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segunda-feira, 21 de julho de 2025

“Os Pescadores de Pérolas”, presente à altura do aniversário do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (14 e 16 jul. 2025)


O Theatro Municipal do Rio de Janeiro comemorou, na segunda-feira, 14 de julho, seus 116 anos de existência. Para mim o estabelecimento tem um papel simbólico. Estudei-o – e a sua programação, e os esforços incansáveis de indivíduos como Arthur Azevedo para a sua construção – desde os idos de 2003, no início da minha vida acadêmica. Num 14 de julho, mais de vinte anos atrás, assisti ali ao primeiro espetáculo operístico que vi na vida – quando literalmente fui arrebatada porta adentro por uma funcionária da casa, responsável por fazer os pedestres tomarem conhecimento da efeméride. Por isso, minha viagem à cidade para assistir a “Os Pescadores de Pérolas”, cuja pré-estreia encerraria com fecho de ouro os festejos em comemoração do aniversário do Theatro Municipal, foi regada a nostalgia. 
A divulgação do programa e o engajamento da casa para angariar a presença do público (e dele para prestigiá-la) lembrou-me o que vi naquele ano de 2004. Concerto, ballet e ópera no hall de entrada do teatro, apresentados durante todo o dia, foram alguns dos espetáculos que mantiveram o Municipal movimentado desde às 9h. Às 19h, um teatro lotado acompanhou gestos públicos simbólicos, como a assinatura do contrato de patrocínio da Petrobrás com a casa, que garantirá o seu funcionamento pelos próximos anos, e, enfim, a ópera de Georges Bizet. 
Bizet vence o Prix de Rome ainda jovem (em 1857; ele nasceu em 1838), o que lhe permite estudar na Itália, com respaldo financeiro, ao longo de 5 anos. Ao retornar, conta-nos Sérgio Casoy, no ótimo artigo em que discorre sobre a ópera, o compositor recebe patrocínio do Théâtre Lyrique de Paris para compor uma obra a ser encenada na casa. Ele, que havia composto esparsas obras do gênero para cumprir a burocracia de sua bolsa de estudos, dedica-se à composição daquela que seria a sua primeira ópera encenada. Casoy dá-nos detalhes saborosos sobre o descrédito em que os libretistas Eugène Cormon e Michel Carré tinham o jovem compositor, levando-se em consideração as parcas qualidades do libreto que lhe ofereceram. 
Efetivamente, a perenidade de “Les pêcheurs de perles” (1863) não é oriunda do libreto, que se apoia, como o grosso das óperas do período, no melodrama, desta vez com corte orientalizante, a exemplo de outras obras do gênero (como “Samson et Dalila”, de Saint-Säens, e “L’Africaine”, de Meyerbeer, destacados Casoy), ou da literatura, como o romance Salammbô, de Gustave Flaubert, escrito um ano antes de “Os Pescadores...”. A produção artística da época oferece-nos inúmeros exemplos dos mais variados gêneros, deslocados geograficamente (e muitas vezes temporalmente) entre o Oriente e a África, cujos usos e costumes são em boa parte inventados, bem como as sonoridades; tudo isso para saciar o apetite do público pelo exótico, que perdura enquanto tais territórios são vítimas do imperialismo ocidental. 
“Les pêcheurs de perles” passa-se num Ceilão (atual ilha do Sri-Lanka) imemorial, no qual as orações de uma virgem sacerdotisa de Brahma são responsáveis por garantir a integridade física dos pescadores, no ofício árduo que desempenhavam. Antes, todavia, de sua chegada à ilha, o drama de amor já se anuncia. Zurga (Vinícius Atique), o líder dos pescadores, e Nadir (Carlos Ullán), um velho amigo seu, que ressurge na ilha, cantam em uníssono sobre o amor que passam a nutrir por uma mulher misteriosa a qual, de certa feita, se desvela para ambos. O dueto, um dos pontos altos da ópera, explicita que o encontro é um ponto de virada na parceria da dupla. Embora ambos jurem amizade eterna, aquela mulher misteriosa os havia irremediavelmente separado. 
Seguindo à risca os cânones do melodrama – que, à guisa do “destino” trágico, procura colocar sob um mesmo teto todos os elementos de tensão –, Leila (Ludmilla Bauerfeldt), a sacerdotisa/a mulher amada pelos amigos, chega à tribo conduzida pelo ancião do local. Também é o expediente melodramático que constrói o reconhecimento do casal apaixonado Leila e Nadir, bem como o descalabro da tribo – como soe a esse gênero misógino, a entrega amorosa da jovem gera primeiro a tempestade que irrompe furiosamente e, enfim, leva Zurga a atear fogo à tribo, para permitir que o par romântico fuja, mesmo que ele, Zurga, acabe morto em holocausto. 
