Uma versão cinematográfica notável do thriller romanesco de Agatha Christie Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 1934) chegou há pouco às telas. Dirigida por Keneth Branagh, a obra consegue num só tempo construir sequências visuais eletrizantes, no melhor estilo dos blockbusters rodados nos últimos anos, e efetuar um mergulho de fôlego no interior das personagens criadas pela gênia inglesa.
Malgrado a quantidade considerável de suspense e ação que o filme abarca, há nele um potente e inesperado exercício teatral – que engole suas características eminentemente cinematográficas, regurgitando-as diante de um palco ilusório, com alta dose de ironia.
Keneth Branagh é ator de sólida formação teatral. Construiu-se entre a tradicional “Royal Shakespeare Company” e a “Renaissance Theatre Company”, companhia fundada por ele. Sua aproximação do cinema deu-se a princípio na relação que a arte poderia estabelecer com o teatro: daí as versões cinematográficas das peças de Shakespeare “Henrique V” (1989), “Muito barulho por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996), as quais ele além de dirigir, adaptou (tendo igualmente atuado nas duas tragédias).
Branagh deixa o roteiro deste “Assassinato no Expresso do Oriente” nas mãos de Michael Green, desempenhando, além da direção, o papel de Hercules Poirot. Mesmo os leitores mais esporádicos de Agatha Christie certamente se lembrarão deste seu mais notório detetive, homenzinho esquemático e genial (hoje em dia, a literatura médica lhe diagnosticaria com um severo TOC...), cópia mal-disfarçada de Sherlock Holmes, a trocar o abuso das substâncias alucinógenas pelas iguarias culinárias.
Qualquer intenção de retomada deste romance de Christie causa de saída ceticismo, depois de sua versão irrepreensível rodada sob a batuta de Sidney Lumet em 1974, com um elenco estelar do qual faziam parte, entre outros, Ingrid Bergman (que ganharia o Oscar de atriz coadjuvante pelo desempenho), Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, Vanessa Redgrave, Sean Connery e Anthony Perkins, elenco chefiado por Albert Finney no papel de Hercule Poirot.
Branagh surpreendentemente não busca o confronto. Orquestrador do conjunto, além de protagonista, o ator/diretor utiliza sua expertise na adaptação às telas de clássicos teatrais e romanescos, apropriando-se com distanciamento crítico da obra de Christie.
O contorno irônico que ele imprime à sua personagem estende-se como nota dominante para o restante da obra. Daí às concessões que ele faz à estética do blockbuster – por exemplo, a perseguição de Poirot ao secretário do homem assassinado, sob as estruturas da ponte que sustenta o trem emperrado; ou o ultra-realismo com que pinta a avalanche que impede o desenrolar da viagem – se seguirem, ato-contínuo, às tomadas estáticas dos diálogos entre o detetive e os suspeitos, diante de cenários que aludem ao tableau teatral e ao trompe d’oeil, artifícios utilizados no tempo em que Agatha Christie era menina.
O espaço da acariação remete à Mesa de Leitura, momento fundamental das montagens teatrais |
Se o all star cast é também característico desta versão de “Assassinato no Expresso do Oriente” – entre outros, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Willem Dafoe e Johnny Depp –, o filme consegue, como na versão de 1974, construir as personagens a contrapelo dos rótulos que o star system lhes impôs. A partir de agora a análise se obrigará aos spoilers. Os pontos altos são Cruz, no papel da babá da menina sequestrada e morta (mesmo papel que deu à estatueta a Bergman), mas especialmente Pfeiffer, como a atriz afamada que perdera a filha e a neta, a grande engendradora do assassinato coletivo de Edward Ratchett - na atuação-dentro-da-atuação, Pfeiffer é uma variante das femme fatales que desempenhou durante a sua carreira, contraparte da mulher torturada que, ao cair do pano, ela se revelará.
Qualquer adaptação diz mais sobre o momento histórico no qual ela foi criada do que sobre a obra da qual ela se originou. Este “Assassinato no Expresso do Oriente” traz como saldo uma dose amarga de melancolia, explícita no distanciamento com que se narra o episódio do sequestro da garotinha e os seus desdobramentos funestos – num branco e preto que o afasta do melodrama para aproximá-lo da frieza de um registro policial, mimese da frieza com que o crime conjunto foi planejado e executado.
O filme repercute a busca, cada vez mais reverberada em nossa sociedade, da justiça pelas próprias mãos, diante de um dispositivo legal cada vez mais incompetente e/ou corruptível. A catarse atingida graças à destruição do mal, pedra de toque dos blockbusters - presente mesmo na obra de Christie e em sua versão de 1974 -, ganha, todavia, um segundo plano, ante ao peso sustentado pelo indivíduo que se obriga a assumir um papel que cabe ao Estado – em especial num caso desta natureza.
A decisão final de Poirot, de não entregar o grupo à polícia, se deve menos à sua magnanimidade – ou à crença de que a justiça finalmente se realizara – e mais a um esforço de interromper a escalada de destruição deflagrada por Ratchett. Longe do Happy Ending, este “Assassinato no Expresso do Oriente” sublinha a linha tênue que separa a lucidez da loucura, o mal do bem, e enfim, o Jekyll e o Hyde que habitam cada um de nós. Para realizar o exercício reflexivo, o filme apresenta-se numa imagem em abismo, teatro dentro do cinema. Não por acaso, Michelle Pfeiffer ganha tanto relevo nesta adaptação, na pele da atriz que organiza um assassinato como a sua última grande performance, o seu canto dos cisnes.
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