domingo, 29 de junho de 2014

Os biscoitinhos alcoólicos de Doris Day: considerações sobre a pretensa ingenuidade de “Volta, meu amor” (e sobre uma certa "American way of life")



Doris Day, desaparecida das vistas do público por décadas, voltou inopinadamente a ser foco dos refletores meses atrás, por ocasião de seu 90. aniversário, ao aparecer de surpresa na festa que os fãs organizam anualmente, em comemoração à data. 
Quem esperava o surgimento de uma daquelas deusas caídas do sistema de estúdio, saídas da batuta de gente como Billy Wilder, não conseguiu conter a surpresa. Doris Day, aos noventa, ainda tem cara de Doris Day – surpresa nesta era de cirurgias plásticas que, prometendo reter a marcha do tempo, só fazem enfatizá-la (e sublinhar o ridículo daqueles que não aceitam suas falíveis carcaças...). Doris deixou discretamente as telas nos anos 70, quando não pôde mais sustentar a imagem de girl next door que a tornou notória, para se dedicar a um trabalho pragmático – e bem menos glamuroso – de proteção a animais abandonados. Fundou uma ONG que auxilia a adoção dos bichos e levanta fundos para o castramento de cães e gatos. Passou a reproduzir, distante das câmeras, uma versão for real da mocinha cheia de calor humano que iluminou as telas entre os anos de 1940 e 70. O sucesso da escolha estampa-se em seu rosto, jovial, ainda, malgrado a dobra de tantas décadas. 
Nos anos em que esteve diante das câmeras, Doris Day era um símbolo. Desempenhava, naquele cinema afeito às grandes moralizações que era o estadunidense, a jovem saudável, de voz límpida, linda, curvilínea e incorruptível – namoradinha de portão e, quando casada, mãe e esposa amorosa. Limpa de qualquer mancha de imoralidade. Daí os enredos nos quais era imiscuída. Raros, raríssimos filmes seus têm lastros com a realidade, digamos, mais tangível. Exceções dignas de nota são “A Teia de Renda Negra”, “Young man with a horn”, “Love me or live me”, “O homem que sabia demais”, “Storm Warning”: a jovem esposa que descobre uma conspiração tendo em vista seu assassinato, a que descobre o marido envolvido na Ku Klux Klan, a que tenta, junto dele, salvar o filho de um perigoso homicida; ou a crooner talentosa – e talvez um pouco susceptível – que se vê presa dos bastidores sombrios do showbiss
No mais, Doris protagonizou infindáveis fantasias, nas quais ela era a imagem espelho que uma América mais sonhada que real. Um exemplo acima da média é este “Volta, meu amor” (de Delbert Mann, 1961), a segunda das três colaborações – todas bem sucedidas – suas com Rock Hudson. O filme aborda, pela chave cômica, a proposta crítica de Douglas Sirk – que teve vários de seus melodramas protagonizados por Hudson. Nele, como nas obras de Sirk, colocam-se em questão os supostos “bons costumes americanos” (que, no grosso dos filmes da atriz, são tomados como pontos assentes, a serem naturalmente respeitados, jamais questionados). 
Doris e Rock desempenham papéis de executivos em duas agências de publicidade que disputam uma mesma conta. Ambos são como a água e o vinho. Ele é Jerry Webster, um garanhão mau-caráter que procura ganhar os clientes apresentando-lhes aos inferninhos de New York. Ela é Carol Templeton, a casta e honesta jovem que trabalha duro almejando vencer pelo talento. No mundo das grandes corporações, essencialmente masculino, não é difícil sabermos quem ganhará a parada. A moça trabalha toda uma noite, mas amarga a derrota ao chegar ao hotel do cliente, pela manhã, e vê-lo em frangalhos, abraçado à gente e à bebida restantes da esbórnia da véspera. Seu oponente também trabalhara duro... 