Não é da trama calcada historicamente no terreno do preconceito contra a mulher e da exploração imperialista que tiraremos algum valor estético, mas sim da música. Bizet une secura e lirismo, como se se colocasse ao lado do triângulo amoroso, atravessado pelo amor (seja a amizade, seja o afeto romântico) em meio a um ambiente inóspito. Não por acaso, os acordes do dueto de Nadir e Zurga “Au fond du temple saint” atravessam a ópera, funcionando como leitmotif da dupla e de Leila, do momento em que Zurga declara amizade eterna a Nadir, ao momento em que ele abre mão da mulher que ama, para que ela parta com o amigo. 
A encenação carioca de “Os Pescadores de Pérolas” foi um acerto. Sua concepção e direção cênica couberam a Julianna Santos, e suponho que seja o seu melhor trabalho a que eu já tive a oportunidade de assistir pessoalmente (espetáculo fetiche meu encenado por ela é “Alma”, de 2019, que vi apenas em vídeo, e que julgo excepcional). Em “Os Pescadores...”, ela realiza um trabalho bastante competente de direção cênica de cantores/atores. Ademais, em parceria com Desirée Bastos (cenografia e figurinos) e Angélica de Carvalho (desenho de vídeo), constrói uma encenação em que os cenários, figurinos e projeções estão a serviço da contação da história – algo capital, e nem sempre visto na cena contemporânea. 
De acordo com o libreto, o primeiro ato de “Os Pescadores de Pérolas” se passa numa praia selvagem, em meio às cabanas dos pescadores; o segundo, nas ruínas de um templo hindu, que tem um terraço com vista para o mar; e, enfim, o terceiro, numa tenda hindu fechada com cortina. Na montagem carioca, um mesmo – belíssimo – cenário atravessa os três atos da obra. Um gasto barco está ancorado à direita, ao lado de um píer. No proscênio à direita há um conjunto de pedras. Projeções no chão do palco imitam as ondas que quebram na embarcação e no píer, antevendo os perigos que enfrentam os pescadores (metáfora, também, dos dramas internos que o trio protagonista sofre). E no telão ao fundo, ao longo de todo o espetáculo, projetam-se imagens entre realistas e abstratas: de pérolas e dos pés de uma mulher que caminha pela praia, e das velas de um barco que se metamorfoseiam nos véus que encobrem o rosto de Leila – ambos a conduzirem os personagens dos amigos ao longo da trama. Em parte do terceiro ato desta montagem, uma cabana construída por um tecido que lembra a vela cobre parcialmente a embarcação, denotando que é o elemento aquático que a atravessa. 
No que diz respeito ao figurino, Bastos opta por cores neutras e esmaecidas para confeccionar os trajes, véus e turbantes dos habitantes do Ceilão. Destacada do conjunto está Leila, cujo vestido esvoaçante branco é coberto por gazes rosadas que se desfolham quando ela descobre o amor, e se conspurcam quando ela se vê imersa no ódio da tribo. 
No que toca à iluminação de Paulo Ornellas, se ela não foi inventiva, foi correta  não deixou na penumbra nenhum artista que precisasse ser visto. Ademais, a Bruno Fernandes e Mateus Dutra coube a acertada coreografia do espetáculo, que, deu cor local de forma convincente ao Ceilão inventado por Bizet, Cormon e Carré  mormente as danças estilizadas realizadas pela tribo, atravessadas por um aroma indiano. 
A obra teve a direção musical e a regência a cargo de Luiz Fernando Malheiro, que conduziu com elegância a Orquestra do TMRJ, cuidando para que os cantores não fossem jamais encobertos. O coro do teatro, representando os membros da tribo, no geral apresentou boa performance (sobretudo o feminino), evoluindo ao correr do espetáculo. Além da récita do dia 14, assisti à estreia, no dia 16, e em ambos os momentos houve algum desencontro no início, devido, talvez, ao movimentado jogo de cena que coube ao coro executar. Todavia, a sua intervenção foi bastante satisfatória, por exemplo, no momento em que recepciona Leila (“C'est elle, c'est elle... Sois la bienvenue”) e nos estertores da obra (“Dès que le soleil”), quando preparam a fogueira em que arderiam Leila e Nadir. 
