Antonio Arnoni Prado, professor demasiado importante e querido, dizia-nos que uma obra de arte é estrela numa constelação: ao surgir, rearranja o espaço; passa a refletir na relação com aquelas que estão em derredor, emprestando-lhes seu brilho, tomando o brilho delas. Já nós, céus em miniatura (a analogia, mais picaresca que arrogante, é minha; perdoem-na), não somos menos buleversados e rearranjados quando uma obra de gênio nos atravessa.
Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa.
Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa.
“Don Carlos”, gloriosamente ressurgido na Bastilha, numa montagem controversa do polonês Krzysztof Warlikowski (vaiada por uma metade da sala e aplaudida entusiasticamente por outra, na qual eu – que a vi no dia 13 de outubro – me incluía) vem para corroborar a regra. A encenação traz a trama seiscentista a uma modernidade kubrickiana, delirante. Se abandona o caráter histórico do libreto, tem o mérito de situar a ação num solo poroso que estabelece liames indiscutíveis com a nossa realidade, em âmbito transnacional; daí a emoção que me tomou enquanto eu a via.
Don Carlos (Jonas Kaufmann) e Rodrigues (Ludovic Tézier) |
Transposições e fissuras já marcam o libreto que Joseph Méry e Camille du Locle escreveram em 1867, a partir de um drama de Friedrich Schiller que antecedera em dois anos a Revolução Francesa: “Don Karlos, Infant von Spanien”, de 1787. Schiller mergulha no passado com os olhos daquele presente pré-revolucionário. Os conflitos concernentes à vida de Carlos – príncipe espanhol de meados do XVI que perde a noiva para o pai (a francesa Elisabeth de Valois é dada em consórcio ao rei em troca do fim da Guerra Italiana) transformam-se, na pena do escritor alemão, em mote à verbalização de libelos anti-monárquicos e em favor da liberdade.
O Don Carlos histórico Retrato de Sofonisba Anguissola, 1560 |
Já Verdi nutre o drama Romântico da poética do melodrama. O desvario amoroso de Carlos frente à mulher que lhe fora prometida, e que ele terminantemente perdera, dá lugar a um embate mais premente: a luta pela liberdade da população de Flandres, que o rei tiranizava. Quase no desfecho da trama, Elisabeth e Carlos cantam a sublimação de seu amor na entrega de ambos à luta pela libertação do povo oprimido; a transcendência do amor na morte e na vida eterna – as personagens seiscentistas são regidas pela moral burguesa, à qual o sentimento de honra se sobrepõe à realização carnal.
O amor é, todavia, o lume que conduz à revolução. Atravessa a trama o tema da liberdade, que os amigos Carlos e Rodrigues primeiro entoam à guisa de oração:
Leitmotiv fundamental de “Don Carlos”, o tema acompanha, no plano sonoro, o amadurecimento paulatino do jovem príncipe, em seu percurso de romântico desesperançado a agitador social – transformação operada por obra do amigo que, por sua vez, agita a sua alma, fazendo-lhe enxergar, para além de seu coração despedaçado, a expoliação empírica de todo um povo ao qual ele poderia ser útil. O Don Carlos histórico, príncipe cuja vida fora marcada pela instabilidade mental, era personagem de pouca monta perto do homem valoroso no qual Schiller e Verdi o transformam.
Dieu, tu semas dans nos âmes/ un rayon des mêmes flammes,/ le même amour exalté,/ l’amour de la liberté!
É tal tema que tecerá a maravilhosa e dilacerante despedida dos amigos, no cárcere onde Don Carlos é cativo, no qual um já moribundo Rodrigues lhe lembrará que está a morrer por si, cobrando do amigo, portanto, que ele não abandone o sonho sonhado em conjunto. E é em busca desse sonho que Carlos se reunirá uma última vez com a sua amada Elisabeth, e malgrado ambos cantem o chaste amour que as amarras sociais os obrigam a manter, serão apanhados e massacrados pelo tirano.
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX .
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX .
