quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (2/4)

Segunda da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Terceiro dia: 2 out. 2017, segunda-feira. 
Léontine noutro filme da série: Les Pétards de Léontine (1910). 
 Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
Seguem as Nasty Women. “Léontine”, heroína da Pathé e chefe de uma série cinematográfica oriunda da Desmet Collection, parece ter o dedo podre. Em Le Bateau de Léontine (1911), inunda a casa para criar um espaço navegável ao portentoso barco de brinquedo do pai. Ela encara a câmera ao final, tão perdida quanto divertida – e seca, já que se protegera em cima dos móveis para conduzir a embarcação no rio improvisado. Noutra fita, Léontine en apprentissage (1910), a jovem tenta em vão aprender um ofício, destruindo sucessivamente lojas, cozinhas e restaurantes. 
A seção convive com outras duas seções temáticas essencialmente diferentes, uma voltada à Primeira Grande Guerra, denominada The Effects of War, composta substancialmente por documentários rodados entre 1917 e 1920, portanto, no calor da hora, e um filme de ficção. Há um incontornável contraponto entre os – sobretudo – panoramas dos palcos do conflito, em ruínas (em especial a região do Danúbio e certas regiões francesas então recentemente liberadas) e das casualties dele oriundas (crianças desnutridas, mutilados). Cidadãos habitando restos de residências, presidiários refazendo plantações, soldados reconstruindo estradas destruídas. 
Em primeiro plano, olhando do distanciamento temporal, emerge o absurdo da guerra, sua recorrência com contornos tão semelhantes. Somos, enquanto público, irmãos do Brás Cubas de Machado de Assis, que desde um monte assiste ao infindável cortejo de misérias de todos os tempos, que se desdobra concomitantemente diante de seus olhos. Em meio à realidade fria, tomada in media res, com severidade e um fundo de otimismo, insere-se uma comédia como La paura degli aeromobili nemici (André Deed, 1915). Ao fim e ao cabo, o riso resta como salvação do espírito, frente ao caos incontornável. 
Le Coeur et les yeux (Emile Chautard, 1911), um dos filmes 
da seção For a better vision. 
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A outra seção, oriunda da Desmet Collection, compila um conjunto de filmes de 1910 a 1915 que giram em torno da cegueira (denomina-se For a better vision). As abordagens são variadas, mas podemos distinguir mais claramente dois contornos, o documental – que se esforça por fazer uma leitura “objetiva” do tema – e o melodrama. Um filme como Istituto per ciecchi a Bandung (1912-13), que aborda o conjunto de atividades ali desenvolvidas visando-se a integrar os deficientes visuais na sociedade (educação em braile, profissionalização, tratamento) – tratando-os, enfim, como sujeitos capazes –, vão ao encontro de um conjunto de filmes em que a perda da visão determina a incapacitação desses indivíduos, o idiotismo (em maior ou menor grau). 
Para além da cegueira trágica de Édipo, o qual fere os olhos na impossibilidade de encarar as suas faltas e o seu destino, esses homens aqui retratados são frutos de penas mais coitadistas. São descendentes da orfãzinha de Decourcelle e de outros tantos melodramaturgos, e fariam brotar, nas décadas seguintes, gente como o protagonista de A luz dos seus olhos, filme protagonizado por Cacilda Becker sobre o qual já tive a possibilidade de discutir neste blog (o link para a resenha encontra-se aqui). 
Trappola (1922)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A pérola do dia foi um filme autoreferencial denominado Trappola, uma obra-prima italiana de Eugenio Perego, de 1922, recentemente restaurada pela Immagine Ritrovata, com uma montagem sincopada, que revela a tonalidade cômica (goddardiana no uso recorrente do jump cut, poderíamos dizer, mas qualquer influência – se acaso houver – obviamente que caminha aqui na direção contrária). A obra é protagonizada por uma diva italiana cheia de carisma, Leda Gys (que em cena é Leda Bardi, estabelecendo-se uma crítica bem-humorada à analogia entre pessoa e personagem, em voga no cinema clássico). À certa altura, a mocinha – interna de um colégio de freiras – foge dali para ajudar a amiga a reconquistar o namorado que, apaixonado por uma atriz acrobata, resolveu ser ator de cinema. No set, a jovem zomba dos maneirismos da primadona à medida que encarna figurantes em produções diversas. Pela graça e despretensão – e leitura irônica que faz do métier, ao encetar um passeio pelos seus bastidores com olhos muito mais jocosos que embevecidos – será uma das principais obras da Giornate. O acompanhamento musical ficou a cargo de José Maria Serralde-Ruiz – o único músico hispano-americano do festival encontrou à obra uma tonalidade comicamente passional que passou o dia todo buscando. Sublinhou o humor e a graça daquelas personagens que até outro dia poucos de nós sabíamos que existiam. As revelações do cinema silencioso, (re)descoberto a cada novo esquadrinhar de arquivo. 

