sexta-feira, 2 de março de 2018

Da cadeira da plateia ao close-up: considerações sobre a ópera no cinema

Anja Harteros (Un ballo in maschera)
Nas últimas duas semanas, aportei duas vezes em Munique. O deslocamento foi mental. Chegou-nos a São Paulo, por meio do Festival “Ópera na Tela”, duas obras encenadas recentemente naquelas paragens: Um baile de máscaras (Un ballo in maschera, 1859), de Giuseppe Verdi, libreto de Antonio Somma, e A Favorita (La Favorite, 1840), de Gaetano Donizetti, libreto de Alphonse Ryoyer, Gustav Vaëz e Eugène Scribe. 
No cinema, as óperas têm para mim um sabor invariavelmente agridoce. A experiência no recinto onde se dá o espetáculo – entre as vozes que nos chegam sem a intervenção de nenhum aparato mecânico e o frenesi compartilhado por uma grande plateia – é incontornável ao gênero. Nos palcos operísticos, como nos teatrais, a presença empírica é fundamental à fruição estética. Embora público, o espaço do cinema favorece a criação de mundos particulares que caminham na contracorrente da dimensão congraçadora do teatro, do caráter de unicidade de cada representação, sempre aberta aos reveses do acaso; da possibilidade efetiva da intervenção das plateias na cena. 
Elīna Garanča/ Matthew Polenzani (La Favorite)
Ao mesmo tempo, de que outro jeito um humilde mortal pode encontrar com essas produções rodadas do outro lado do Atlântico senão desta maneira substituta? Essa impostura tem, no entanto, uma dimensão doce que fala com força dentro de mim. Procuro, a partir do ponto de vista de alguém que descobriu a ópera por meio do DVD e do cinema, antes de ter podido experimentá-la in locus, vasculhar que meandros da especificidade dessa ópera enlatada apaixonaram-me pelo gênero. 
O mais determinante deles é o close-up. Percebo que sou uma espectadora cinematográfica da ópera quando me dou conta de que a minha memória mais vívida dela é o rosto descomposto da Violetta Valéry de Natalie Dessay, tomado em primeiríssimo plano numa montagem que eu nunca vi e jamais poderei ver ao vivo: porque Dessay não mais se envolve em produções operísticas; porque aquele rosto só começou a circular nos cinemas quando a Traviata em questão já havia se despedido da cena; porque, afinal, aquele rosto jamais existiu às plateias operísticas. Porque a ópera no cinema não é ópera, é cinema, ou alguma coisa neste entre-lugar. 
Ao rosto de Dessay soma-se agora o de Anja Harteros, sublime e etéreo como as gazes que a velam do marido enquanto ela se encontra com o homem que ama, e o de Elīna Garanča, grave e profundo como a voz dessa Greta Garbo operística, que eleva o enredo mesquinho da Favorita a uma dimensão inesperada. Esses rostos, e a sobre-humanidade que carregam – são estatuárias, retirados do tempo da história, introduzidos no tempo do mito – unidos à música, fazem uma porção considerável das óperas transcenderem os preconceitos putrefatos de seu tempo. 
A metamorfose é sentida sobretudo pela personagem de Garanča. A Favorita é a principal amante do rei de Castela. Retirada do seio de um pai “abusivo” (é absurdamente atual esta definição) sob o pretexto de um casamento real, a jovem Léonor de Guzman vê-se transformada em cortesã. Tolhida de quaisquer meios de ação, desejada pelo rei que lhe recusa a alforria, repudiada por uma corte carola que a anatemiza por vê-la desvirtuando o monarca, Léonor se parece muito pouco com uma mulher do século XXI. A perseguição religiosa, metafórica e literal, se intensifica quando ela se apaixona por um noviço. No quarto ato, vemo-la pária, a definhar aos pés do altar e do seu amado, depois de ser repudiada por ele, pelo rei e pela corte espanhola. 
A fragilidade patente de sua posição não comove personagem algum, até que ela está prestes a se esvair e, porque não mais representa ameaça ao status quo, é perdoada pelo homem que ama, o qual vem de ser ordenado. Ele ainda a ama – é o que professa, trêmulo, ao final –, mas apenas poderá viver tal sentimento no plano espiritual, já que o corpo dela pereceu: o corpo, espaço do tão temido “pecado” com que a igreja por séculos amedrontou(a?) seus fiéis. 
