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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Rusalka no Rio de Janeiro: suavidade e sanha num espetáculo excepcional


Em 1901, Antonín Dvořák dá à luz um lúgubre conto de fadas, Rusalka. O libreto, de autoria de Jaroslav Kvapil, dialoga sobretudo com The Little Mermaid, de Hans Christian Andersen, e Undine, de Friedrich de la Motte Fouqué, escritos nas primeiras décadas de 1800. A história do enlace impossível entre uma criatura aquática e um homem poreja um ceticismo tributário desse início do século XIX. Se tais entes, oriundos das mitologias germânica e escandinava, seguiram vívidos na cultura ocidental (aproveitados por homens como, por exemplo, Richard Wagner e Maurice Maeterlinck), o desenvolvimento técnico galopante que ocorreria até fins do século XIX desmantelaria qualquer idealismo; o desejo de união dos opostos permaneceria irrealizável. 
Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia. 
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático. 
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste. 
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua. 
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama. 
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular. 
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina. 
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha. 
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba. 
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas. 
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos. 
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos. 
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!

terça-feira, 28 de maio de 2024

“Carmina Burana” na Sala São Paulo


Crítica publicada em Notas Musicais a 16 fev. 2024.
Os concertos da pré-temporada da OSESP ocorreram de 8 a 10 de fevereiro de 2024. 

A Sala São Paulo começou os seus trabalhos de 2024 em grande estilo, com um concerto de pré-temporada em que figurou a célebre Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff, apresentada para plateias transbordantes, beneficiadas pelos preços populares da entrada (iniciativa fundamental para a democratização do acesso). 
A obra é invariavelmente precedida pelo ressaibo crítico, em grande medida justificável, já que foi escrita em pleno Terceiro Reich (1936), que arrastaria a Alemanha à 2ª Grande Guerra e protagonizaria o holocausto judaico, um dos maiores genocídios da história da humanidade. 
Na análise que fez da apresentação da obra ocorrida no Theatro Municipal de São Paulo em dezembro passado, Fabiana Crepaldi apontou o esforço da obra de caminhar a contrapelo daquilo que os nazistas consideravam arte “degenerada”, motivo pelo qual ela teria ganhado a aprovação do governo. Já no programa da Sala São Paulo, Márcio Seligmann-Silva, professor de literatura da Unicamp e crítico literário especialista em estudos do trauma – sobretudo concernente a este momento histórico –, sublinha a monotonia musical e temática presente na obra (repetição de poucas notas e frases, presença destacada da percussão, ausência de contraponto, presença de figuras míticas medievais) como denotativa de um programa estético voltado à distração. Ao transmitir símbolos de heroicidade numa linguagem musical acessível às massas, a obra de Orff acabaria por dialogar com o ideário político encabeçado por Adolph Hitler. 
Nas décadas seguintes à guerra, Carmina Burana imprime-se indelevelmente no imaginário ocidental, apresentada – especialmente O Fortuna, Imperatrix Mundi, canção que abre e fecha a cantata – num sem número de produções, de filmes a comerciais de televisão. Passados quase 100 anos e alterado o contexto histórico, o maravilhamento que a peça ainda causa – e causou extensivamente no público presente na Sala São Paulo – comprova que os sentidos da obra artística ultrapassam o seu contexto histórico. Polissêmica, a arte verdadeira incorpora sentidos à medida que percorre tempos, espaços, e perscruta os indivíduos. 
Carmina Burana traduz-se por “Canções de Beuern”, e faz alusão a um conjunto de cerca de 250 textos e poemas encontrados num convento situado no município de Benediktbeuern, na Baviera, escritos entre os séculos XI e XIII. São textos escritos, sobretudo, em latim medieval, no entanto também em francês antigo, provençal e em latim macarrônico (que misturava o latim ao alemão e ao francês), acenando para a formação e o desenvolvimento das línguas nacionais, que neste período estavam se elevando a idiomas de cultura. 
No plano temático, há na obra a retomada de figuras míticas do medievo como, por exemplo, a “Branca Flor”, que a tradição – e Richard Wagner neste roldão – depois associaria à personagem de Isolda. A obra de Orff, portanto, faz uma recuperação histórica importante, e o fato de acenar às massas tanto quanto à alta cultura não é motivo de demérito, senão da sagacidade do compositor de perceber a ascensão da cultura de massas naquele momento histórico. 
Embora a arrepiante O Fortuna, Imperatrix Mundi explicite de forma trágica o papel do destino de elevar e destruir reputações ao seu bel prazer, tornando inconstantes a sorte e a felicidade, a obra Carmina Burana é composta por canções de amor e por poemas em grande medida cômicos e eróticos, que procuram flagrar a dimensão cíclica da vida e a primavera (e os seus apelos sensuais) vencendo os rigores do inverno. 


A peça demanda coros numerosos, cujos papéis são preponderantes. Na Sala São Paulo, a obra foi desempenhada pelo Coro da OSESP e pelos Coros Acadêmico e Infantil da instituição, em ótima forma, preparados, respectivamente, por William Coelho, Marcos Thadeu e Erika Muniz. Há, além disso, três vozes protagonistas, interpretadas pela soprano Gabriella Pace, pelo tenor Jabez Lima e pelo baixo-barítono Licio Bruno. A batuta foi empunhada com excelência pelo regente Hilo Carriel, que extraiu da OSESP e dos demais intervenientes um grande equilíbrio musical e dramático. 
Dentre os solistas, há na obra uma presença preponderante do baixo-barítono, associado invariavelmente a um desses monges retratados nesses poemas: monges vagabundos voltados mais aos prazeres da carne que à elevação espiritual. Artista de grande e sólida experiência, Licio Bruno desincumbiu-se com segurança do papel, ressaltando o seu caráter satírico, dramático e passional – mais que uma soma aleatória de canções, há uma curva dramática na obra que Bruno conseguiu ressaltar. 
Ao tenor Jabez Lima cabe uma das árias mais difíceis do repertório concertante de todos os tempos. Lima faz emergir o caráter profundamente imagético da canção denominada Olim lacus colueram (“Outrora morei num lago”, segundo a tradução presente no programa), que apresenta os lamentos de um outrora belo cisne que se vê sendo assado e prestes a ser devorado por dentes assassinos. 
Passados os descalabros e périplos dos monges errantes e os rigores do inverno, a soprano traz um sopro de brisa primaveril. Cantora com mais de duas décadas de experiência, Gabriella Pace se entrega à jovenzinha que acaba de descobrir o amor – e o faz de forma magnética, seja do ponto de vista da técnica vocal, fazendo emergir os agudos e os pianíssimos da partitura, seja cenicamente, sozinha ou interagindo com os colegas (destaque-se sobretudo a sua generosidade quando ela interage com o coro infantil). Sem as amarras da partitura, Pace mostra que os liames entre as apresentações concertantes e operísticas são menores do que imaginamos. 
Carmina Burana transborda os seus tempo e espaço históricos. A grande qualidade do conjunto que a apresentou na Sala São Paulo explicitam que ela é arte maior, para além do nefasto contexto sócio-político em que emergiu. Fotos: redes sociais da OSESP.