Quarto dia: 3 out. 2017, terça-feira.
O quarto dia da Jornada continuou a revelar westerns rodados ao redor do mundo (aka., na Europa e nos Estados Unidos, neste caso, na Itália e França). Entre eles, um protagonizado por Onésime, com o qual me encontrei primeiro ainda no Doutorado, em Onésime Vagabonde, filme-dentro-do-filme que Feuillade transforma, em Erreur Tragique (1913), no catalizador dos ciúmes do esposo pela mulher com quem recentemente se casara. Onésime sur le sentier de la guerre (1913) é a obra. 
Os highlights do dia para mim são, todavia, Die Bergkatze (de 1921, intitulado tolamente em português Beijos que se vendem), do (quase) sempre brilhante Ernst Lubitsch. Apresentado no “Cinemazzero” em sessão especial às escolas, a comédia não provocou muito riso entre as crianças – o humor sofisticado e ferino do diretor alemão não é talhado aos pequenos. Já eu me deliciei. A história é um desvario, que se estende à forma e ao fundo. Pola Negri, com seu sorriso de um milhão de dólares, é a bandoleira-chefe de um grupo que atua nas gélidas montanhas de um país qualquer (os tipos humanos postos em ridículo importam mais que a localização geográfica, porque são universais). 
O “Belo” de Die Bergkatze (1921)
Mulher-macho, Pola descobre-se à certa altura apaixonada pelo “Belo”, assim literalmente denominado pela película que procura mais pô-lo em ridículo que incensá-lo, terror do mulherio das zonas nas quais ele serve (o tipo é um militar). A cena de despedida do belo de seu habitat natural rumo às montanhas onde receberá de um superior um corretivo é impagável – na despedida, milhares de mulheres a chorarem; odes em sua homenagem e vinte crianças a acenarem-lhe lencinhos brancos: “Adeus, papai.” Lubitsch em seu melhor, venenoso e amoral. O rapaz, claro, se encontrará com a bandoleira, que o reduzirá a cinzas. Acaba se apaixonando por ele, e ambos choram e riem sua deleitosa desdita – como tão bem Lubitsch consegue fazer. Risos e lágrimas misturados, como sabe ser o mais encantador (para mim, claro – aqui é a subjetividade falando) cinema narrativo. 
A noite foi composta por duas sessões. A primeira, com uma obra de Victor Sjöström visualmente belíssima e coalhada da moral cristã que comparece em boa medida na cinematografia do autor (A Carruagem Fantasma, obra-prima de 1921, é o mais bem acabado exemplo): Vëm Domer? (1922). O cerne aqui é a culpa cristã, defendida religiosamente pelo artista, que leva a sua protagonista literalmente a um calvário: percebendo que o marido morreu ao tomar conhecimento do desejo homicida da esposa, ela acredita que deverá caminhar sobre o fogo sagrado (castigo típico do período inquisitorial, em que a história se passa) para aferir se Deus a perdoará. A “iluminação” da personagem se dá, no entanto, em prodígios cinematográficos – da paulatina descoberta dela (e de sua paulatina transfiguração, como consequência disto) de que o marido a vira, desde o espelho, preparar a taça fatal que ele nem chega a beber; até a simbólica crucificação dele, na porta banhada de luz. Ele se transforma no Cristo particular da esposa, e é quem ao cabo acaba por perdoá-la. Visada machista, além de tudo. 
