O Theatro São Pedro encenou, durante o mês de abril, esta ópera de Francesco Cilea, raríssima na cena paulistana, cuja première mundial deu-se em Milão em 1902. O acaso feliz levou-me até ela no justo dia em que o país fervia numa encenação de teatro do absurdo digna de Ionesco. Antes, muito antes os derradeiros passos da vacilante Adriana pelos sendeiros da vida que a má pantomima que nos fizeram representar longamente os nossos digníssimos parlamentares...
Na plateia do São Pedro, meu tête-à-tête com “Adriana Lecouvreur” proporcionou-me um daqueles encontros raros comigo mesma. Em minha doce ilusão de eterna estudante, sonho encontrar o elo perdido que une as artes. Francesco Cilea e o libretista Arturo Colautti apontaram-me o caminho, ao tecerem o manto bordado com que Adriana sonharia nos palcos da arte e da vida.
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Poster da produção original |
Esta ópera baseia-se, como tantas, numa obra teatral, a peça de Scribe e Legouvé “Adrienne Lecouvreur”, de 1849. Trata-se de um melodrama típico, repleto das intrigas, corações partidos, peripécias, sangue e lágrimas comuns ao gênero. Não por acaso, entrou para o repertório de Sarah Bernhardt, tornando-se um prato cheio para os malabarismos de sua voix d’or, não sem deixar de agradar uma personalidade artística notável do fim do XIX como Eleonora Duse, que revolucionou a cena de então ao despi-la dos seus tradicionais ouropéis para imprimir uma inusual naturalidade às suas personagens.
A Adrienne histórica era feita da mesma cepa que Duse e Sarah, como elas, a principal atriz de seu tempo: foi a grande diva da Comédie Française no princípio do século XVIII, outra revolucionadora da cena, da qual procurou eliminar a declamação em prol de uma elocução menos alambicada.
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Sarah Bernhardt em Adrianne Lecouvreur (1896) |
A adaptação da cena teatral para a operística era, então, moeda corrente. Duas óperas célebres no repertório ocidental saíram de originais da lavra de Scribe: L’elisir d’amore, de Donizetti e La sonnambula, de Bellini, adaptação de uma peça teatral e de um balé-pantomima, respectivamente. O próprio Scribe fora libretista, autor de Robert le diable, ópera com música de Meyerbeer. Quanto mais remontamos no tempo, mais percebemos o constante entremear das artes, que joga por terra a segmentação clássica, segundo a qual a ópera e a tragédia eram os exemplos maiores de manifestações artísticas, cabendo a gêneros como o melodrama, a opereta ou a pantomima o rês-do-chão da arte. Prova incontestável disso é “Adriana Lecouvreur”, que além de tomar como fonte uma obra teatral, presta uma bela homenagem à ribalta.
“Adriana...” é contemporânea da “Tosca” de Puccini, ópera de 1900 baseada no melodrama escrito anos antes por Sardou. Ambas inscrevem-se no esforço de deslindamento de novos percursos para o gênero que acabara de perder dois de seus grandes mestres, Wagner e Verdi.
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Como Tosca, Adriana ganha altas doses de humanidade. Já falei de Tosca ao vê-la pelo espelho de Greta Garbo (em The Mysterious Lady, de 1928). Assim como a obra de Puccini, a de Cilea coloca em cena a autorreferência em busca do realismo, moeda corrente na arte do período. A obrigatoriedade dos cantores líricos ao antirrealismo, a se chegarem ao proscênio e cantarem, ganha em verossimilhança quando os enredos os colocam a representar efetivamente os papéis de outros. Se “Tosca” atinge isto no primeiro ato, deslizando-se posteriormente para o comentário político, “Adriana Lecouvreur” é atravessada por tal intuito.
