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Adriana Esteves em "Avenida Brasil" (2012) |
De vez em quando, a tevê nos proporciona um encontro desconcertante com o nosso passado – encontro cuja força nos coloca a pensar sobre o presente e a projetar o futuro. Falei disso no início de 2011, quando da nova exibição da íntegra de “Vale Tudo” (1988), pelo então recém-fundado Canal Viva. A trama de surpreendente atualidade, a coesa carpintaria dramática (não obstante as dificuldades técnicas da época) e a qualidade das atuações destacavam um tempo áureo do suporte televisivo, em que se colocava em primeiro plano o desejo de comunicar visando-se a emoção e o fomento da reflexão crítica.
A reflexão aqui não sairá, todavia, daquele eixo. Em 2011, aventei sobre a possibilidade de a nova dramaturgia, bafejada pelo bom exemplo da reprise, evoluir intelectualmente tanto quanto já evoluíra tecnicamente. “Avenida Brasil”, estreada no ano seguinte, atestou a veracidade do que eu dizia. Ou parte dela, já que o trabalho saíra da mesma cepa donde já brotara o sucesso de audiência e crítica “A Favorita” (2008). João Emanuel Carneiro, o autor de ambas as telenovelas, demonstra talento superior para transigir com o atual status quo da televisão, sem que, com isso, precise transformar sua obra em rebotalho. Porque, verdade seja dita: hoje, apenas um talento acima da média conseguirá levar a cabo por meses uma obra de valor artístico, dadas as exigências comezinhas do mercado.
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Alexandre Nero em "Império" (2014) |
A telenovela atual é produto do desenvolvimento galopante das traquitanas tecnológicas, competidoras potenciais da televisão. Acostumados à velocidade com que circulam as informações pela web, os olhos do público buscam antes o brilho fugidio das fotos e vídeos que os feeds atualizam, antes a informação oca das frases breve usualmente isentas de teor crítico, do que o deslindar pausado de almas e corpos. Daí à produção televisiva contemporânea estar coalhada de personagens de um convencionalismo mofado – gente ora boa, ora péssima; ora heroica até a raiz dos cabelos, ora incontornavelmente pusilânime; e às tramas serem de uma aterradora vaziez. De nada adianta: excetuando-se alguns sucessos de público – como “Império” (de valor artístico discutível, aliás), o público continua a preferir o smartphone e a Netflix, deixando a TV aberta à deriva.
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Nextel em "Em Família" (2014) |
Seria inócuo atribuirmos culpas univocamente. A televisão aberta de hoje obedece, como outrora, a economia de mercado. Ainda precisa, por exemplo, de patrocínio para manter a programação – e precisa, consequentemente, oferecer aos anunciantes a contrapartida dos investimentos feitos por eles. O rareamento do público empírico, ou da atenção do público, obriga à diversificação e acirramento das estratégias de convencimento utilizadas pelos anunciantes. No último ano, observei, com alguma curiosidade malsã (devo confessar...), os subterfúgios inventados pelos autores das obras dramáticas no intuito de inserirem nas tramas o famigerado merchandising:
Manoel Carlos deve ter sofrido ao ver sua alta roda do Leblon (em “Em Família”) obrigada a frequentar uma popular rede de supermercados – sofrimento vertido para a forma mal-ajambrada como as inserções publicitárias de tal loja foram costuradas na trama.
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Leandra Leal em "Império" |
Já Aguinaldo Silva, mais popularesco e safo, não raro emoldurou os anúncios com piscares de olhos irônicos: o cartão crédito do banco X corria como navalha nas mãos da blogueira de fofocas, mulher fina e elegante que não se furtava, entretanto, a querer conhecer em detalhes como funcionava o cartão de fidelidade do posto de gasolina Y. Isto quando o autor não explicitou a sua dificuldade de lidar com uma obrigação tão “antidramática”, transformando essa ou aquela personagem em portas-vozes dele. Théo Pereira foi seu melhor alter-ego: “Gente” – diz o fofoqueiro-mor, olhando para a câmera como se fora Woody Allen – “não tentem entender o que o autor está dizendo, senão vocês perceberão que estão sendo feitos de idiotas. Coloquem no piloto-automático e toquem adiante”.
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Totia Meireles em "Salve Jorge" (2012) |
Cito de memória, procurando, porém, manter o espírito do dito. Este trecho ainda se salva pela graça da metalinguagem. No entanto, nele, como noutros de “Império”, vê-se claramente emergir a tensão entre o dramático e o extra-dramático: entre as necessidades incontornáveis da trama e as bugiarias que esgarçam a sua tessitura. O que era acessório torna-se fundamental. Incontornável é a necessidade de se manter o anunciante, ao redor do qual passa a girar o enredo. É impossível, portanto, comparar “Vale Tudo” e “Império” – já que a última é um híbrido de obra de ficção e peça publicitária.