No que concerne ao quarteto solista, cumpre a princípio destacar a sua boa dicção do idioma francês. O baixo Murillo Neves desempenhou com consistência vocal e desempenho cênico bastante convincente o papel do ancião Nourabad, que conduz a jovem Leila à tribo. Já o tenor Carlos Ullán saiu-se melhor do ponto de vista cênico que do vocal – aliás, do ponto de vista teatral, é preciso que se ressalte o trabalho cuidadoso desempenhado por Julianna Santos, no que diz respeito a todo o elenco. Com a ajuda de seu físico mignon, bem talhado aos personagens românticos estereotípicos, Ullán construiu um Nadir eletrizante e apaixonado. Talvez devido às suas qualidades como ator, o tenor tenha se saído vocalmente melhor nos duetos com Vinícius Atique e Ludmilla Bauerfeldt que na notória ária “À cette voix... Je crois entendre encore”, com a qual teve dificuldade, malgrado a cantasse do proscênio. 
O barítono Vinícius Atique construiu um Zurga vocal e cenicamente sólido. Foi duro e pragmático, como cabe ao seu papel de líder da tribo, entregando-se, todavia, a afetos como o ódio ou o amor – e exemplo disso é “L'orage s'est calmé... O Nadir, tendre ami de mon jeune âge”, que ele entoa solitário logo depois de descobrir que Nadir e Leila se amam, e de selar o destino de ambos – ária que ele tinge de nostalgia. Aliás, a continuidade desta cena é um dos momentos mais memoráveis do espetáculo: Leila chega e tenta conquistar o perdão de Zurga (“Qu'ai-je vu? O ciel, quel trouble... Je frémis”), descobrindo, enfim, que ele pune o casal porque a ama (“Je suis jaloux”). O ótimo resultado desta cena é a prova cabal de que a chave para um espetáculo operístico convincente é a escalação acertada dos cantores e uma boa direção cênica. 
À soprano Ludmilla Bauerfeldt coube o exigente (vocal e cenicamente) papel de Leila, mulher/santa que é objeto, por parte dos amigos e da tribo, de um amor e de uma reverência de amplo espectro (do âmbito religioso ao desejo e, enfim, ao sentimento romântico), sentimento historicamente atrelado às mulheres, conforme Georges Duby tão bem demonstrou em Eva e os Padres
O temor das mulheres da Idade Média, sobre as quais o intelectual francês fala, segue vivo no século XIX, berço desta ópera e do gênero melodramático, o qual encampa este mesmo ideário. Todavia, esta personagem, que é tecida para ser a responsável pela separação dos amigos e destruição da tribo que ela deveria salvar, ganha da soprano uma construção tão filigranada que recupera toda a sua dimensão humana. 
O timbre lírico de Bauerfeldt encaixou-se perfeitamente a esse papel refinado, que exige sofisticação técnica. A artista encampou a dimensão mística de Leila, ao adentrar a cena e jurar que defenderia a tribo, malgrado as ameaças que de saída escuta. Porém, desceu a sua personagem do pedestal ao entoar, com doçura extrema, “Me voilà seule dans la nuit... Comme autrefois”, arrepiada por se sentir atravessada pelo destino, já que pressentia ali o homem que amava – e ela o faz à beira do píer, enquanto a maré emula o movimento interno da personagem que ela desempenha. Ludmilla tornou Leila uma mulher muito terrena, passional e irada, ao se entregar ao amor ou ao confrontar Zurga, na cena que já mencionei acima, na qual ela maldiz o ciúme do rapaz com um agudo tão lancinante que ele ainda ressoa dentro de mim. E, enfim, foi dilacerante ao pedir que o amuleto que trazia no pescoço fosse entregue à sua mãe, depois que ela morresse – amuleto que leva Zurga a reconhecer, na mulher que ama, a criança que de certa feita o escondera, o que o leva a salvá-la. 
Em sua performance, Ludmilla Bauerfeldt recupera num só tempo, vocal e cenicamente, a dimensão humana e divina de nós, mulheres, que séculos de preconceito tentaram em vão soterrar. Seu trabalho notável merece ser conferido, bem como essa bem-sucedida encenação de “Os Pescadores de Pérolas”, merecido presente que o público brasileiro ganha com o aniversário deste teatro para cuja construção e manutenção tantas mulheres e homens lutaram e ainda lutam.


