Falei brevemente sobre o livro que dá título ao post quando analisava o excelente "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filme que, para o deleite dos fãs de Audrey Hepburn, voltou ao mercado no fim do ano passado por um preço bem acessível. Naquela ocasião, tentei estabelecer um diálogo entre a película e uma carta de Audrey ao esposo, na qual ela discorre sobre detalhes da construção da personagem da irmã Luke. A carta deixou Lorena curiosa sobre o conteúdo do livro, especialmente dos fac-símiles dos documentos da atriz, que não aparecem a versão digitalizada do volume apresentada para visualização no site da Amazon. Hoje cumpro a promessa que fiz à minha amiga de trazer algumas dessas preciosidades para cá.
Na verdade, será um prazer me desincumbir da tarefa. O percurso me permitirá experimentar novamente aquela saborosa sensação de intimidade que tive ao passear pelas páginas do livro pela primeira vez - sensação, aliás, que experimento sempre que mergulho nos arquivos de pessoas e instituições.
The Audrey Hepburn Treasures: pictures and mementos from a life of style and purpose, organizado por Ellen Erwin e Jessica Z. Diamond e prefaciado pelo primogênito de Miss Hepburn, Sean Hepburn Ferrer, redesenha a trajetória da estrela a partir do depoimento de seus amigos e familiares e, especialmente, de seu arquivo pessoal. É certo que os documentos que figuram em cópias fac-similares ou impressos nas páginas do livro são frutos da escolha das organizadoras. No entanto, nem por isso eles deixam de ser um belo panorama da persona pública e privada de Audrey.
Panorama que não raras vezes surpreende pela profundidade, como notará o leitor atento (ou aquele afeito à poeira dos arquivos, como eu).
O divertido é que o texto do livro procura fornecer brevemente ferramentas para que se entenda os documentos, mas não os analisa. Aos curiosos fica a fascinante tarefa de redescobrir a atriz a partir daquilo que ela guardava, de compreendê-la na vida privada que ela procurava manter longe das câmeras mas desnudava para os amigos, de descobrir a mulher por trás da atriz querida e entender como nasceu o mito. Meu percurso daqui em diante será comentar algumas dessas preciosidades.
A que abre o post, datada de 1939, é a frente de um postal de uma Audrey ainda bebê - provavelmente enviado por sua mãe à família da mesma, atesta o livro. A dedicatória não esconde a paixão que Ella sentia pela filhinha de três meses:
O divertido é que o texto do livro procura fornecer brevemente ferramentas para que se entenda os documentos, mas não os analisa. Aos curiosos fica a fascinante tarefa de redescobrir a atriz a partir daquilo que ela guardava, de compreendê-la na vida privada que ela procurava manter longe das câmeras mas desnudava para os amigos, de descobrir a mulher por trás da atriz querida e entender como nasceu o mito. Meu percurso daqui em diante será comentar algumas dessas preciosidades.
A que abre o post, datada de 1939, é a frente de um postal de uma Audrey ainda bebê - provavelmente enviado por sua mãe à família da mesma, atesta o livro. A dedicatória não esconde a paixão que Ella sentia pela filhinha de três meses:
Essa é Audrey e ao vivo ela é 1000 vezes melhor e mais graciosa. Eu ando estado na Suíça e agora retorno à França. Audrey está muito bem, forte e gordinha! Com amor, Ella.
Deixei de lado os programas de recitais dos quais a jovem dançarina participou na Holanda antes de o país ser invadido pelas tropas nazistas, o que a obrigou a refugiar-se com a família e a motivou a se juntar às hostes da resistência. A partir de então e até se sentir forte para dançar, Audrey procurava levar alento, através da arte, aos indivíduos perseguidos pelo 3º Reich. A mudança de rumo em sua carreira ocorreu, como conta a atriz, quando a escassez de comida deixou-a com uma anemia profunda que quase a levou à morte. Audrey conhecia bem as marcas deixadas pela guerra e pela fome, daí o papel cabal que exerceu na UNICEF em seus últimos anos de vida.
Porém, vamos seguir a linha cronológica. Conheçamos primeiro a carta de um ardoroso admirador da artista quando ela ainda era corista de espetáculos de vaudeville londrinos - atividade que exerceu até ser descoberta pela escritora francesa Colette e protagonizar da adaptação teatral de seu romance "Gigi".