Mesmo com os inúmeros passos para trás dados ultimamente pela sociedade em escala mundial, uma temática tão anacrônica só desce goela abaixo do público por conta da música primorosa de Gaetano Donizetti – as notas estão libertas dos contornos do machismo. Por conta da música e de Garanča, que traz no rosto a dimensão de sua voz excelente de mezzo, ambos uma mistura de docilidade e de firmeza. Seu rosto e sua voz sublinham uma dimensão bem-vinda da encenação, que, ao optar por figurinos contemporâneos, propõe uma leitura distanciada e crítica desta ópera. 
Anja Harteros/ Piotr Beczala
(Un ballo in maschera)
Já Anja Harteros é a contraparte de Elīna Garanča. Longilínea, pálida e de um timbre cristalino, é a heroína perfeita da grande ópera italiana. Ela é Amelia, a esposa de Renato, secretário fiel do conde inglês Riccardo, alocado em Boston nos tempos da colônia. A história toma como base o assassinato do rei Gustavo III, da Suécia, vítima de um complô político, durante uma mascarada. Alterado por decisão da censura, a redução do título da personagem histórica atrela o libreto com força neste nosso contexto político feito de conchavos e de golpes. 
Verdi é um grande analista da alma humana. Amparado pelo libreto, sua música sublinha a dimensão trágica das personagens, dignas de um Shakespeare ou de um Sófocles: a sentença da cartomante Ulrica, espécie de sibila trágica, de que o primeiro homem a apertar a mão do conde seria responsável por sua morte (bela metáfora de nosso contexto político), explicita de antemão o destino do nobre. Como prova de que não a crê, Riccardo aperta a mão de Renato, que, quererá o destino, será responsável por sua morte, durante a fatídica mascarada. 
A produção da ópera da Bavária apresentada em São Paulo é de um primor raramente visto. Além de uma competente distribuição (Piotr Beczala e George Petean são o conde e o secretário), cria no palco um microcosmo alusivo à ventriloquia, que remete à noção algo reverberada no Oitocentos de que não passamos de títeres num contínuo duelo entre Deus e o Diabo. 
Todavia, se alguns momentos são de puro deleite visual (o títere do conde, manipulado por ele próprio, a entoar junto consigo aquela grande ária que é “Di’ Tu Se Fedele”), o conjunto recende um amargor profundo: a crise de consciência da esposa que deixa de amar o marido (corporificada em cena pela presença dos duplos de Amelia e Renato, jovens e felizes), e o terror inerente à impossibilidade de se retirar deste consórcio, o que a leva à feiticeira, ao recôndito onde ela iria preparar a droga do esquecimento, e ao inevitável encontro do homem que ama (e de seu próprio destino). O pessimismo e o mergulho na esfera das subjetividades refletem o momento político tenso enfrentado pela Europa naqueles anos de 1858 e 1859. Por isso, exibida nesses tempos igualmente sombrios, esta ópera soa tão atual. 

A dimensão de jogo e de contação de história que a encenação dá à obra recupera a ideia de fingimento alusivo ao seu título. Amelia é a única personagem nesta montagem que se recusa ao falseamento, estabelecendo o único ponto de ancoragem no real – impossível, numa sociedade talhada à mascaragem, como o desenlace demonstrará. Harteros é brilhante. Seu jogo de cena repercute a sua voz de manancial, fonte cristalina que não pode se conter mesmo que seu destino seja a tormenta. Como Callas (ou como Dessay), não é só grande cantora como é grande atriz, e neste Baile de Máscaras ela constrói uma Amelia nuançada, sob os signos da paixão e da desesperança. Que honra vê-la assim tão de perto, nesse espaço paradoxal que é a ópera em cinema, onde a ausência física do artista acaba por lhe dar, como dá às estrelas, uma inesperada eternidade.

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