No começo do mês passado, esse bicho do mato que vos fala aportou em Paris, destino final de sua primeira viagem ao estrangeiro. A experiência só ganha menção aqui por culpa dos amigos Chico Lopes e Antonio Júnior; o primeiro porque pediu rememoração detalhada de minhas andanças pela Cidade-Luz, o segundo porque me cobrou várias vezes retorno ao blog – coisa que apenas não fiz até agora porque este está sendo um mês de exceção. Aqui, o post só pode ganhar tom cinematográfico – o que não será difícil, considerando-se que, até no mês passado, eu apenas viajara à cidade na esteira dos filmes que a tomaram como cenário. Dentre tantos, o escolhido é a obra-prima francesa “O fabuloso destino de Amélie Poulain” (Amélie, 2001), fita que, desde seu lançamento, certamente decidiu muitos pacotes turísticos que inseriram Paris como destino.
“Amélie” é especial porque encontra uma estética original para pintar o fascínio que a cidade emana. A Paris turística de tantos filmes, usada e abusada por cineastas até hoje, é nele deixada de lado em prol de uma Paris bairrista, pitoresca, quase suburbana e, portanto, muito mais poética que as obras cinematográficas cartões-postais. Sim, porque minha primeira descoberta ao chegar à cidade é que seu pitoresco – tão bem apanhado em “Amélie” – jaz escondido por debaixo da balbúrdia de turistas de todos os cantos que se trombam em qualquer dia e hora, imprimindo ao lugar um sabor aborrecidamente conhecido de shopping center; e ao vozerio cosmopolita que a faz ecoar qualquer coisa exceto “La vie en rose”. A empolgante Paris fotografada e cantada nas primeiras décadas do século XX pode ainda ser vislumbrada em Saint Germain, único bairro ainda não engolido pela avalanche turística; mas com algum esforço pode-se ainda sentir seus ecos no Quartier Latin ou então em Montmartre, o bairro onde habita Amélie.
Montmartre é encantador. As ruelas do bairro alto, o único de Paris a ser construído num morro (como a embriagante vista do alto da Torre Eiffel nos comprova); suas vias de circulação feitas de escadarias; o antigo carrossel de Sacré Coeur, a igreja ao alto e, à sua frente, uma vista não menos impressionante da cidade que se desdobra aos seus pés (os aficcionados em literatura lembrarão – como o fez Cynthia, minha amiga, companheira de viagem e ex-professora de literatura – a frase de efeito do Jacinto de “As cidades e as serras”: “Paris é uma ilusão”; como ele estava equivocado, não, Cynthia!...); a saliente – bem parisiense – rua do Moulin Rouge, com suas dúzias de sex-shops e seu nada discreto “Museu Erótico”; as barracas de frutas ao ar livre; os pintores.
Tudo isso está no filme. Mas a Montmartre de “O fabuloso destino...” é depurada no coração sonhador de sua protagonista, o que lhe multiplica o charme. Quem nos traduz o bairro é Amélie – corporificada com suavidade por Audrey Tatou, em seu mais emblemático papel. Sua história nos é contada à moda dos contos fantásticos. Aprisionada desde à infância a uma existência de solidão, a menina encontra refrigério no mundo de faz de conta. Já maior de idade, parte da casa dos pais rumo à sonhada liberdade, porém seu olhar às coisas já estava moldado ao faz-de-conta. Em Paris, refugia-se no tal bairro e em si mesma; ficcionalizando a existência ao invés de agir objetivamente sobre ela. Até que, como nos contos de fada, num belo dia o destino coloca à sua frente o objeto mágico que lhe dará entrada a uma nova vida: uma pequena caixa contendo as recordações de um menino de gerações passadas. Desde que a devolve ao dono, a jovem verá um novo futuro se descortinar. De princesa triste, ela se torna heroína: daí em diante, todos os que passarem por si terão suas vidas iluminadas.
A graça de “O fabuloso destino...” está, suponho eu, em garimpar o mundo de fantasia que se esconde no interior da selva de pedra contemporânea. Amélie, que se alimentava de sonhos, transfere esse olhar embevecido à cidade e redescobre-a. Os turistas invasores do pitoresco bairro desaparecem; o cinza que invariavelmente o banha é substituído por calorosos tons esverdeados e amarelados, mesmo quando chove; o labiríntico metrô (sem dúvida, a coisa mais surpreendente de Paris) torna-se a trilha que levará a jovem – agora uma aventureira da estirpe de Zorro – ao desfecho do absurdo/surpreendente/adorável enigma da cabeça fotografada. O olhar às pequenezas faz os olhos de Amélie registrarem, para o bem dos nossos, a cidade que ainda vale à pena se conhecer e na qual ainda vale a pena habitar.
A Cidade-Luz de Amélie é uma cidade colorida por uma aquarela que a própria mocinha maneja. Ao sinal de seus dedos, os duendes ainda podem influenciar na vida das pessoas; os cegos podem ver, os mortos escrever e os frágeis ainda podem empunhar armas e salvar a donzela em perigo – que exemplo admirável é o homem dos ossos de vidro, salvador da jovem que era tão pródiga em distribuir felicidade mas tão temerosa de tomá-la para si.
“O fabuloso destino de Amélie Poulin” tem muitas qualidades: sua estilizada fotografia, sempre a serviço da história, as atuações minimalistas (Audrey Tatou terá muita dificuldade de se livrar dessa sua personagem), o roteiro de Guillaume Laurant e Jean-Pierre Laurant e a direção deste último. A orquestração desses elementos é responsável por uma bela lição, dada sem dedo em riste e, portanto, tão eficiente: a poesia da vida cotidiana depende, em grande medida, de nós mesmos; o que não deixa de ser um consolo.