A correspondência flagra o entusiasmo que a jovem atriz suscitava no público antes de entrar na máquina de Hollywood e passar a fazer parte daquele céu estrelado que tornava os stars inatingíveis e, paradoxalmente, tão próximos dos humildes mortais. O jovem Capitão Roger Marley começa desculpando-se por se dirigir à atriz e lembra-lhe do trágico passado que os une: durante a Conflagração, ele compunha a equipe de paraquedistas que participou da liberação de Arnhem, cidade da Holanda em que Audrey vivia. Com graciosa timidez, o rapaz assume o ethos romântico do qual não raras vezes se embuem os combatentes para afirmar:
Se eu soubesse que você estava lá eu teria lutado até ser morto para lhe tirar de lá, porque, você me dê licença para que eu lhe diga, você é, de longe, a garota mais atraente que eu já vi.
Não se preocupe, eu não sou um "lobo", tenho uma esposa atraente e uma linda criança, mas é fato que, se eu soubesse que você estava em Arnhem naquele dia, eu não estaria vivo para lhe escrever.
Audrey colecionava fãs, embora desempenhasse papéis pequenos nas comédias musicadas das quais participava - como atestam as páginas do programa de "Petit Sauce Tartare" (1949), espetáculo do elegante nightclub londrino Ciro's Club em que ela apenas figura com destaque num dos números e sua foto é impressa no pé da página.
As portas para o sucesso internacional foram apenas abertas para a artista quando ela desempenhava um pequeno papel no filme "Monte Carlo Baby" (1951), rodado em inglês e francês. Não devido ao papel mas porque, nas areias da praia francesa, a jovem esbarrou em Colette, que naquela época estava em busca de protagonista para seu romance recentemente transformado em peça teatral. A dedicatória da escritora à atriz - impressa numa das páginas de The Audrey Hepburn Treasures - ressalta seu olho clínico: "Para Audrey Hepburn, tesouro que encontrei numa praia! Colette". Nem mesmo a jovem tinha, naquele momento, tanta confiança em si. O livro lembra que, convidada pela escritora para desempenhar a sapeca Gigi, ela teria respondido: "Sinto muito, madame, mas é impossível. Eu não poderia, pois não sei atuar."
No mesmo ano de 1951, em novembro, a Gigi de Audrey Hepburn enlouquecia a crítica da Filadélfia. A peça estreou na Broadway no final de novembro e ficou em cartaz até 31 de maio de 1952. Abaixo, páginas do programa da peça. E, um detalhe: "Gigi" ganhou os palcos na forma de comédia, portanto, sem as canções de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe que cooperaram para que a maravilhosa adaptação cinematográfica dirigida por Vincent Minnelli arrebatasse 9 Oscars em 1959.
Tendo começado a carreira artística como dançarina e cantora, Audrey conquistou seu lugar ao sol como atriz, que sem dúvida era o que ela sabia fazer melhor. A maquinaria de Hollywood funcionou, como era costumeiro, para a divulgação de sua imagem - com as notícias eufóricas que surgiam a seu respeito enquanto ela estava na Itália rodando, com Gregory Peck, seu debut no cinema norte-americano e o filme que lhe daria o Prêmio de Melhor Atriz da Academia. Mesmo assim, é inegável que Audrey rouba a cena em "A Princesa e o Plebeu" ("Roman Holiday", 1953), o que motiva seu galã a conceder à atriz iniciante a honra de ela figurar ao seu lado acima do título do filme. Peck afirma ter feito isso para seu próprio bem, já que sabia que a atriz "ganharia o Oscar em seu primeiro papel". A Academia pode ser imprevisível e inegavelmente é muitas vezes injusta, porém, é bonito ver o nascimento de uma estrela consagrado desse modo. Audrey guardou sua via do recibo do recebimento da estatueta, que a comprometia a mantê-la em sua posse - se quisesse vendê-la, apenas poderia fazê-lo à Academia, recebendo por ela a soma de $ 10,00...
