistema. A soma dos âmbitos público e privado, todavia, não prenuncia o desfecho que o homem terá: por isso tal desfecho é tão surpreendente.
A principal riqueza do filme está no modo como as duas partes da história são contadas. Na segunda, a virilidade - marca principal da personalidade de Canvel, transferida para o ritmo frenético da filmagem - é suplantada pela delicadeza das mulheres da família. A forma como o percurso se dá é bastante bonita: Multiplicam-se os primeiros planos dos rostos das frágeis mulheres e a velocidade dá lugar à lentidão; enquanto isso, através de velhas cartas do homem e da defesa de seus ideais, mãe e filhas tentam repor sua presença. O resultado vale a pena ser conferido.
Igualmente original é o modo como o thriller Simon Werner desapareceu... ("Simon Werner a disparu...", 2010, direção de Fabrice Gobert) é narrado. O mote é simples: numa escola de Ensino Médio, três jovens misteriosamente desaparecem. As soluções comuns ao gênero são, no entanto, deixadas de lado em prol de uma narração reiterativa, que teima em (re)contar tais desaparecimentos a partir dos pontos de vistas dos colegas de escola dos jovens. A escolha igualmente diminui a importância dada aos momentos de surpresa, e os sustos comuns ao gênero dão (viva!) espaço para uma leitura muito mais cerebral do caso narrado. O final é surpreendente e só faz ressaltar a potencialidade de uma narração em primeira pessoa: a câmera ganha os olhos de várias personagens; a subjetiva direta apresenta o olhar de cada um sobre o fato. Quem faz o balanço é o público, que, nesse sentido, participa do desvendamento do caso.
Algo curioso - e que menciono só de passagem, já que não consigo cogitar em suas razões - é que o filme tem um sopro nostálgico que se estende para as outras duas produções das quais me ocupo a partir de agora. Nele aparecem debates sobre o tabu do homossexualismo, a AIDS e a camisinha. Além disso, pululam walkmans e os toca-discos ritmam as festas estilo "Barrados no Baile" - o divertimento ingênuo com que as personagens dos anos 80 comemoravam a saída dos pais de casa ganha aqui tom lúgubre, mareado pelo aparecimento de um corpo. Parece que o nosso dia-a-dia marcado por celulares e demais dispositivos de localização imediata diminui o mistério das coisas, e que para novamente encontrá-lo se é preciso mergulhar no passado...

As comédias

O festival acertou em cheio na escolha das comédias: ambas leves e adoráveis. "Uma doce mentira" ("De vrairs mensonges", 2010, dirigido por Pierre Salvadori) permitiu a Audrey Tatou revisitar a personagem que eternizou em "O fabuloso destino de Amélie Poulain".
O filme está distante da obra-prima de 2001 no que toca à temática e o cuidado com a fotografia - de uma sofisticação e singeleza ímpares, como raramente vemos nesses dias. Porém, ainda podemos ver uma Audrey Tatou luminosa como um raio de sol - sim, a comparação é tolinha, mas é exatamente nela em que pensava sempre que o rosto da atriz era enquadrado pela câmera - demonstrando cabalmente que, embora se desincumba bem de papéis dramáticos, seu elemento mesmo é a comédia leve.
O enredo é simples, mas rende múltiplos achados cômicos: Emilie é dona de um estiloso salão de beleza situado num canto da Riviera e tem como empregado um jovem charmoso que nutre por ela uma paixão recolhida. Uma carta romântica anônima escrita pelo rapaz à moça dá início a peripécias que acabarão por envolver também a mãe dela - mulher desgostosa da vida depois de ser abandonada pelo marido.
Nada muito inovador, porém, a história é contada de um modo tão gracioso que se torna imperdível. Para isso, contribui enormemente uma trilha sonora dos anos 80 - não localizei os nomes das canções para dizê-lo com certeza, mas os arranjos me parecem bastante tributários dos 80 - que são um deleite para os ouvidos dos nostálgicos (para mim, essas canções combinavam com a piscina do clube onde eu passava despreocupados verões, tanto tempo atrás...). Elas caem como uma luva na história, dando credibilidade aos bobinhos desencontros amorosos encenados - já que estão envolvidos por aquela pátina do tempo que torna tudo mais charmoso. Imperdível, assim como "Potiche".

A surpresa do festival foi, para mim, "Potiche: Esposa Troféu" (Potiche, 2010, dirigido por François Ozon). Por causa dele, Catherine Deneuve acabou de ganhar um espaço de destaque na minha prateleira de musas.
O filme segue de perto o melhor da screwball comedy. Não conheço a filmografia do diretor e conheço pouco a de Deneuve. Então, ver o filme me proporcionou a deliciosa descoberta de que é ainda possível reencontrar na tela grande o ritmo que tanto me deleita naquelas maravilhas dos anos 30 e 40 dirigidas por Capra, Lubitsch, Cukor, La Cava... E isso pelas mãos de uma atriz que, embora experiente, mostra que pode ser lépida como uma garotinha - o que multiplica o charme da história.
"Potiche" mergulha romanticamente no passado - no final dos anos 70, aurora da luta da mulher pela igualdade social. Deneuve é Suzanne Pujol, a esposa enfeite.
Casada com um homem de ferro da indústria do guarda-chuva, a mulher de meia-idade (embora a atriz tenha quase 70, passa facilmente por uma mulher de 50 - ou menos) precisa se contentar com um espaço módico na vida pública e privada do homem. Como as bonequinhas dos anos 70, Suzanne se dedica a ninharias. Ela escreve poesias... A sequência que abre o filme, da mulher correndo no bosque e interagindo com os pequenos animais silvestres, é um primor da graça, tolice e poesia (não é quase impossível juntar bem tudo isso?).
A viagem ao passado é acompanhada de um olhar num só tempo amoroso e analítico. O filme constrói, com riqueza de detalhes, tipos e estereótipos dos anos 70 - o próprio pôster faz graça com isso, rotulando todas as personagens logo de cara, influenciado em grande medida pela produção cinematográfica e seriada da época. Porém, cabelões armados, calças bocas-de-sino, laquê e companhia emolduram personagens algo complexas. Os estereótipos vão caindo na medida em que a esposa-troféu vê-se obrigada, devido à doença do marido, a sair da estante e enfrentar a fábrica dominada pelos funcionários insatisfeitos. E aí, o filme é todo de Catherine Deneuve, que conduz o protagonismo com uma maestria igual a qual é raro vermos. A dignidade que a atriz experimentada imprime a cada cena faz o filme a todo momento deixar a sátira e esbarrar na poesia: seu encontro com o velho amor na boate da moda; sua relação suis generis com o marido - contada por uma câmera que a todo momento beira o kitsch mas vitoriosamente escapa dele.


Sem contar as referências à sétima arte - não só a produzida nos anos 70. Sabem que sou amante assumida do cinema clássico. Por isso minha emoção ao ver Catherine tratada com um respeito quase reverencial pelo diretor - a alusão a "Os guarda-chuvas do amor" não está só na fábrica de Monsieur Pujol, mas na canção que a própria personagem entoa graciosamente no clímax do filme. O respeito é merecido, porque não só a atriz mostra ter se esbaldado em cena, nós também nos esbaldamos com ela.

Como esse post é mais um convite para que os leitores conheçam as produções que uma análise cerrada de cada uma delas, paro por aqui para não estragar as surpresas. Aqui em Campinas, nos movimentamos e ganhamos de presente "Potiche" por mais um par de semanas. Desejo-lhes a mesma sorte!