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Imagens: Divulgação/Daniel Ebendinger; Instagram do TMRJ e dos artistas.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Rusalka no Rio de Janeiro: suavidade e sanha num espetáculo excepcional


Em 1901, Antonín Dvořák dá à luz um lúgubre conto de fadas, Rusalka. O libreto, de autoria de Jaroslav Kvapil, dialoga sobretudo com The Little Mermaid, de Hans Christian Andersen, e Undine, de Friedrich de la Motte Fouqué, escritos nas primeiras décadas de 1800. A história do enlace impossível entre uma criatura aquática e um homem poreja um ceticismo tributário desse início do século XIX. Se tais entes, oriundos das mitologias germânica e escandinava, seguiram vívidos na cultura ocidental (aproveitados por homens como, por exemplo, Richard Wagner e Maurice Maeterlinck), o desenvolvimento técnico galopante que ocorreria até fins do século XIX desmantelaria qualquer idealismo; o desejo de união dos opostos permaneceria irrealizável. 
Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia. 
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático. 
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste. 
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua. 
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama. 
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular. 
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina. 
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha. 
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba. 
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas. 
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos. 
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos. 
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Em belo programa, OSUSP abordou obras de Salinas e Villa-Lobos


Crítica publicada a 20 de junho de 2024 no site Notas Musicais.

Concerto 15 de junho de 2024 

Anfiteatro Camargo Guarnieri 

Victor Hugo Toro, regência 

Ludmilla Bauerfeldt, soprano 

Quase três quartos de século separam os nascimentos de Heitor Villa-Lobos (1887) e de Horácio Salinas (1951). Embora não tenham convivido, e apesar de cada um deles ter recebido influências musicais distintas, o mesmo éthos heroico preside as obras dos dois compositores abordadas pela Orquestra Sinfônica da USP no último sábado, dia 15 de junho, no Anfiteatro Camargo Guarnieri, situado na Cidade Universitária da USP São Paulo: respectivamente, as suítes Floresta do Amazonas (1958) e Patagônia (2023). A regência foi de Victor Hugo Toro e a soprano Ludmilla Bauerfeldt, convidada especial, realizou os solos da obra de Villa-Lobos. 

O programa teve início com a estreia brasileira da Suíte Patagônia, escrita por Salinas durante a pandemia e estreada no Chile em 2023. Conforme apontou o seu autor na entrevista que concedeu no início de 2022 ao programa La Voz de los que Sobran (https://www.youtube.com/watch?v=71JKWH2o558), a obra é oriunda da emoção que sentiu ao visitar a Patagônia, situada “no fim do Chile e no fim do mundo”. Influenciado fortemente pela música popular do seu país, a sua obra aborda aquele território em que a natureza vicejante prepondera à civilização, evocando as cores, solidões, os gelos milenares e o esquecimento de povos originários como os Kawéskar, exterminados no momento da colonização pelos europeus. Território que é berço e tumba, já lembrara Patricio Guzmán no arrebatador O Botão de Pérola (2015), obra que entrelaça os destinos dos indígenas aos destinos dos prisioneiros políticos da ditadura de Pinochet, ali desovados depois de serem mortos. 

É também o intuito descritivo que preside Floresta do Amazonas, de Villa-Lobos, que a OSUSP apresentou na versão para orquestra reduzida concebida por Abel Rocha em 2021. A obra teve um percurso inusitado, conforme o maestro Victor Hugo Toro lembrou ao público, num comentário curto e informativo antes do princípio da sua execução (esta contextualização, também realizada antes do início da obra de Salinas, é muito bem-vinda, pois colabora para a fruição do público): resultou de um contrato que o poderosíssimo estúdio cinematográfico MGM firmou com Villa-Lobos para que ele criasse a trilha sonora de um filme protagonizado por Anthony Perkins e, sobretudo, por Audrey Hepburn, uma das atrizes mais conhecidas e queridas do mundo naquele momento. Villa teria aceitado a incumbência, todavia, compôs a música antes de assistir ao filme, o que caminha na contracorrente do que se espera de uma trilha sonora cinematográfica. 

