1946. Nos Estados Unidos, a recém-terminada Segunda Guerra abre espaço à caça aos comunistas. O Chile segue os passos da grande potência do Norte, sua “empregadora” – nas palavras argutas do policial lambe-botas Óscar Peluchonneau, criação do roteirista Guillermo Calderón. A sanha de destruição do “perigo vermelho” no Ocidente fomenta, no país, a perseguição do Partido Comunista, que tem como representante no Senado o diplomata e poeta Pablo Neruda. Este é o mote de Neruda, de Pablo Larraín.
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Neva, drama de Caldéron encenado em São Paulo ano passado (pelo “Núcleo de Criação Isto Não É Um Grupo”) é uma boa prova disso. Numa gélida manhã russa de 1905, um ator e duas atrizes ensaiam O Jardim das Cerejeiras, peça do recém-falecido Tchekhov. O exercício de construção cênica superpõe-se ao esquema da pièce bien fait. Calderón comenta Tchekhov, cuja produção teatral rejeita os cânones estilísticos do século XIX. Porém, igualmente coloca em primeiro plano o debate sobre o lugar da arte na sociedade contemporânea.
Em Neva, a história que se constrói no palco reverbera a história com “h” maiúsculo que se faz na rua, onde ocorre o “Domingo Sangrento” – massacre, pelas tropas do Czar, de manifestantes contrários ao regime, elemento deflagrador da Revolução Russa. Vários membros da companhia não comparecem ao ensaio. Estarão mortos? A cena, espaço onde a morte é sempre remediada, se abre à reflexão sobre a finitude da vida, e sobre o papel do teatro na ordem social. O palco, enquanto microcosmo do mundo, se torna campo de luta.
A arte de Guillermo Calderón é política, e isto fica claro em Neruda. A metalinguagem – do francês, mise-en-abyme, resultado da imagem obtida quando se coloca um espelho diante do outro –, funciona ali em potência. O espectador periga ser engolido pelo abismo que o autor lhe cava, como naquele belíssimo quadro de Escher, das mãos que se desenham a si próprias, dentro do espaço do quadro, mas para além do espaço da folha de papel figurada; arte que deseja transcender os seus limites.
Peluchonneau é o narrador da trama de Neruda: homem fino, sofisticado, inteligente, orgulhosamente de direita, a observar o outro de cima. É pelos seus olhos que o espectador começa a ver Neruda e o seu círculo social: há uns planos de teatro do absurdo, como o inicial, da alta política, engalanada, a beber uísque e discursar, no mictório de um evento grã-fino, enquanto fazia as suas necessidades fisiológicas; ou da festa aburguesada em que figura a nata do partido comunista, pródiga na exibição de peles e corpos, onde a voz do mais amorável dos poetas é recebida com gozo.
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Peluchonneau viverá o restante do drama para negar o seu destino de marionete. Se a luta é inglória, ela é, paradoxalmente, a única possibilidade desta vida de papel se realizar. Sua defesa da arte, a partir daí, é a defesa de si mesmo. Daí o melancólico e maravilhoso final, em que a sua morte em vermelho e branco, na imensidão dos Andes nevados, se sucede ao seu sorridente renascimento, no hotel de fama equívoca da Cidade-Luz. A condição redivida da personagem ficcional dá-nos alento a nós, heróis mancos desta mal ajambrada ficção que é a vida.