Pesquisadora de cinema silencioso que sou, raramente abordo-o neste blog. Já diz o ditado: Em casa de ferreiro o espeto é de pau... As notas a seguir, escrivinhadas ao correr da intensa Jornada de Pordenone (que ocorreu entre 30 de setembro e 7 de outubro), cumprem nem que seja de passagem este objetivo. Lamento não ter realizado esforço análogo antes: depois de oito dias intensos de projeções, quinze horas por dia, filmes, atores, diretores, enredos embaralham-se em nossa mente. Uma mostra de cinema é como um porre – aproveita-se tudo intensamente, e dias depois não se tem mais que uma ideia geral do que aconteceu. Ao contrário dos porres, no entanto (sem querer desmerecê-los...), a experiência se instala num canto de nosso inconsciente e emerge, quando menos esperamos. As notas dividem-se em quatro postagens, publicadas ao longo desta semana. O Catálogo do festival pode ser acessado aqui.
Primeiro dia: 30 set. 2017, sábado.
Dia de chegada à cidadezinha que fica a uma hora de Veneza. A instalação na cidade, o reencontro com almas-gêmeas do ofício que a gente só vê uma vez por ano, a inscrição coincidem com o início da programação cinematográfica, que acaba sendo em parte deixada de lado. Consegui assistir à sessão denominada Origini Del Western 3 (que dá continuidade ao programa iniciado no ano passado), conjunto de filmes franceses rodados entre 1911 e 1913, dirigidos em sua grande parte por Jean Durand, que mimetizam o western norte-americano sem intenções jocosas aparentes (ainda que bem-humorados) – antes, desejando abarcar o público ianque, que tanto amava o gênero.
Le Revolver matrimonial (1912) é um bom exemplo: a atriz costumeira desse conjunto de fitas, Berthe Dagmar, mulher de rosto anguloso e nariz aquilino – distante do padrão clássico de beleza – é transformada na moçoila namoradeira gauche, que todos os empregados do seu tio desejam, mas que se casará com o cowboy norte-americano recém-contratado (casamento apenas formalizado porque o ministro é pego literalmente no laço pelo jovem eufórico). Repleta de carisma, a atriz ao invés de ser posta em ridículo pelo seu rosto pouco convencional (como era costume no grosso da produção cinematográfica de então) acaba por ganhar as graças o público, tornando-o conivente com seus infortúnios de moça apaixonada.
Esses westerns recém-restaurados (ou recém-vindos a lume) atestam a assertiva de Bazin, de que uma pequeniníssima porção das obras desse gênero basilar da cinematografia norte-americana havia sobrevivido ao tempo. O fato de esses exemplares terem sido rodados na França ajuda a complexificar o quadro, leva-nos a pensar nas trocas mútuas ocorridas entre ambos os países. Ainda a título de comparação, cinematograficamente esses filmes são rodados em planos longos, planos gerais, investindo-se nos gestos largos, características típicas do cinema francês de então.
Na seção “Riscoperte”, Redescobertas, um conjunto de fitas (várias delas vistas brevíssimas, à maneira daquelas rodadas pelos Lumière) tematizam um assunto sui generis: as mulheres aviadoras. É curioso encontrar, neles, a presença das mulheres tomadas em planos paralelos, ora ao lado das máquinas voadoras que pilotam, ora posando com graciosos bichos de estimação (cachorros – como a Lillian Gish do Nascimento da Nação – ou macaquinhos). Metonimicamente, busca-se reforçar uma feminilidade que caminha a contrapelo dos trajes de aeronauta e do esporte tipicamente masculino.
O filme que fecha o programa, L’Autre Aile (Henri Andréani, 1924), obra francesa recentemente restaurada, trata de modo primoroso desta ambivalência, sendo ainda um modelar exemplar de cinema a contar cinematograficamente uma história. A mulher (Marthe Ferrare, ótima) perde o homem que ama para a velocidade, essa sanha moderna. O filme trata com ambiguidade a nova mania desportiva dos muito ricos, num só tempo a adulando e censurando. A multidão vê os desportistas se aproximando, mas a jovem apenas faz observar os aviadores transmutados em soldados de César, a marcharem triunfantes para a morte. O namorado perecerá, e ela vai até o corpo como se a movesse uma força invisível, não esboça qualquer reação. É o fogo que o consumiu que ela terá dali por defronte dos olhos – o fogo ou a hélice do avião em ruínas, que rodam num torvelinho diante de si. Procurando vingá-lo da morte e ser mais forte que o ar, ela ato-contínuo ingressará no esporte.
