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Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa.
“Don Carlos”, gloriosamente ressurgido na Bastilha, numa montagem controversa do polonês Krzysztof Warlikowski (vaiada por uma metade da sala e aplaudida entusiasticamente por outra, na qual eu – que a vi no dia 13 de outubro – me incluía) vem para corroborar a regra. A encenação traz a trama seiscentista a uma modernidade kubrickiana, delirante. Se abandona o caráter histórico do libreto, tem o mérito de situar a ação num solo poroso que estabelece liames indiscutíveis com a nossa realidade, em âmbito transnacional; daí a emoção que me tomou enquanto eu a via.
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Don Carlos (Jonas Kaufmann) e Rodrigues (Ludovic Tézier) |
Transposições e fissuras já marcam o libreto que Joseph Méry e Camille du Locle escreveram em 1867, a partir de um drama de Friedrich Schiller que antecedera em dois anos a Revolução Francesa: “Don Karlos, Infant von Spanien”, de 1787. Schiller mergulha no passado com os olhos daquele presente pré-revolucionário. Os conflitos concernentes à vida de Carlos – príncipe espanhol de meados do XVI que perde a noiva para o pai (a francesa Elisabeth de Valois é dada em consórcio ao rei em troca do fim da Guerra Italiana) transformam-se, na pena do escritor alemão, em mote à verbalização de libelos anti-monárquicos e em favor da liberdade.
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O Don Carlos histórico Retrato de Sofonisba Anguissola, 1560 |
Já Verdi nutre o drama Romântico da poética do melodrama. O desvario amoroso de Carlos frente à mulher que lhe fora prometida, e que ele terminantemente perdera, dá lugar a um embate mais premente: a luta pela liberdade da população de Flandres, que o rei tiranizava. Quase no desfecho da trama, Elisabeth e Carlos cantam a sublimação de seu amor na entrega de ambos à luta pela libertação do povo oprimido; a transcendência do amor na morte e na vida eterna – as personagens seiscentistas são regidas pela moral burguesa, à qual o sentimento de honra se sobrepõe à realização carnal.
O amor é, todavia, o lume que conduz à revolução. Atravessa a trama o tema da liberdade, que os amigos Carlos e Rodrigues primeiro entoam à guisa de oração:
Leitmotiv fundamental de “Don Carlos”, o tema acompanha, no plano sonoro, o amadurecimento paulatino do jovem príncipe, em seu percurso de romântico desesperançado a agitador social – transformação operada por obra do amigo que, por sua vez, agita a sua alma, fazendo-lhe enxergar, para além de seu coração despedaçado, a expoliação empírica de todo um povo ao qual ele poderia ser útil. O Don Carlos histórico, príncipe cuja vida fora marcada pela instabilidade mental, era personagem de pouca monta perto do homem valoroso no qual Schiller e Verdi o transformam.
Dieu, tu semas dans nos âmes/ un rayon des mêmes flammes,/ le même amour exalté,/ l’amour de la liberté!
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É tal tema que tecerá a maravilhosa e dilacerante despedida dos amigos, no cárcere onde Don Carlos é cativo, no qual um já moribundo Rodrigues lhe lembrará que está a morrer por si, cobrando do amigo, portanto, que ele não abandone o sonho sonhado em conjunto. E é em busca desse sonho que Carlos se reunirá uma última vez com a sua amada Elisabeth, e malgrado ambos cantem o chaste amour que as amarras sociais os obrigam a manter, serão apanhados e massacrados pelo tirano.
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX .
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX .
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Na montagem de Warlikowski, Philippe II é o Saturno de Goya, a devorar o próprio filho |
A obra já abre numa tonalidade sombria: o coro dos cortadores de lenha, que na versão original clama pelo fim da guerra, se endereça, aqui, não apenas à rainha, mas também ao público. Perde o caráter espetacular da grande ópera para se transformar num coro trágico, que atravessa “Don Carlos” como o decalcamento dos milhões de indivíduos que as guerras deslocam. Don Carlos conhecerá Elisabeth, a noiva prometida, para imediatamente perdê-la.
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Jonas Kaufmann e Sonya Yoncheva, Don Carlos e Elisabeth |
O libreto original situa a cena na floresta de Fountainbleau, mas Warlikowski dá-lhe um caráter onírico, que mistura a gélida floresta francesa – momentaneamente aquecida pelo fogo que Don Carlos acende à amada Elisabeth, e que brota de sua alma (e do belo rosto moreno de Jonas Kaufmann) – ao gabinete de trabalho de Carlos, no qual um busto do avô Charles V repousa como lúgubre invocação da permanência da tradição sobre o progresso. Ao fim e ao cabo, a felicidade não fora mais que um sonho que n’a duré qu’un jour, constatação dos amantes malfadados que é leitmotiv da obra.
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No entanto, em meio aos paradoxos de uma trama que oscila entre o progresso e o atraso impõe-se a música; a partitura de Verdi carregando-nos em turbilhão. Um espetáculo operístico bem desempenhado é como uma cachaça que nos embriaga, uma febre que nos obnubila. O “Don Carlos” francês, levado a cabo por um elenco dos deuses e conduzido pelo bravo Phillipe Jourdain, foi uma jornada coalhada de erotismo, romantismo e desvario.
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De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe.
Em estado de graça, no que toca à voz e ao jogo cênico, Ludovic Tézier sublinhou a ambiguidade de seu Rodrigues, cuja ascendência sobre o príncipe alavanca a ação e determina, num só tempo, a tomada de consciência política do amigo (e a intervenção deste no Flandres) e a perdição do trio. O timbre de Sonya Yoncheva construiu uma perfeita terceira ponta deste triângulo amoroso. Sua voz sensual extravasa a armadura puritana com que a sociedade veste a sua personagem: o desejo, força indômita, leva de roldão as barreiras morais e sociais; o casamento real não consegue apagar a mulher apaixonada do seio da rainha.
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social).
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social).
Um lampejo do Olimpo materializado, assim, diante de nossos olhos, leva-nos a pensar na kantiana finalidade sem fim da obra de arte; no poder que a arte tem de nos abalar desde as entranhas, de nos ruir e reedificar. Briguei anos a fio com Verdi, mas a sua intensidade dramática acabou por me render. Se encenada com rigor, a sua obra hoje me parece, pela gama das contradições que encerra, o espaço modelar para operar revoluções.
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Para os interessados, a íntegra da montagem, exibida pela "Arte", está online.
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