O nome de Villa-Lobos, com destaque, nos créditos do filme

 O contrato foi rompido, lembrou o regente, porém Green Mansions (1958), ou A Flor que não Morreu, como viria a ser conhecido no Brasil, informa em seus créditos que teria cabido ao compositor criar “música especial” para a produção – enquanto a trilha sonora e a canção Song of Green Mansions, utilizadas no filme, foram compostas por Bronislau Kaper, com letra de Paul Francis Webster. Além disso, Villa se deixou fotografar, para a publicidade do filme, com Audrey e Mel Ferrer (diretor da obra e marido dela, então). A música de Villa é o grande momento desta película irregular, em que a alva e longilínea Audrey Hepburn interpreta o papel de Rima, uma nativa venezuelana carregada para um recôndito da floresta pelo arrependido ladrão de ouro que, após destruir o vilarejo onde ela vivia quando criança, cria-a como neta. Não falta physique du rôle apenas à atriz, mas também a Sessue Hayakawa, ótimo ator japonês cuja carreira remonta ao cinema silencioso (observe-se, por exemplo, a sua atuação contida em The Cheat, de 1915, algo desusado para a época), e que aqui é escalado para interpretar o cacique da tribo (!) que acaba por invadir os domínios de Rima e matá-la. 

Cena de Green Mansions

Malgrado faça uso de muito material fílmico gravado in loco, entre as fronteiras da Venezuela, da Colômbia e da Guiana Francesa, a obra presta mais tributo ao conto de fadas que ao cinema documental, dialogando com os musicais produzidos pela MGM, o estúdio mais bem reputado para a realização desse gênero fílmico na época. Correndo de pés descalços e vestidinho de chita pelos sendeiros recriados em estúdio na Califórnia, Audrey é menos a nativa sul-americana e mais a fada que lhe havia dado um Tony em 1954 (em Ondine, de Jean Giraudoux), ou a princesa que a havia elevado ao estrelato (com direito a um Oscar) em A princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953). 

O único calcamento de Green Mansions na realidade em que se passa a história, a Amazônia, é dado pela música de Villa-Lobos, que é, no entanto, subutilizada no filme. Marcadamente descritiva, mas apagada neste filme que caminha em sua contracorrente, a obra Floresta do Amazonas encontra melhor expressão no espaço da sala de concerto. E, no sábado passado, ela encontrou um espaço especialmente poderoso de expressão, executada pela OSUSP, sob a batuta de Hugo Toro, e cantada pela nossa deslumbrante Ludmilla Bauerfeldt. 

A escrita de Villa-Lobos recupera não a personagem criada na versão cinematográfica de Green Mansions, mas sim no livro de que o filme é oriundo, no qual a personagem de Rima era uma força da natureza, cuja voz era entendida sobretudo pelos animais da floresta. Como lembra Hugo Toro, a obra de Villa faz usos inusitados de efeitos orquestrais já conhecidos para mimetizar os sons da floresta, dos rios e dos animais, explicitando tanto a força da natureza quanto da música popular do Brasil. 

As canções da suíte demonstram isso de forma cabal. Com poesia de Dora Vasconcellos, bebem tanto da temática quanto da melodia do cancioneiro popular, ampliando os limites do Amazonas para os grandes sertões e para as paragens ribeirinhas (“Quanta tristeza / Ondas do mar / Neste vaivém / Sem me levar / Pois sempre eu fiz / Muita atenção / Em não pisar / Teu coração / Ah!”, em Veleiros), e repisando uma melancolia que é historicamente muito própria desta produção, a qual artistas modernistas, a exemplo de Villa-Lobos, abordaram com deleite. O rol de canções que compõem a suíte já foi interpretado por cantoras relevantes, líricas ou populares, a primeira das quais foi a soprano Bidu Sayão, uma lenda do canto lírico. Tais canções são, por sua natureza, o ponto focal da Floresta do Amazonas

Ludmilla Bauerfeldt, Victor Hugo Toro e a OSUSP 

A carioca Ludmilla Bauerfeldt se revelou uma intérprete potente desta obra. Tecnicamente precisa, além de ótima atriz-cantora, deslizou com segurança e suavidade entre os vocalizes e peças notórias, como a Melodia Sentimental e a Canção do Amor – a qual ela abordou com arrebatadora calidez –, dando relevo à ambivalência da personagem em que a obra originalmente se baseia. Favorecida pela consistência do trabalho da orquestra e pela regência cuidadosa de Victor Hugo Toro, que deu relevo à musicalidade peculiar da obra sem jamais cair no maneirismo, a soprano ofereceu uma interpretação emocionante dos solos da Floresta do Amazonas, demonstrando mais uma vez porque é uma das mais destacadas cantoras brasileiras da atualidade. O público paulistano merece escutá-la por aqui com mais frequência. 

Fotos do concerto: a autora./Fotos do filme: IMDB.