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terça-feira, 28 de maio de 2024

“Carmina Burana” na Sala São Paulo


Crítica publicada em Notas Musicais a 16 fev. 2024.
Os concertos da pré-temporada da OSESP ocorreram de 8 a 10 de fevereiro de 2024. 

A Sala São Paulo começou os seus trabalhos de 2024 em grande estilo, com um concerto de pré-temporada em que figurou a célebre Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff, apresentada para plateias transbordantes, beneficiadas pelos preços populares da entrada (iniciativa fundamental para a democratização do acesso). 
A obra é invariavelmente precedida pelo ressaibo crítico, em grande medida justificável, já que foi escrita em pleno Terceiro Reich (1936), que arrastaria a Alemanha à 2ª Grande Guerra e protagonizaria o holocausto judaico, um dos maiores genocídios da história da humanidade. 
Na análise que fez da apresentação da obra ocorrida no Theatro Municipal de São Paulo em dezembro passado, Fabiana Crepaldi apontou o esforço da obra de caminhar a contrapelo daquilo que os nazistas consideravam arte “degenerada”, motivo pelo qual ela teria ganhado a aprovação do governo. Já no programa da Sala São Paulo, Márcio Seligmann-Silva, professor de literatura da Unicamp e crítico literário especialista em estudos do trauma – sobretudo concernente a este momento histórico –, sublinha a monotonia musical e temática presente na obra (repetição de poucas notas e frases, presença destacada da percussão, ausência de contraponto, presença de figuras míticas medievais) como denotativa de um programa estético voltado à distração. Ao transmitir símbolos de heroicidade numa linguagem musical acessível às massas, a obra de Orff acabaria por dialogar com o ideário político encabeçado por Adolph Hitler. 
Nas décadas seguintes à guerra, Carmina Burana imprime-se indelevelmente no imaginário ocidental, apresentada – especialmente O Fortuna, Imperatrix Mundi, canção que abre e fecha a cantata – num sem número de produções, de filmes a comerciais de televisão. Passados quase 100 anos e alterado o contexto histórico, o maravilhamento que a peça ainda causa – e causou extensivamente no público presente na Sala São Paulo – comprova que os sentidos da obra artística ultrapassam o seu contexto histórico. Polissêmica, a arte verdadeira incorpora sentidos à medida que percorre tempos, espaços, e perscruta os indivíduos. 
Carmina Burana traduz-se por “Canções de Beuern”, e faz alusão a um conjunto de cerca de 250 textos e poemas encontrados num convento situado no município de Benediktbeuern, na Baviera, escritos entre os séculos XI e XIII. São textos escritos, sobretudo, em latim medieval, no entanto também em francês antigo, provençal e em latim macarrônico (que misturava o latim ao alemão e ao francês), acenando para a formação e o desenvolvimento das línguas nacionais, que neste período estavam se elevando a idiomas de cultura. 
No plano temático, há na obra a retomada de figuras míticas do medievo como, por exemplo, a “Branca Flor”, que a tradição – e Richard Wagner neste roldão – depois associaria à personagem de Isolda. A obra de Orff, portanto, faz uma recuperação histórica importante, e o fato de acenar às massas tanto quanto à alta cultura não é motivo de demérito, senão da sagacidade do compositor de perceber a ascensão da cultura de massas naquele momento histórico. 
Embora a arrepiante O Fortuna, Imperatrix Mundi explicite de forma trágica o papel do destino de elevar e destruir reputações ao seu bel prazer, tornando inconstantes a sorte e a felicidade, a obra Carmina Burana é composta por canções de amor e por poemas em grande medida cômicos e eróticos, que procuram flagrar a dimensão cíclica da vida e a primavera (e os seus apelos sensuais) vencendo os rigores do inverno. 