Até aqui, é visível (se o leitor ainda não se cansou e me abandonou no meio do caminho) que a atriz era uma religiosa guardadora de recordações. Identifico-me com esse ímpeto de arquivar a vida em pastas e mais pastas - e, ao relê-la, me redescobrir entre os pedaços de passado que resolvi eternizar. Há, em meio aos documentos selecionados pelas organizadoras do volume, um cartão postal (de 1959) em que Audrey dedica à família uma Feliz Páscoa em nome dela, do marido e do amado cãozinho que ilustra o cartão, Famous - presente de Mel Ferrer que por um tempo ocupou o espaço do filho que Audrey tentava ter. Há também o anúncio de nascimento de Sean, momento em que a "Miss Audrey Hepburn" da galáxia hollywoodiana dá lugar à mãe de família "Mrs. Melchor G. Ferrer" - papel que ela desempenhou com deleite, daí as lindas fotografias dela com o filho impressas no volume.
De volta a Hollywood, Audrey atuou, em 1961 e 1964, em duas de suas mais notórias películas, "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany") e "My fair lady". De ambas as produções, Audrey nos guardou recordações interessantes. Das páginas datilografadas de uma das mais melancólicas - e difíceis - cenas da "Bonequinha...", apreendemos detalhes do métier de atriz: palavras grifadas do roteiro lembram-nos daquela inconfundível musicalidade de sua voz, sobre a qual me referi ao falar sobre "Uma cruz à beira do abismo"; e uma das réplicas de Holly a Paul (a penúltima réplica constante na página amarela do roteiro) foi transcrita literalmente por Audrey no verso do roteiro - estratégia comum de memorização.
Há uma porção de fac-símiles relativos À "Bonequinha de luxo", incluindo uma carta de Truman Capote (autor do romance do qual originou-se a versão cinematográfica) à atriz, mas vou fazer suspense até que tenha condições de escrever um post exclusivamente sobre esse filme, que amo desde muito tempo.
Relativo a "My fair lady" há um ticket da premiére mundial do filme, que teve lugar no Criterion Theatre de Nova Iorque em 21 de outubro de 1964. O preço salgado do assento, $ 150,00, seria revertido a um hospital e centro de pesquisa do Estado.
todavia, os dois documentos que mais me atraem relativos ao filme são, o primeiro, a carta de Katharine Hepburn e Spencer Tracy à Audrey e George Cukor (diretor da obra e amigo de longa data de Kate, a quem dirigiu em produções memoráveis como "Núpcias de Escândalo" e "A Costela de Adão"), congratulando-lhes pelo sucesso da película. Katharine, numa letra tão impossível quanto a de Audrey e bastante semelhante à dela (o parentesco entre ambas que seus sobrenomes podem indicar não se sustenta de fato) lhe diz algo como: "You two certanly hit the nail on the head. (...) You scared all your friends to death. A million congratulations. It's a real triumph."
E, por fim, um cartão do "Pygmalion", "Grande Magazine de Novidades" situado no Bd. Sébastopol, em Paris - cartão que, de acordo com o livro, foi usado pela atriz como marcador de página do roteiro de "My fair lady". Adoro conhecer as pequenas inspirações responsáveis pela criação dos grandes papéis. Aliás, lembram-se do post em que ensaiei uma trajetória do Pigmalião da antiguidade até o Professor Higgins ao qual Rex Harrison deu vida na versão cômico-musicada e, depois, cinematográfica de "My fair lady"?
E agora, para encerrar, dois registros da Audrey madura, tão bela por dentro quanto por fora. A primeira, um postal de Hupert Givenchy (de aprox. 1984) - estilista responsável por transformar a Holly Golightly e sua criadora em epítomes de beleza. Aqui ambos estão atentos um ao outro, sem badalação, em meio ao inverno parisiense que joga neblina nos monumentos históricos da cidade. A dedicatória afetuosa sublinha a amizade que os unia:
Minha Audrey.
Estou muito feliz de estar perto de você nesta noite de domingo.
Sempre com amor.
Hupert.
E, por fim, uma obra de arte (de 1988) que revela outra faceta de Audrey - a desenhista - retratando uma das imagens que mais a chocaram em suas peregrinações como Embaixadora de Boa Vontade da UNICEF: o sofrimento de uma mãe etíope vendo o filho sucumbir à fome. O original foi leiloado e a verba, revertida na compra de animais para o transporte de vacinas às crianças que habitavam regiões remotas e inacessíveis, afirma The Audrey Hepburn Treasures.
E agora, preciso parar, pois estou sendo quase que impedida de respirar por aquela familiar nostalgia dos velhos tempos: tempos em que tela do cinema projetava sombras mais reais que a própria vida, sombras que encontravam eco em figuras grandiosas de carne e osso. Ah, Audrey, quando nascerá outra estrela como você?