Na montagem de Warlikowski, Philippe II é o Saturno de Goya, a devorar o próprio filho |
A obra já abre numa tonalidade sombria: o coro dos cortadores de lenha, que na versão original clama pelo fim da guerra, se endereça, aqui, não apenas à rainha, mas também ao público. Perde o caráter espetacular da grande ópera para se transformar num coro trágico, que atravessa “Don Carlos” como o decalcamento dos milhões de indivíduos que as guerras deslocam. Don Carlos conhecerá Elisabeth, a noiva prometida, para imediatamente perdê-la.
Jonas Kaufmann e Sonya Yoncheva, Don Carlos e Elisabeth |
O libreto original situa a cena na floresta de Fountainbleau, mas Warlikowski dá-lhe um caráter onírico, que mistura a gélida floresta francesa – momentaneamente aquecida pelo fogo que Don Carlos acende à amada Elisabeth, e que brota de sua alma (e do belo rosto moreno de Jonas Kaufmann) – ao gabinete de trabalho de Carlos, no qual um busto do avô Charles V repousa como lúgubre invocação da permanência da tradição sobre o progresso. Ao fim e ao cabo, a felicidade não fora mais que um sonho que n’a duré qu’un jour, constatação dos amantes malfadados que é leitmotiv da obra.
Por outro lado, “O Grande Inquisidor” é tanto ou mais vilão que Phillipe II – é a voz da igreja que pede ao rei a cabeça de Rodrigues e Carlos. Warlikowski, responsável por uma louvável atualização crítica desta ópera, sublinha-o, transformando a personagem num burocrata vestido de negro, ainda mais pernicioso porque usa a religião como moeda no jogo político.
No entanto, em meio aos paradoxos de uma trama que oscila entre o progresso e o atraso impõe-se a música; a partitura de Verdi carregando-nos em turbilhão. Um espetáculo operístico bem desempenhado é como uma cachaça que nos embriaga, uma febre que nos obnubila. O “Don Carlos” francês, levado a cabo por um elenco dos deuses e conduzido pelo bravo Phillipe Jourdain, foi uma jornada coalhada de erotismo, romantismo e desvario.
As vozes carregam o texto para altitudes insuspeitadas. Jonas Kaufmann, tenor a flertar cada vez mais intensamente com os abismos do barítono, constrói, com seu timbre num só tempo melancólico e doce, um príncipe no qual a lugubricidade e a ternura coexistem. Seu physique dialoga tanto quanto a sua voz com o timbre de barítono de Ludovic Tézier (Rodrigues). Os duetos de ambos entram em consonância numa mesma linha melódica que acena para uma identidade entre as personagens que ultrapassa a esfera da amizade. A intensidade do afeto que os une exacerba-se na cena do cárcere – je meurs pour toi, Rodrigues lembra Carlos –, ainda mais pungente nesta encenação já que ambos estão fisicamente separados, a voz sendo tudo o que resta para uni-los.
De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe.
De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe.
Em estado de graça, no que toca à voz e ao jogo cênico, Ludovic Tézier sublinhou a ambiguidade de seu Rodrigues, cuja ascendência sobre o príncipe alavanca a ação e determina, num só tempo, a tomada de consciência política do amigo (e a intervenção deste no Flandres) e a perdição do trio. O timbre de Sonya Yoncheva construiu uma perfeita terceira ponta deste triângulo amoroso. Sua voz sensual extravasa a armadura puritana com que a sociedade veste a sua personagem: o desejo, força indômita, leva de roldão as barreiras morais e sociais; o casamento real não consegue apagar a mulher apaixonada do seio da rainha.
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social).
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social).
Um lampejo do Olimpo materializado, assim, diante de nossos olhos, leva-nos a pensar na kantiana finalidade sem fim da obra de arte; no poder que a arte tem de nos abalar desde as entranhas, de nos ruir e reedificar. Briguei anos a fio com Verdi, mas a sua intensidade dramática acabou por me render. Se encenada com rigor, a sua obra hoje me parece, pela gama das contradições que encerra, o espaço modelar para operar revoluções.
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Para os interessados, a íntegra da montagem, exibida pela "Arte", está online.
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