A peça demanda coros numerosos, cujos papéis são preponderantes. Na Sala São Paulo, a obra foi desempenhada pelo Coro da OSESP e pelos Coros Acadêmico e Infantil da instituição, em ótima forma, preparados, respectivamente, por William Coelho, Marcos Thadeu e Erika Muniz. Há, além disso, três vozes protagonistas, interpretadas pela soprano Gabriella Pace, pelo tenor Jabez Lima e pelo baixo-barítono Licio Bruno. A batuta foi empunhada com excelência pelo regente Hilo Carriel, que extraiu da OSESP e dos demais intervenientes um grande equilíbrio musical e dramático. 
Dentre os solistas, há na obra uma presença preponderante do baixo-barítono, associado invariavelmente a um desses monges retratados nesses poemas: monges vagabundos voltados mais aos prazeres da carne que à elevação espiritual. Artista de grande e sólida experiência, Licio Bruno desincumbiu-se com segurança do papel, ressaltando o seu caráter satírico, dramático e passional – mais que uma soma aleatória de canções, há uma curva dramática na obra que Bruno conseguiu ressaltar. 
Ao tenor Jabez Lima cabe uma das árias mais difíceis do repertório concertante de todos os tempos. Lima faz emergir o caráter profundamente imagético da canção denominada Olim lacus colueram (“Outrora morei num lago”, segundo a tradução presente no programa), que apresenta os lamentos de um outrora belo cisne que se vê sendo assado e prestes a ser devorado por dentes assassinos. 
Passados os descalabros e périplos dos monges errantes e os rigores do inverno, a soprano traz um sopro de brisa primaveril. Cantora com mais de duas décadas de experiência, Gabriella Pace se entrega à jovenzinha que acaba de descobrir o amor – e o faz de forma magnética, seja do ponto de vista da técnica vocal, fazendo emergir os agudos e os pianíssimos da partitura, seja cenicamente, sozinha ou interagindo com os colegas (destaque-se sobretudo a sua generosidade quando ela interage com o coro infantil). Sem as amarras da partitura, Pace mostra que os liames entre as apresentações concertantes e operísticas são menores do que imaginamos. 
Carmina Burana transborda os seus tempo e espaço históricos. A grande qualidade do conjunto que a apresentou na Sala São Paulo explicitam que ela é arte maior, para além do nefasto contexto sócio-político em que emergiu. Fotos: redes sociais da OSESP.

“Dido e Eneas” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em
Notas Musicais a 15 mar. 2023. 

Dido and Aeneas (1689) 
Música: Henry Purcell 
Libreto: Nahum Tate 
Ópera com um prólogo e três atos. 
Theatro São Pedro, 10 de março de 2023 
Direção musical: Luís Otávio Santos 
Direção cênica: William Pereira 
Dido: María Cristina Kiehr, soprano 
Belinda: Marília Vargas, soprano 
Eneas: Johnny França, barítono 
Feiticeira: Homero Velho, barítono 
Primeira bruxa: Daiane Scales, soprano 
Segunda bruxa/segunda mulher: Ludmilla Thompson, soprano 
Marinheiro/spirit: Jabez Lima, tenor 
Orquestra do Theatro São Pedro 