Para vingar-se à altura, ela intenta fazer uso das próprias armas de Jerry. Para roubar-lhe uma próxima – e cobiçada – conta, intentará estabelecer com o cientista que trabalha para ele um envolvimento muito menos profissional que carnal. Porém, poderá fazê-lo, ela que é jovem de moral tão escorreita, educada na puritana cartilha da “América”? Ela que é, acima de tudo, Doris Day; mulher cuja exuberância as películas sempre frearam, enclausurando-a no tipo de good girl? O filme encena a questão de modo saboroso (e apimentado), através de incontáveis estratégias de inversão. 
Cairá nas mãos da executiva um sujeito homem, alto e forte, mas com vicissitudes de alma usualmente atribuída às mulheres: homem surpreendentemente virginal, que pede lição completa da vida e das coisas à mulher; homem frágil, “um feixe de neuroses”, que teme falhar com a fêmea que escolhê-lo. Mas acontece que este homem é também Jerry Webster, o troglodita da Times Square, que decide entrar no jogo da concorrente tão logo a conhece em carne e osso e descobre que ela o apetece. E acontece, sobretudo, que Jerry é Rock Hudson, cuja homossexualidade o público apenas viria a conhecer em virtude de sua morte prematura devido à AIDS, mas que não era desconhecida da indústria do cinema – que casara tantos galãs, na vida real, para dar fidedignidade aos machos que eles representavam nas telas. 
As trocas de lugares dão complexidade ao filme. Patenteia-se a fragilidade dos papéis pré-concebidos, que a sociedade atribui a homens e mulheres. Tocam-se feridas pelo viés do humor – modo eficaz para a discussão de questões sérias, naquele tempo em que a censura ainda cerceava a produção cinematográfica dos Estados Unidos. A inversão permite a Hudson encenar sua fragilidade tão fortemente escondida pela pátina do cinema; à Doris, liberar seu vulcão adormecido pelo histórico olhar enviesado voltado às mulheres.
Cena que bem o prova é aquela que antecede a entrega da mulher ao varão. Ela o deixa fragilmente depositado na cama do quarto de hóspedes, caminha até o seu quarto, pega do armário a camisola azul-bebê de seu enxoval, toma um trago para criar coragem e vai se trocar. O sexo não se consuma, porque ela descobre que o suposto cientista é o embusteiro Jerry. Mas, ainda assim, a cena é pródiga na apresentação do desejo mal-escondido da mulher, na luta que desejo e arraigados preconceitos travavam dentro de si. 
A castração é tão medonha que só a bebida liberta, já que minora o trabalho da consciência. Neste primeiro momento, e também no momento fundamental da trama – aquele em que Carol e Jerry, agora inimigos mortais, provarão dos biscoitinhos alcoólicos produzidos pelo químico arrogante pelo qual Jerry tentava se passar. Ambos acordarão gostosamente, no dia seguinte, numa mesma cama de um motel longínquo. Casados – não se pode ter tudo; ou o filme correria o risco de ser censurado. Mas a entrega ao status quo não é assim estrita: Carol anulará o casamento, tocará a gravidez sem o conhecimento do homem e apenas o verá novamente durante o parto, quando ambos resolvem se casar de comum acordo. 
É raro ver-se, no cinema mainstream americano, questionamento deste teor ao status quo, partida de gente tão rentável à indústria. Que ele aconteça com este grau de escamoteamento é compreensível, nesta época ainda submetida ao controle do Hays Code. Neste sentido, vale atermo-nos aos biscoitinhos alcoólicos – elementos-símbolos da inversão proposta pelo filme. Os confeitos infantis mostram seu interior incontrolável, disruptivo, mal encoberto pelos embrulhos coloridos que carregam. Símbolos de uma ilusória “beleza americana”, mas também sucedâneos de nossa natureza múltipla inaparente à primeira vista, que faz dos homens – felizmente – mais que tipos e, daí, tão bonitos de se ver.