O mal disso é imenso. Estruturalmente, observa-se o esfacelamento das tramas, cujos caminhos dependerão do rol de anunciantes patrocinadores da obra dramática – doravante reduzida ao papel de veículo visando à comercialização de um produto. Deturpação que se espraia para o âmbito ideológico. De um lado, para o possível choque entre a ideologia do ator e aquela atrelada ao produto anunciado (considerando-se a analogia historicamente estabelecida entre pessoa pública e a pessoa privada do ator). De outro, para a redução do microcosmo da tal obra dramática aos labels dos produtos que a patrocinam – calando-se a polifonia social que a telenovela supostamente se propõe a representar, em prol de uma uniformidade mistificadora.
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Débora Falabella em "Avenida Brasil" |
A telenovela contemporânea vê-se, assim, esvaziada de sua histórica função social. Vinte anos atrás, os destinos das personagens das tramas pareciam indissoluvelmente imbricados aos destinos da sociedade. Daí àqueles seres de papel serem sentidos como gente de carne e osso; seus passos e descompassos religiosamente acompanhados por um público entusiasta.
Hoje, quem assiste com esta paixão às novelas? Quem verdadeiramente se interessa pela trajetória do ricaço-equilibrista, a rodar histrionicamente entre os dedos a amante, a esposa e a megera vilã? Quem deseja, em 2015, ver a anacrônica femme-fatale reduzindo à míngua toda a população masculina da trama, enquanto que a sua antagonista baba sobre ela o seu ódio e inveja? Ninguém, além daqueles que dirigem à TV olhares furtivos, entre a escritura do último tweet e a atualização do feed de notícias do Facebook.
A telenovela contemporânea respeita a lógica da inserção comercial. Oferece uma hora de descanso à atenção do público. Esta ausência de intencionalidade abre-lhe o campo para que ele passeie por outras fontes enquanto espia o programa, ou então desligue a TV em prol de uma dramaturgia mais afiada - como os públicos entusiastas de Game of Thrones e outros hits de qualidade da TV fechada não me deixam mentir.
Esses comentários servem de preâmbulo ao próximo artigo, sobre “O Rei do Gado”, que a Rede Globo agora reprisa. Eu sonho com uma telenovela como esta em horário nobre – como essa ou como “Avenida Brasil”: menos suave, mais pragmática, igualmente ótima. Mas sonho porque sou uma balzaquiana nostálgica, cuja trajetória foi marcada pelos heróis dos folhetins. É por obrigação moral a eles, apenas, que ainda insisto diante da telenovela.
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Patrícia Pillar em "O Rei do Gado" (1996) |
4 comentários:
Dani, excelente texto como de costume. Tenho muita, muita vergonha alheia dos momentos de merchandising nas novelas. Creio que seja necessário muito mais imaginação para inserir propagandas na trama sem parecer forçado. É uma coisa para se estudar!
Beijos!
Lê
Lê, obrigada pelo feedback e as palavras simpáticas, querida!
Pois é! Há uma inserção impagável no "Roque Santeiro" - quando o professor pudico, que depois se relevaria um lobisomem, sobe numa escada para apalpar um outdoor das calcinhas Hope. Ali a propaganda entrou em simbiose com a história, ao contrário do que acontece hoje, em que a história deve se adaptar para recebê-la. Realmente, quem souber fazer isso bem terá encontrado o caminho das pedras...
Bjs
Dani
Parabéns pelo blog, é a primeira vez que visito.
Há mais de vinte anos que não assisto novelas, respeito a importância do formato na história da tv, mas vejo nos dias de hoje como algo ultrapassado.
Hoje as opções de entretenimento são enormes. Cada vez mais diminui o número de pessoas interessadas em acompanhar diariamente uma trama durante seis meses. Por isso, que a audiência cresce apenas no capítulo final.
Sobre o merchandising, infelizmente o cinema também sofre com isso. Vemos propagandas descaradas em produções brasileiras, principalmente as comédias populares da Globo Filmes e também nos longas de Hollywood. Até em clássicos como "Blade Runner" vemos um imensa propaganda em neon da Coca Cola.
Estou linkando o endereço do seu blog no meu.
Abraço
Olá, Hugo.
Bem-vindo ao blog! Agradeço a menção elogiosa e o comentário atento ao artigo.
Concordo contigo, a telenovela vem ocupando um espaço cada vez menor no dia-a-dia da população. A extensão da trama prejudica o envolvimento, mas certas séries são tão grandes quanto, duram anos a fio, e ainda assim arrastam legiões de admiradores (nada como os 50 milhões que viam as telenovelas mas, ainda assim, audiências expressivas). Falta qualidade na elaboração das tramas, qualidade dramatúrgica e não técnica, para que a telenovela reflita a sociedade que tematiza, como fazia no passado.
Concordo contigo sobre o merchandising no cinema. Ele é constante, desde décadas, mas precisa ser usado em favor da história, e não vice-versa. No Blade Runner o rótulo da Coca-Cola ganha um viés crítico. Ao contrário de muitos filmes nacionais, que nos deixam com vergonha alheia (como a Lê disse acima).
Vou visitar seu blog. Obrigada pela visita ao meu!
Abs
Danielle
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