O jogo cênico principia a colocar o público diante do camarim da grande diva, que se prepara para adentrar a cena. Ali, à reprodução de trechos do papel se segue a visita do amado Maurizio, o suposto soldado (na verdade, um nobre galanteador, sucessor direto ao trono francês) a quem a atriz entregara seu coração. Dali por diante, vida e arte se misturam e se iluminam:
Adriana é a plebeia com porte de rainha. Naquela sociedade estamental de princípios de 1700, ela ouvirá do amigo Michonnet que a única nobreza que lhe cabe é aquela emprestada pela cena do teatro: “Deixe os grandes homens com seus grandes problemas.” A rainha de mentira jamais poderia ascender à realeza. No entanto, a história da jovem atriz é lida pelo espelho do século XX, crescentemente libertário, no qual uma “mera atriz, obra da Musa” valia tanto ou mais que uma nobre. O teatro era o palco da nova aristocracia, daí a Michonnet pedir que Adriana não abandonasse sua carreira, a única verdade num mundo que ruía. Mas aí já era tarde.
Ao se ver traída por Maurizio, amante da Princesa de Bouillon, Adriana denuncia-os publicamente por meio do monólogo da Ariadne Abandonada – Scribe e Legouvé chegam aqui às alturas de Shakespeare. O resultado é trágico: Adriana é envenenada pela rival, esvaindo-se vagarosa como Violetta Valery fizera cinquenta anos antes, nos braços do homem que ela mais tarde descobrirá que verdadeiramente a ama.
O saldo da ópera – cabalmente reproduzido pela montagem paulistana – é o convencional alçado às alturas do sublime. O dramalhão que é característica fundamental do enredo de “Adriana Lecouvreur” fica em segundo plano, diante da sinceridade que pauta a construção da heroína, homenagem às grandes divas do teatro ocidental, vistas por tanto tempo com reservas. A música de Cilea, repleta de belíssimas melodias, definitivamente contribui para a elevação do enredo comezinho a alturas desusadas. Uma ária como Io son l’umile ancella não deve nada à celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore, da “Tosca”, duas delicadas profissões de fé:
Eu sou a serva humilde/ do gênio criativo./ Ele me dá voz,/ Eu a envio ao coração.../ Sou a voz da poesia,/ o eco do drama humano,/ o instrumento frágil,/ escrava nas mãos do criador.../ Suave, alegre, terrifiante/ meu nome é Fidelidade/ Minha voz é um suspiro/ que morre com o amanhecer...
Ao alinharem ópera e teatro, homens como Cilea e Puccini prenunciaram a profunda influência que a cena lírica teria da teatral. Se tenho uma admiração quase que religiosa pelos grandes atores – que são meu ideal inatingível, já que, além de tímida, não tenho talento algum para os palcos –, dobro-me de joelhos diante de um bom cantor lírico: o poder de deslizar entre a contenção dramática do teatro e o arroubo sentimental da ópera é algo que para mim tem foros de magia. O Teatro São Pedro apresentou, no domingo, um bom exemplo disso, dispondo em cena um elenco (dirigido por André Heller-Lopes) disposto a viver com fúria as peripécias – de um gosto por vezes duvidoso – inventadas duzentos anos atrás.
A sinceridade artística supera o que há de perecível nos enredos. Minha objetiva mental terá para sempre registrado o ódio tragicômico que Denise de Freitas imprimiu à sua Princesa de Bouillon, a delicadeza do Michonett de Johnny França, a suavidade com que Eric Herrero conduziu seu Maurizio, nos derradeiros momentos da vida de Adriana, e a heráldica e, não obstante, a doçura que Daniella Carvalho emprestou à protagonista, das glórias da ribalta até a crua realidade da morte. Temos entre nós grandes vozes, que ainda agora enchem meu coração, erguendo-me a dez metros do chão, para além das tristuras da vida.
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Salvo indicação ao contrário, todas as fotografias da montagem paulistana - levantada em coprodução com o Festival de Ópera de Manaus - eu retirei da página de Facebook de Heller-Lopes (sem pedir licença, do que me desculpo...). Elas dão a ver as belezas do figurino (de Fábio Namatame) e da cenografia (de Renato Theobaldo).