Vamos fingir que esta resenha não demorou três meses para suceder as anteriores, relativas às apresentações operísticas do MET de outubro do ano passado. Retomo a missão auto-imposta, agora referindo-me à sensual história de Sansão e Dalila, escrita por Ferdinand Lemaire e musicada por Camile Saint-Saëns entre 1867 e 1877, encenada no Metropolitan por um elenco estelar, conduzido pela batuta de Mark Elder: Elina Garanca como Dalila, Roberto Alagna como Samson e Laurent Naouri como o Grão-Sacerdote de Dagon. A direção ficou a cargo de Darko Tresnjak.
A história remete a uma passagem do Velho Testamento que nada deve às fábulas de La Fontaine. Segundo “Juízes”, 16, Sansão é o hebreu de força sobre-humana que, dez séculos antes de Cristo, invade e submete a cidade de Gaza. Encanta-se pela filistina Dalila, que vive no vale de Soreque, jovem a qual, persuadida pelos príncipes dos filisteus, induz Sansão a lhe contar o segredo de sua força: “E sucedeu que, importunando-o ela todos os dias com as suas palavras, e molestando-o, a sua alma se angustiou até a morte.”, diz o versículo 16 do livro de “Juízes”, deixando implícito que ambos viviam uma relação íntima. A concessão de Sansão ao clamor de Dalila, e o seu posterior martírio, revive a fábula bíblica de Adão e Eva: cabe à mulher à perdição masculina.
Saint-Saëns lança-se ao trabalho de compor sobre a fábula bíblica um decênio antes de ver a sua obra encenada, o que se dá não em francês, mas numa tradução alemã, em Weimar, dada à rejeição dos franceses a diversas apresentações de trechos da obra, antes de sua completude. Havia, então, na França, resistência no tocante à encenação de conteúdo depreendido da Bíblia; resistência transformada em proibição explícita, no tocante ao teatro: tanto que a notória Sarah Bernhard se vê impedida de levar à cena a "Salomé" de Oscar Wilde – obra que, composta originalmente em francês, em 1891, apenas seria encenada três anos mais tarde, numa tradução, na Inglaterra.
Embora bem-sucedida em solo alemão, onde estreou em 1877, a ópera em três atos e quatro cenas “Samson et Dalila” apenas subiria à cena na França nos anos de 1890 – primeiro no interior e, no final do ano, em Paris. Torna-se um sucesso, sobretudo devido às árias de Dalila « Printemps qui commence » e « Mon cœur s’ouvre à ta voix » – as quais, dali por diante, passariam a ser conhecidas e repercutidas como obras avulsas, em detrimento da ópera.
“Samson et Dalila” foi a obra escolhida para abrir a temporada 2018-2019 do Metropolitan. Uma sessão de fotos dos protagonistas, ainda sem os figurinos da produção, divulgada seis meses antes, titilou a curiosidade do público (o MET sabe como propagandear os seus espetáculos...). Levada à cena em setembro, a recepção da crítica foi fria. Não era efetivamente uma montagem a se amar inequivocamente. O cenário de Alexander Dodge e o figurino de Linda Cho estavam em simbiose, apelando sem pudor ao kitsch. Uma estrutura metálica a representar um gigante homem bipartido – espécie de cavalo de Troia cujo sentido último não é de todo compreendido pelo público – serve como centro da sociabilidade dos filisteus: o templo pagão onde sacerdotisas realizavam um erótico ritual. Dalila, que no conto bíblico é uma mulher que vive nas montanhas, é, na obra de Saint-Saëns, o cerne deste organismo. Já se vê que a pecha que o livro bíblico lhe impinge é potencializada nesta montagem.
Antes de o homem bipartido adentrar e dominar a cena, com o seu séquito, a produção optou pela dualidade estrita, entre os figurinos dos hebreus, em tons pastéis, e dos filistinos, de coloridos resplandecentes. Visualmente menos atraentes, as vestimentas dos hebreus materializam o afastamento de Sansão do seu povo e a sua aproximação da bela Dalila, em plena florescência, naquele princípio de primavera. Sua aparição seduziria o mais incauto dos homens.