Henry Purcell surgiu num flash no paulistano Theatro São Pedro ao longo da semana passada. Uma semana é tempo demasiado curto para a exibição da única ópera do compositor inglês – uma das obras-primas do estilo barroco, o amor maior desta que vos escreve. 
A historiografia da área situa a produção de Dido e Eneas em fins do século XVII, mais especificamente entre 1684 e 1689. Escrita em colaboração com o libretista Nahum Tate, o qual se baseia em sua peça teatral Brutus of Alba, or The Enchanted Lovers (datada de alguns anos antes), Dido e Eneas é provavelmente encenada pela primeira vez ou na corte inglesa, ou numa escola para meninas fidalgas daquele país. Os eruditos inclinam-se a essa segunda hipótese, corroborada por Ligiana Costa (autora do ótimo ensaio que integra o programa de sala do espetáculo disponível no site do teatro), considerando-se a realidade “essencialmente feminina” encenada na obra; a exclusão, do libreto, de cenas que demandariam um elenco profissional; e a presença exígua, nele, de personagens masculinos. 
A ausência de certezas no que diz respeito a essa ópera não é incomum à produção barroca, já que, ainda segundo Ligiana Costa, porção substancial das partituras deste período se perderam, restando felizmente os libretos, graças à sua impressão e comercialização (costume de muitos séculos que, lamentavelmente, vem sendo deixado de lado, dado que libretos impressos são invariavelmente substituídos, hoje em dia, pelos digitais, que sabe-se lá por quanto tempo ainda estarão disponíveis em repositórios virtuais). Por esse motivo, não resta partitura saída das mãos de Purcell – a mais antiga partitura de que se tem notícia de Dido e Eneas foi produzida, segundo consta, décadas depois da encenação primeva da ópera. 
A obra de Purcell aborda um episódio capital da Eneida, epopeia de Virgílio datada do século I a.C. Após a destruição de Troia, cuja guerra é narrada na epopeia grega de Homero (século VIII a.C.), Eneias consegue fugir para fundar uma nova civilização. Antes, no entanto, de chegar àquilo que se tornaria a Itália, ele aporta em Cartago. Por obra de Vênus (a deusa do amor) e de um dos seus arqueiros cegos, Eneas e Dido (a rainha de Cartago) são flechados. Eneas, no entanto, não finca chão em Cartago: acaba por abandonar Dido, que morre. A cena do apaixonamento é relatada de forma colorida no prólogo da ópera de Purcell, no qual Febo, o deus da música e da poesia, também conhecido como o deus-sol – tanto que cabe a ele cavalgar a carruagem solar –, é responsável por iluminar aquelas personagens às quais caberiam o amor e a ruína, colocando-as diante do público. À esquerda, Maria Cristina Kiehr (Dido). 
A descrição musical da chegada de Eneas a Cartago e do apaixonamento entre ele e Dido torna-se cena muda na montagem paulistana da ópera: no palco escuro e nu em cujas extremidades encontram-se Dido e a dançarina que, ao longo do espetáculo, encena o seu duplo, uma flecha de néon atinge a intérprete da rainha. 
A substituição proposta dialoga com encenações do repertório barroco. As dificuldades para se acessar os materiais concernentes à encenação primeira das obras daquele período abrem espaço, nos dias de hoje, à desconstrução, à reconstrução, à (re)invenção. Dez anos atrás, o parisiense Théâtrè des Bouffes du Nord encenou uma obra-prima de espetáculo, Le Crocodile trompeur/Didon et Énée, baseado na ópera de Purcell e noutros materiais – espetáculo disruptivo e passional, totalmente em consonância com essa história de amor desatinada, já que nascida por obra de um acólito cego da deusa do amor. Na montagem paulistana, os intérpretes de Dido e Eneas são pautados pela contenção (eu diria que por um quase que distanciamento), cabendo a paixão ao brilhante duo de bailarinos coreografado por Luiz Fernando Bongiovanni, os quais representaram os duplos do casal. 
A segura direção cênica de William Pereira, em consonância com o talento da cenógrafa Giorgia Massetani, inventam uma Cartago que oscila entre o realismo dos panoramas em moda no Brasil ao longo do século XIX (época em que o estilo barroco é redescoberto) e a arte contemporânea. Ligiana Costa situa a artista plástica Regina Silveira como influência importante da montagem. Efetivamente, os painéis de tecido representando secções de edifícios de influências greco-romanas, que são retirados à força, pelo corpo de baile, das molduras que os enquadram, quando Eneas abandona Dido e Cartago está prestes a ser destruída, remetem à desconstrução da tradição levada a efeito por Silveira (vide uma de suas mais recentes obras, Cascata, que em 2020 reproduziu, nas paredes do paulistano Paço das Artes, dezenas de cópias das janelas daquele edifício, desmontando-as e as distorcendo, de modo a colocar em debate o papel que desempenham na sociedade as janelas reais ou virtuais). 

Marília Vargas, Johnny França e María Cristina Kiehr 

O flerte entre a recuperação realista da tradição e a desconstrução que é a tônica da contemporaneidade ocorre, na encenação paulistana de Dido e Eneas, também no âmbito dos figurinos de Olintho Malaquias, que faz convergir túnicas de influências greco-romanas, as quais calcam a ópera nos arredores do momento histórico em que escreveu Virgílio, com estampas camufladas associadas contemporaneamente ao exército. As moças em flor do séquito de Dido (membros do belíssimo coro que foi um dos principais êxitos desta montagem, dirigido com qualidade por Marília Vargas, a quem também cabe na encenação o papel de Belinda, irmã de Dido) trajam fluidas túnicas brancas. Enquanto isso, Eneas e seu exército usam vestes militares. Encenam-se igualmente aqui, como se antevê, os papéis sociais desempenhados historicamente por homens e mulheres. Entre uns e outros estão a Bruxa e o seu séquito (cujas fantasmagorias determinarão o descaminho de Eneas, a morte de Dido e a destruição de Cartago), que vestem negro e são contornados por uma iluminação calcada nas sombras. 
Figurino, cenografia e encenação remetem à tradição barroca, feita da ambivalência de luzes e sombras. Isto se dá igualmente no que concerne à prodigiosa iluminação de Caetano Vilela, que, se tinge de rubro a bruxa e a sua coorte, torna Dido etérea ao coá-la por uma luz translúcida, dando transcendência à sua morte. 
Por meio da regência do admirável Luís Otávio Santos (que também se divide entre a execução do cravo e do violino), um dos mais importantes artistas voltados à interpretação historicamente informada do estilo barroco no Brasil, o Theatro São Pedro faz emergir os resultados das pesquisas dessa tradição levadas à cabo nas últimas décadas, sem abrir mão da reinvenção.