Doris Day, desaparecida das vistas do público por décadas, voltou inopinadamente a ser foco dos refletores meses atrás, por ocasião de seu 90. aniversário, ao aparecer de surpresa na festa que os fãs organizam anualmente, em comemoração à data.
Quem esperava o surgimento de uma daquelas deusas caídas do sistema de estúdio, saídas da batuta de gente como Billy Wilder, não conseguiu conter a surpresa. Doris Day, aos noventa, ainda tem cara de Doris Day – surpresa nesta era de cirurgias plásticas que, prometendo reter a marcha do tempo, só fazem enfatizá-la (e sublinhar o ridículo daqueles que não aceitam suas falíveis carcaças...). Doris deixou discretamente as telas nos anos 70, quando não pôde mais sustentar a imagem de girl next door que a tornou notória, para se dedicar a um trabalho pragmático – e bem menos glamuroso – de proteção a animais abandonados. Fundou uma ONG que auxilia a adoção dos bichos e levanta fundos para o castramento de cães e gatos. Passou a reproduzir, distante das câmeras, uma versão for real da mocinha cheia de calor humano que iluminou as telas entre os anos de 1940 e 70. O sucesso da escolha estampa-se em seu rosto, jovial, ainda, malgrado a dobra de tantas décadas.
Nos anos em que esteve diante das câmeras, Doris Day era um símbolo. Desempenhava, naquele cinema afeito às grandes moralizações que era o estadunidense, a jovem saudável, de voz límpida, linda, curvilínea e incorruptível – namoradinha de portão e, quando casada, mãe e esposa amorosa. Limpa de qualquer mancha de imoralidade. Daí os enredos nos quais era imiscuída. Raros, raríssimos filmes seus têm lastros com a realidade, digamos, mais tangível. Exceções dignas de nota são “A Teia de Renda Negra”, “Young man with a horn”, “Love me or live me”, “O homem que sabia demais”, “Storm Warning”: a jovem esposa que descobre uma conspiração tendo em vista seu assassinato, a que descobre o marido envolvido na Ku Klux Klan, a que tenta, junto dele, salvar o filho de um perigoso homicida; ou a crooner talentosa – e talvez um pouco susceptível – que se vê presa dos bastidores sombrios do showbiss.
No mais, Doris protagonizou infindáveis fantasias, nas quais ela era a imagem espelho que uma América mais sonhada que real. Um exemplo acima da média é este “Volta, meu amor” (de Delbert Mann, 1961), a segunda das três colaborações – todas bem sucedidas – suas com Rock Hudson. O filme aborda, pela chave cômica, a proposta crítica de Douglas Sirk – que teve vários de seus melodramas protagonizados por Hudson. Nele, como nas obras de Sirk, colocam-se em questão os supostos “bons costumes americanos” (que, no grosso dos filmes da atriz, são tomados como pontos assentes, a serem naturalmente respeitados, jamais questionados).
Doris e Rock desempenham papéis de executivos em duas agências de publicidade que disputam uma mesma conta. Ambos são como a água e o vinho. Ele é Jerry Webster, um garanhão mau-caráter que procura ganhar os clientes apresentando-lhes aos inferninhos de New York. Ela é Carol Templeton, a casta e honesta jovem que trabalha duro almejando vencer pelo talento. No mundo das grandes corporações, essencialmente masculino, não é difícil sabermos quem ganhará a parada. A moça trabalha toda uma noite, mas amarga a derrota ao chegar ao hotel do cliente, pela manhã, e vê-lo em frangalhos, abraçado à gente e à bebida restantes da esbórnia da véspera. Seu oponente também trabalhara duro...
Para vingar-se à altura, ela intenta fazer uso das próprias armas de Jerry. Para roubar-lhe uma próxima – e cobiçada – conta, intentará estabelecer com o cientista que trabalha para ele um envolvimento muito menos profissional que carnal. Porém, poderá fazê-lo, ela que é jovem de moral tão escorreita, educada na puritana cartilha da “América”? Ela que é, acima de tudo, Doris Day; mulher cuja exuberância as películas sempre frearam, enclausurando-a no tipo de good girl? O filme encena a questão de modo saboroso (e apimentado), através de incontáveis estratégias de inversão.
Cairá nas mãos da executiva um sujeito homem, alto e forte, mas com vicissitudes de alma usualmente atribuída às mulheres: homem surpreendentemente virginal, que pede lição completa da vida e das coisas à mulher; homem frágil, “um feixe de neuroses”, que teme falhar com a fêmea que escolhê-lo. Mas acontece que este homem é também Jerry Webster, o troglodita da Times Square, que decide entrar no jogo da concorrente tão logo a conhece em carne e osso e descobre que ela o apetece. E acontece, sobretudo, que Jerry é Rock Hudson, cuja homossexualidade o público apenas viria a conhecer em virtude de sua morte prematura devido à AIDS, mas que não era desconhecida da indústria do cinema – que casara tantos galãs, na vida real, para dar fidedignidade aos machos que eles representavam nas telas.
As trocas de lugares dão complexidade ao filme. Patenteia-se a fragilidade dos papéis pré-concebidos, que a sociedade atribui a homens e mulheres. Tocam-se feridas pelo viés do humor – modo eficaz para a discussão de questões sérias, naquele tempo em que a censura ainda cerceava a produção cinematográfica dos Estados Unidos. A inversão permite a Hudson encenar sua fragilidade tão fortemente escondida pela pátina do cinema; à Doris, liberar seu vulcão adormecido pelo histórico olhar enviesado voltado às mulheres.
Cena que bem o prova é aquela que antecede a entrega da mulher ao varão. Ela o deixa fragilmente depositado na cama do quarto de hóspedes, caminha até o seu quarto, pega do armário a camisola azul-bebê de seu enxoval, toma um trago para criar coragem e vai se trocar. O sexo não se consuma, porque ela descobre que o suposto cientista é o embusteiro Jerry. Mas, ainda assim, a cena é pródiga na apresentação do desejo mal-escondido da mulher, na luta que desejo e arraigados preconceitos travavam dentro de si.
A castração é tão medonha que só a bebida liberta, já que minora o trabalho da consciência. Neste primeiro momento, e também no momento fundamental da trama – aquele em que Carol e Jerry, agora inimigos mortais, provarão dos biscoitinhos alcoólicos produzidos pelo químico arrogante pelo qual Jerry tentava se passar. Ambos acordarão gostosamente, no dia seguinte, numa mesma cama de um motel longínquo. Casados – não se pode ter tudo; ou o filme correria o risco de ser censurado. Mas a entrega ao status quo não é assim estrita: Carol anulará o casamento, tocará a gravidez sem o conhecimento do homem e apenas o verá novamente durante o parto, quando ambos resolvem se casar de comum acordo.
É raro ver-se, no cinema mainstream americano, questionamento deste teor ao status quo, partida de gente tão rentável à indústria. Que ele aconteça com este grau de escamoteamento é compreensível, nesta época ainda submetida ao controle do Hays Code. Neste sentido, vale atermo-nos aos biscoitinhos alcoólicos – elementos-símbolos da inversão proposta pelo filme. Os confeitos infantis mostram seu interior incontrolável, disruptivo, mal encoberto pelos embrulhos coloridos que carregam. Símbolos de uma ilusória “beleza americana”, mas também sucedâneos de nossa natureza múltipla inaparente à primeira vista, que faz dos homens – felizmente – mais que tipos e, daí, tão bonitos de se ver.