As escadarias cinzentas da cidade de Gaza cingem-se de flores, plumas e paetês que nada devem aos desfiles de nossas escolas de samba, ou às boates cariocas dos anos de 1960 voltadas ao teatro de revista, ou aos números musicais protagonizados por travestis. Digo tudo isso obviamente não para desmerecer esses espetáculos todos, já que o kitsch muito me atrai – Susan Sontag, no elucidativo artigo “Notes on Camp”, publicado nos anos 60 (não por acaso a época das tais boates), analisa a estética com sensibilidade: sua essência seria, segundo ela, “o amor ao inatural – ao artifício e à exageração”. Sontag discorre sobre os cultores do kitsch até a época do artigo. Certamente, a estética deste “Samson et Dalila”, como dos nossos desfiles carnavalescos realizados pelas passarelas cariocas e paulistanas, são apropriações contemporâneas dele.
Nesta toada, enquanto Roberto Alagna – o hebreu de força incomensurável e longos cabelos –, veste surradas túnicas, uma Elina Garanca linda de doer, numa longa e encaracolada peruca ruiva, enverga um radiante vestido de jacquart magenta, bordado de dourado, o qual, à certa altura, é substituído por uma túnica verde limão. No terceiro ato, o de sua coroação, usa uma variante desse traje, mas vermelho – a exemplo do Grão-Sacerdote de Dagon (o ótimo Laurent Naouri) e das demais figuras políticas filistinas: o “inatural” de que fala Sontag é, pois, a estética que levanta com consistência o espetáculo.
Pode-se dizer que o revival de uma fábula bíblica no seio do racionalista século XIX apenas poderia fazer sentido sob a forma do kitsch, daí às escolhas cênicas e de figurino acertadas. No entanto, a música de Saint-Saëns, se roça o exótico, tem um sabor igualmente lírico – mesmo bucólico, como podemos perceber pelas duas referidas árias que sobreviveram à posteridade, as quais, cantadas por Dalila, aludem ao amor incomensurável que ela tem por aquele homem tão distinto de si, lamentando a sua frieza.
Ao adaptarem a fábula de Sansão e Dalila, Saint-Saëns e Lemaire procuram dar facetas humanas essas duas personagens apenas delineadas no livro bíblico. Em entrevista sobre a montagem, Garanca faz menção a um breve trecho que antecede à ária « Mon cœur s’ouvre... », infantil e bucólico, no qual Dalila lembra a Sansão dos dias de felicidade que ambos haviam vivido.
No entanto, é igualmente verdade que o compositor e o libretista eram homens de seu tempo, quando a visada ao gênero feminino era ainda eivada de preconceitos. A sua Dalila é, como a bíblica, prole da Eva medieval – a quem a paixão serve como força motriz para a vilania: movida pela ordem do Grão-Sacerdote de entregar a ele o homem que ameaçava o seu reinado, ela lhe afirma com todas as letras que não desejava dinheiro, mas vingança; a fidelidade ao seu povo motiva a sua atitude manipuladora. E então, a música turva-se, à medida do caráter de Dalila.
A Dalila da Saint-Saëns recupera o arquétipo milenar da mulher vampira. Imagino que seja difícil para qualquer mulher autoconsciente repercuti-lo. Garanca parece ser dessas mulheres. Os trajes de femme fatale serviram-lhe de camisa de força, e ela lutou bravamente para imprimir alguma ambiguidade à sua personagem. De um ponto de vista puramente dramático, penso que ela se sairia melhor caso se jogasse de corpo e alma no papel da “Bela dama sem misericórdia” sobre a qual Keats poetiza (ver) – doce vampira que seduzia os cavaleiros para depois desencaminhá-los; sem nenhum remorso, sem nenhuma comoção. O preço que se paga pela consciência de gênero geralmente é alto...
O que de modo algum significa que ela tenha se saído mal. É, além de lindíssima e voluptuosa - tem o physique du rôle perfeito de Dalila -, uma grande cantora, e imprimiu à sua Dalila um timbre morno e sensual. Além disso, Garanca soa gloriosamente bem ao lado de Roberto Alagna, com quem tem grande química. A mezzo me parece, no entanto, mais solta na montagem de “Samson et Dalila” levada à cena pela ópera da Baviera no primeiro semestre de 2018 – que tem longos trechos disponíveis online –, porque o enquadramento de drama de boudoir dado à montagem, se (ao meu ver) a afasta daquilo que buscavam o compositor e o libretista, acaba por favorecer a criação de alguma ambiguidade à personagem da sacerdotisa.
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