A sessão triunfou musicalmente, com a presença de Neil Brand e Frank Bockius, no piano e bateria. Histórias assim derramadas precisam, para serem convincentes, de uma música ou que as mimetize, ou que caminhe a contrapelo, sublinhando pela ironia o absurdo do que é pregado. Os músicos escolheram o primeiro caminho. Trêmulos na bateria nos momentos de maior impacto do drama, e uma música de tonalidade melodramática fizeram-se ouvir. Não tenhamos vergonha do clichê, diria um dia mais tarde outro músico da Giornate, Thibaudeaut. 
Um pouco mais tarde, uma dobradinha de filmes franceses, Ménilmontant (Kirsanoff, 1926) e Fièvre (Delluc, 1921). Obras essencialmente diferentes, avant garde, com movimentos ágeis de câmera, decupagem rápida e avessas, em fundo e forma, à narrativa moralista clássica, representada pelo filme anterior. Mário de Andrade passa em filme em minha cabeça enquanto acompanho a história das jovens irmãs que perderam os pais e, vivendo no bairro popular que dá nome ao filme, amam o mesmo homem e são enredadas por ele. Os contornos melodramáticos terminam ali: a câmera convida os espectadores a perscrutarem, por meio dos rostos das protagonistas pegos em primeiríssimos planos, o torvelinho que lhes vai internamente. Para além de convencionalismos, emerge a busca do amor e do respeito, o desespero do abandono e a fome (a doçura transida do rosto da jovem mãe a tomar, agradecida, o pão que o estranho – tão pobre quanto ela – lhe dá, aponta que certas tramas são tão velhas quanto a esperança nutrida pelos corações humanos, daí a sua eficácia). 
Em seguida, o torvelinho faz-se carne em Fièvre, por meio dos casais que rodopiam no salão de certo bar do bas-fond parisiense. Na apresentação de cada personagem que frequenta o espaço, um misto de simpatia e ironia. E ao final, estamos todos compartilhando de seus desejos e destinos. Que diretor de mão-cheia é Delluc, e como a música é fundamental a essas sombras, oferecendo-lhes a voz de que elas tanto carecem – Stephen Horne e Romano Todesco criaram uma das sonoridades mais eficazes da Giornate, à altura da assertividade (ou comedimento emocional, pode-se dizer) francesa.

Um comentário:

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Abaixo, uma apreciação crítica sobre a música de "Trappola" escrita pela pena de seu autor, José María Serralde Ruiz:

En su estupenda serie de reseñas sobre la Le Giornate del Cinema Muto 2017 en Pordenone Italia, Danielle Carvalho hace alusión a mi música para la comedia de Perego con Leda Gys, "La Trappola" (1922); como parte de la selección de los 70 años de la Cinemateca Italiana. Me encantó leer el sentido "cómicamente pasional" que ha encontrado.
http://ofilmequeviontem.blogspot.mx/…/giornate-del-cinema-m…
Esa presentación ha sido una de las más bellas y latosas, justo como Leda, que haya tocado para el Festival: la película es veloz, brincona y ha perdido secciones; sin olvidar que hay una escena de baile sobre la mesa que fue censurada y de la cual se alcanzan a apreciar unos cuantos fotogramas.
Escondí unas referencias musicales a Rossini, alusiones al Tríptico de Puccini. Sin olvidar una tarantela que me inventé en mi peor estilo romagno :) (for the record: I spoke to David Litofsky after the screening, great collector and sensitive person; and yes, as he always does with most of our musical quotes and easter-eggs, he identified the tarantellas and italian references).