Segundo dia: 1 out., domingo.
Mulheres fortes – a Giornate deste ano está repleta delas. Uma seção que atravessa o festival é denominada Nasty Women, mulheres más/ vis/ antipáticas/ desagradáveis/ torpes (mesmo quando o enquadramento histórico do nosso gênero é problematizado, acabamos por ser classificadas segundo estereótipos...). Compostas, sobretudo, por slapstick comedies, as mulheres ali depreendidas vão além dos rótulos mais comezinhos de “ingênua” e de “vampiras” – aliás, como corresponde ao gênero cômico, ironizam-nos. Mulheres que ultrapassam o rótulo de pureza e de candidez que a cinematografia clássica lhes cola (na esteira de outras artes e gêneros, como o teatro e o folhetim).
Os filmes dessa seção cumprem um recorte temporal de 1898 a 1917. Ironizam o status quo social, ao qual essas mulheres procuram em vão se encaixar: tentam encontrar um emprego honesto ou encontrar brinquedos cabíveis ao “sexo frágil”, mas não conseguem, já que parecem portadoras do infortúnio. Uma das fitas ironiza o desvelo exagerado que certos donos têm por seus animais de estimação:
The Devil's Pawn (1918) |
Depois de tiranizar um cachorro e ser devidamente punida pelo patrão – que o convida à casa e à mesa familiar –, a jovem é tomada de um apaixonamento instantâneo e exagerado pelos bichos, carregando para ali todos aqueles com os quais ela cruza pela rua – gatos, cachorros, patos, um burro... A slapstick é um lugar modelar para a negação disruptiva do status quo. Os degraus da loucura são galgados rumo ao clímax: os patrões chamam a jovem à razão quando a casa está prestes a desabar, desenlace catártico.
Por trás dessas fêmeas descabeçadas está a indústria cinematográfica de uma sociedade patriarcal, podemos pensar. Viajemos até o grande filme do programa: The Devil’s Pawn (Victor Janson, Eugen Illés, [+ Paul Ludwig Stein?], 1918), protagonizado por uma Pola Negri já tocada pelo gênio, ainda que muito moça, ainda em sua fase europeia. Rodado na Alemanha, o filme é exasperante. Negri é a jovem judia russa que decide, após a morte do pai, partir da cidadezinha natal a S. Petersburgo para frequentar a universidade.
The Devil's Pawn (1918) |
Ali chegando, é proibida de ficar, a menos que adquira the yellow ticket, chancela ambígua: entregue às prostitutas, dava-lhes liberdade de circulação na mesma medida em que fomentava o controle social.
Rodado no local onde se situaria o Gueto de Varsóvia, o filme parece visionário, o passe amarelo assemelhando-se à estrela de Davi que marcaria anos depois a comunidade israelita e acabaria por decidir o seu destino. O filme acaba formatado na moldura convencional do melodrama. Um conjunto de coincidências (a chave do “destino” melodramático) levam a moça a se matricular na universidade utilizando o nome da irmã morta do ex-tutor, que descobre a fraude e, ao reencontrar a moça, acaba por lhe revelar um segredo que lhe fora contado pelo pai adotivo dela: ela na verdade era filha do médico do hospital universitário onde era atendida. Detalhe: a jovem tenta se suicidar porque o rapaz de quem ela gosta descobre que ela é portadora do tal yellow ticket. Procura mimetizar a morte da mãe, médica estudiosa que, abandonada pelo namorado (e pai da moça), comete suicídio. O papel assertivo da mulher na sociedade patriarcal é conquistado com sangue, é o que mostram as histórias da mãe e da filha. Negri desempenha ambos os papéis com sutileza, plenamente convincente como as mulheres que se preocupam mais com o intelecto que com os dotes físicos.
A Norway Lass (1919) Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36 |
Num dia voltado às mulheres, vale a menção um belo filme sueco rodado cinco anos antes do brilhante Gösta Berling’s Saga (Mauritz Stiller, 1924), e da mesma estirpe, A Norway Lass (Synnöve Solbakken, John W. Brunius, 1919), romance de formação em 7 atos (a divisão esboçada acena para a relação que a história estabelece com o teatro), trajetória do jovem Synnöve Solbakken (interpretado por Lars Hanson na idade adulta) da “barbárie” à “civilização”. Filme túrgido e belo como um romance de Balzac.
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