domingo, 8 de junho de 2014

A Noite Americana: ode à cinefilia

François Truffaut amava tanto o cinema clássico norte-americano que lhe dedicou todo um filme. A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973) é das mais belas homenagens que a “capital dos sonhos” já recebeu. É “cinefilia” no mais alto grau; em que o culto à arte de fazer filmes soma-se ao labor visando a criação de uma obra atenta à sua História, mas, ainda assim, original. 
Já é sabida a relevância que o cinema hollywoodiano teve para a Nouvelle Vague – a qual, por sua vez, foi determinante na elevação da filmografia da América do Norte a objeto digno de reflexão crítica. Quem deseja conhecer os pormenores dessa história precisa percorrer Cinefilia, de Antoine de Baecque, testemunho de fôlego, em letra de forma, do trabalho dos jovens cineastas do grupo. 
Em A Noite Americana, o legado de Hollywood é impresso em película. O filme conta a história da rodagem de um filme. Metalinguagem, reflexão sobre o métier, como a indústria do cinema fizera desde seus primórdios esforço que encontra perfeita expressão no termo francês mise en abyme (a colocação da arte diante de si mesma, refletida, como que num espelho). 
O homem das novidades (The Cameraman, Buster Keaton, 1928), Fazendo fita (Show People, King Vidor, 1928), O homem da câmera (Dziga Vertov, 1929) são obras-primas dentre as centenas de produções a este respeito, rodadas ao redor do mundo desde, ao menos, os anos de 1910. A relação entre elas, seus objetivos e implicações, fariam correr rios de tinta. Contentemo-nos com um regato: o prazer de ficcionalizar coexistiu no cinema, desde sempre, com o de pensar a respeito da materialidade de seu suporte; deste estranho poder da fita de fazer fitas... 
Sim, Truffaut, claro. Não se assustem, não divago. Para este cineasta-cinéfilo, a produção cinematográfica naturalmente implicava na reflexão sobre o medium. Isto fica patente no transcurso deste filme, não apenas povoado da História do cinema (como é, invariavelmente, a obra do artista), mas seu simbólico recriador. Mesmo antes de apresentados os seus créditos: o filme é dedicado às carismáticas irmãs Gish – Lillian e Dorothy –, as primeiras “estrelas” da Sétima Arte, responsáveis, junto a um grupo de artistas regidos pela batuta de Griffith, pelo burilamento do cinema clássico. 
A homenagem se estende para a estrutura do filme-dentro-do-filme, para a escolha do elenco da produção, e para o título, mesmo, da obra. “Nuit Americaine” é o rótulo em francês da técnica cinematográfica americana do day by night: a rodagem de uma cena noturna durante o dia. A Hollywood feita de artifícios surge em primeiro plano no filme francês, que, à guisa de um making of, passeia pelos cenários da produção (fictícia, tão hollywoodiana...) "Je vous presente Pamela" – pelos prédios feitos de madeira, cascas erigidas em ruas cenográficas; a neve de espuma; o vaivém dos figurantes; a convencionalíssima história de amor e traição que é rodada... 
Truffaut tece uma homenagem risonha – apaixonada, ao mesmo tempo em que crítica – ao cinema que o inspirou. Convergem, no filme, a mise-en-scène americana e a francesa; a primeira submetida à segunda. A Nouvelle Vague caminhou a contrapelo do cinema norte-americano em muitos aspectos: ao voltar a câmera às ruas – aos homens “de verdade” –, e dedicar-se ao plano-sequência, buscava impregnar o cinema do “real”, devolver-lhe aquilo que supostamente seria sua inerência, a “objetividade”. 
A relação entre esses dois cinemas emerge dialeticamente no filme. “Je vous presente Pamela” nada deve ao cinema hollywoodiano, feixe de ilusões costuradas por meio da decupagem cuidadosa de planos fragmentados, rodados em cenários cenográficos. Já a mise-en-scène francesa corre por fora, costurando os tropeços do elenco, os vícios, neuroses e estrelismos da prima-dona, os revezes técnicos que atrapalham a rodagem da fita, as gravidezes e as mortes inopinadas, as histórias de amor nascidas e finadas nos bastidores. Costura-lhes por meio de síncopes, como que a chamar, todo o tempo, a atenção para o jogo de cena; para essa brincadeira de gente grande que é o cinema, cujas ficções tocam de modo tão verdadeiro o espectador. 
A estrutura assemelha-se a Fazendo fita/Show People, filme já velho conhecido dos leitores do blog, no passeio de mão-dupla que realiza entre a ficção e a realidade. La Nuit Américaine rompe, todavia, com a matriz, ao estabelecer como protagonista o próprio cinema. Norteia o filme a luta árdua, e não poucas vezes inglória, que é transformar pessoas com sonhos e desejos tão dessemelhantes em pedaços de película, e eles em arte. Cenários, bichos, homens, coadjuvantes e protagonistas adquirem pesos e medidas análogos. 
Neste escopo, o diretor – o grande orquestrador do conjunto (como tão enfaticamente postulara a Nouvelle Vague) – surge pequenino diante do grupo: dirimindo conflitos, lidando com pressões de toda a sorte. Povoado noite e dia por sonhos cinemáticos, esforçando-se para dar unidade onde o que só se vislumbra é o díspar. 
Ao assumir o desempenho desta personagem, no interior de seu filme, Truffaut impregnou-a de simbolismo. Colocou um espelho não apenas diante do cinema, mas diante de si próprio. Sua imagem refletida é muito menos idealizada do que aquela que ele e seus pares impuseram, discursivamente, a respeito de sua classe. Porém, é muito mais amorável. Truffaut coloca-se aos pés da Arte que o assombra e que ele ama. Seu devoto, antes e acima de tudo.